Arcas de Babel: Marcelo Ariel traduz Paul Celan
Marcelo Ariel: 'Obra de Celan é uma cristalização de algo quase impossível de ser dito' (Fotos: Arquivo Pessoal e Reprodução)
A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras.
Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
A série Arcas de Babel acolhe traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.
Hoje, o poeta, performer e ensaísta Marcelo Ariel nos traz uma série de aforismos de Paul Celan, instigante amostra da prosa poética de um dos mais importantes poetas de expressão alemã do século 20.
Marcelo Ariel é autor de Tratado dos anjos afogados (Letra Selvagem), Com o Daimon no contrafluxo (Patuá), Ou o silêncio contínuo – poesia reunida 2007-2019 (Kotter), Nascer é um incêndio ao contrário (Kotter, 2020) e Subir pelo inferno, descer pelo céu (Kotter, 2021), entre outros.
Atuou como ator/roteirista no filme Pássaro transparente de Dellani Lima e gravou o disco de spoken word Contra o nazismo psíquico com o Projeto Scherzo Rajada. Atualmente coordena cursos de filosofia e escrita em São Paulo e prepara o livro de ensaios A hiperinclusão – processos de cura da ferida colonial e a novela A Vida de Clarice Lispector.
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A obra do poeta e tradutor romeno Paul Pessakh Antschel, que assinava como Paul Celan, é uma cristalização de algo quase impossível de ser dito. Sobrevivente dos campos de concentração nazista, fez de seus livros uma refutação da infeliz frase de Adorno sobre a impossibilidade de escrever poesia diante de grandes tragédias. De sua obra sintética e densa escolhi algo de sua pouco conhecida prosa poética.
Estes aforismos foram publicados em março de 1949 em seus diários “Die Tat” e nomeados como “Gegenlicht” / Contraluz. Mesmo nesta pequena amostra é possível perceber uma certa transfiguração do silêncio que é o vetor principal de sua poética. Celan conversa profundamente conosco ao propor uma comunicação de estados difíceis de atravessar com palavras diretas e uma objetividade concisa. É como se a angústia que raramente possui um objeto e se dissipa irremediavelmente na paisagem, encontrasse palavras capazes cortá-la ao meio. – Marcelo Ariel
O coração permanece escondido num canto escuro, sólido como uma pedra filosofal.
Das Herz blieb im Dunkel verborgen und hart, wie der Stein der Weisen.
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Era primavera e as árvores voaram para seus pássaros.
Es war Frühling, und die Bäume flogen zu ihren Vögeln.
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Será inútil falarmos em justiça se o maior de todos os navios de guerra não se despedaçar diante do corpo de um afogado.
Man redet umsonst von Gerechtigkeit, solange das größte der Schlachtschiffe nicht an der Stirn eines Ertrunkenen zerschellt ist.
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Tão forte era seu amor que ela teria facilmente levantado
a tampa de seu caixão, se a flor que estava lá não fosse tão pesada.
So groß war seine Liebe zu ihr, dass sie vermocht hätte, den Deckel seines Sarges aufzustoßen – wäre die Blume, die sie auf diesen gelegt, nicht so schwer gewesen.
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O abraço durou tanto que o amor se converteu novamente em desespero.
So lange währte ihre Umarmung, dass die Liebe an ihnen verzweifelte.
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Enterrem as flores e enfeitem os túmulos com os homens
Vergrabe die Blume und lege den Menschen auf dieses Grab.
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É inútil trocar: esta última lâmpada não fornece mais luz porque a escuridão em volta de tudo entrou em si mesma.
Täusche dich nicht: nicht diese letzte Lampe spendet mehr Licht – das Dunkel rings hat sich in sich selber vertieft.
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Os olhos do enforcado ainda estavam abertos quando ele foi retirado da forca. O carrasco então com um gesto veloz os fechou. Os espectadores perceberam isto e, envergonhados, baixaram os olhos.
Neste minuto, a forca se comportou como uma árvore, mas como ninguém tinha os olhos abertos, não é possível que se tenha percebido o que efetivamente acontecera.
Als man den Gehenkten vom Galgen knüpfte, waren seine Augen noch nicht gebrochen. Rasch druckte der Henker sie zu. Die Umstehenden hatten es jedoch bemerkt und senkten ihre Blicke vor Scham.
Der Galgen aber hielt sich in dieser Minute für einen Baum, und da niemand die Augen offen hatte, ist es nicht möglich, festzustellen, ob er es nicht auch in der Tat gewesen ist.
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“Tudo flui”: esse pensamento também, mas não é capaz de mais uma vez tornar a mesa farta?
“Alles fließt”: auch dieser Gedanke, und bringt er nicht alles wieder zum Stehen?