“Volta pra base e vai procurar entender”

“Volta pra base e vai procurar entender”
O rapper Mano Brown, que a poucos dias da eleição criticou o PT em ato eleitoral do partido no Rio de Janeiro (Foto: Divulgação)

 

Passamos os últimos anos mobilizados na defesa de algumas bandeiras que, sem exceção, foram derrubadas. Já gritamos “não vai ter golpe”, “fora Temer”, “Lula livre”, “ele não”, “vai dar Haddad”, e não colhemos exatamente o que queríamos. Foram causas muito diferentes entre si, claro, mas posso dizer que os grupos que posso chamar de “nós” nessas diversas causas eram compostos normalmente pelas mesmas pessoas, unidas sempre na defesa de algo que podemos ainda chamar de democracia. Ou melhor: unidos quando a ofensa à democracia se tornou mais gritante.

Hoje, olhando para esse histórico de uma perspectiva que era exatamente a que pretendíamos evitar – a primeira semana após a vitória de Bolsonaro –, podemos ver com mais clareza as conexões entre as bandeiras que vínhamos defendendo. Mais que tudo, a nomeação do juiz-símbolo da perseguição ao PT para um superministério no novo governo amarra as pontas do projeto de tomada do poder que não teria sucesso sem derrubar Dilma, manter Temer, prender Lula e eleger Bolsonaro.

O ciclo se completou e, assim, entramos numa nova fase, em que provavelmente nossas condições de defender bandeiras contrárias ao governo – nas ruas, na imprensa, nas instituições de ensino – serão reduzidas. E isso é bastante grave, porque não é exata ou simplesmente Bolsonaro que chega ao poder. A meu ver, ele assume uma parte do poder, justamente o poder de impedir que circulem ideias contrárias ao autoritarismo indispensável à imposição das medidas impopulares que seu governo tomará. E a outra parte do poder do novo governo estará nas mãos do grupo responsável por medidas que devem dificultar ainda mais a vida da classe média para baixo neste país.

Não fomos ainda plenamente apresentados a esse grupo, às pessoas e ideias que representam, mas sua figura central é o superministro da Fazenda, Paulo Guedes, que, nas poucas ocasiões em que se manifestou, não se preocupou em poupar informações sobre os diversos alvos que pretende atingir, em especial no campo dos direitos sociais. Do fim do décimo terceiro às mudanças profundas no Sistema S, tudo que saísse da boca de Paulo Guedes custaria muitos votos. Portanto, não é uma coincidência qualquer que esse grupo, até aqui, tenha passado silenciosamente por trás da campanha ruidosa do novo presidente nas redes sociais, uma campanha que foi cuidadosamente conduzida com uma via de mão única, sem qualquer exposição ao contraditório com os adversários que pudesse levar à revelação dos objetivos econômicos de seu governo.

Agora, passada a eleição, Bolsonaro, Guedes, Moro e toda sua equipe poderão falar com mais clareza sobre o que pretendem fazer durante o mandato, principalmente medidas que poderiam ter dado outro rumo aos votos que recebeu. Pode-se esperar daí que a oposição ao seu governo deve ser fortalecida por muita gente que votou nele ou estava indiferente a uma disputa entre Bolsonaro e PT. Antes mesmo de 1º de janeiro, as medidas de transição de Bolsonaro devem começar a abrir os flancos do novo governo para uma crítica profunda a partir da perspectiva dos trabalhadores.

No próximo ano, quando o projeto econômico do governo Bolsonaro começar a ser implantado, a insatisfação popular com seu governo deve subir rapidamente, e então seremos apresentados às medidas autoritárias que o “braço militar” do novo governo estará disposto para garantir sua sobrevivência num ambiente social e mesmo político que o reprove. Parece esquemático demais, mas me parece evidente que o novo governo vai se caracterizar por esse misto do neoliberalismo e autoritarismo, em que este crescerá à medida que aquele venha a ser reprovado pela população.

Durante o período eleitoral foi muito difícil demonstrar essa tendência para a maior parte do eleitorado, ainda mais porque sua crítica era vista como defesa da volta do PT ao governo, num momento em que os governos petistas são vistos como a causa de todos os males, inclusive das mamadeiras com bico de pênis. Para além das fake news, tudo o que se podia dizer contra Bolsonaro e a favor de Haddad batia sempre no mesmo muro: “mas o PT destruiu o país”. Some-se a isso que boa parte da crítica a Bolsonaro era feita num recorte político – contra o fascismo – e numa linguagem – a dos “textões”, por exemplo – que lamentavelmente não chegam até onde chegam as infinitas e mirabolantes mensagens “patrocinadas” de Whatsapp.

Mas não temos tempo para lamber feridas: a propaganda de Bolsonaro foi mais eficiente e o resultado está dado. Se há algo positivo a partir daqui, é que não vamos mais lutar contra um fantasma que só se manifesta em canais unilaterais. Teremos, agora, um adversário concreto, fazendo coisas concretas e, claro, disposto a nos calar concretamente para levar em frente seu projeto antidemocrático de país.

Bolsonaro sai do plano dos discursos e vai para a prática. Sai do mundo das promessas e tem que começar a realizar. A partir de agora, não vai mais ser suficiente, para defendê-lo, dizer que “os outros já sabemos como são, vamos dar uma chance a alguém diferente”. Seu slogan – “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” – agora é só um slogan, incapaz de manter seu 57,8 milhões de eleitores satisfeitos.

Também não podemos estar satisfeitos com os discursos, slogans e hashtags que criamos do lado de cá. Todas as nossas lutas até aqui em defesa da democracia, registradas em abaixo-assinados gigantescos, foram vencidas por esses que agora serão governo, por trás de um presidente que se limitava a dizer “tem que mudar isso aí”. Agora eles têm a oportunidade de “mudar isso aí” e, de nossa parte, também temos muito a mudar. Se o governo deles começa agora, começa também uma nova etapa da nossa luta, que não nasceu na eleição, tampouco termina nela.

Poucos dias antes da eleição, Mano Brown subiu ao palco de um ato no Rio de Janeiro e desagradou muita gente que esperava palavras de entusiasmo fácil: “Tem uma multidão que precisa ser conquistada ou vamos cair no precipício. […] Deixou de entender o povão já era. […] tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base e vai procurar entender”. O poeta deixou claro, ali, que não estava falando para ganhar a eleição (porque já entendia que estava perdida), mas para preparar a luta que vem pela frente. Acredito que em suas palavras há o essencial do que devemos fazer para que, quando o novo governo começar a mostrar suas cartas e garras, tenhamos condições de disputar politicamente os rumos do país. Sem isso, continuaremos tão vulneráveis a Bolsonaros e coisas piores quanto estivemos até aqui.

TARSO DE MELO é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. É um dos coordenadores do ciclo de leituras de poesia Vozes Versos (Tapera Taperá) e do selo Edições Lado Esquerdo.

(2) Comentários

  1. Bom texto. Para todos que não concordam com os cerceamentos do Estado policialesco antidemocrático, é hora de manter a resistência, ou melhor, um contra-ataque pacífico formado pelos movimentos sociais e instituições que defendem a democracia. Os conservadores retrógados que no passado deram golpes de Estado no Brasil, ao longo da história, diziam que tais arbitrariedades eram necessários para que houvesse Ordem e Progresso. Esses nunca aceitaram visões diferentes de mundo, de religião etc.

Deixe o seu comentário

TV Cult