Mãe com maiúscula

Mãe com maiúscula
O escritor português Valter Hugo Mãe (Foto: Rita Rocha)

 

Nascido em Angola há 40 anos, o escritor português Valter Hugo Mãe, que causou furor na nona edição da Festa Literária Internacional de Paraty, em julho passado, fala à CULT sobre seu novo livro, O Filho de Mil Homens (ainda sem previsão de lançamento no Brasil).

O romance trata da tristeza de não ter tido um filho – o que, segundo ele, é autobiográfico somente nesse ponto, sendo todo o resto ficcional. “Serviu-me para pensar acerca dessa aventura de se querer cuidar de alguém, de se querer alguém como herdeiro genuíno de todo um mundo de afetos que somos e em que se traduz a vida inteira”, diz.

Sobre sua participação na Flip, cujo vídeo no YouTube contava com 25.178 visualizações até o fechamento desta edição (a visualização média dos demais vídeos no canal oficial do evento é de menos de mil cada), avalia com “gratidão infinita e uma muito boa saudade”, e compartilha suas impressões sobre a argentina Pola Oloixarac, com quem dividiu a mesa: “Ela esteve muito desconcentrada”.

Além disso, Mãe dá pistas sobre sua próxima obra – se passa na Islândia e tem um personagem que “levanta dúvidas na comunidade acerca do seu gênero” –, indica o Brasil como principal agente motivador de seu sucesso e compara o mercado do país com o de Portugal: “Nenhum autor português vende mais no Brasil [do que em Portugal]. O sonho tem de ser muito realista”.

E também explica por que voltou a escrever seu nome, que é fictício, com letras maiúsculas (o verdadeiro é Valter Hugo Lemos).

CULT – Por que voltou a grafar seu nome com maiúsculas?

Valter Hugo Mãe – Foi o momento certo para a mudança. Era muito redutora a forma como muita gente falava dos meus livros, como sendo apenas os daquele escritor das minúsculas. Não gostaria de passar a vida toda sendo catalogado de modo tão redutor, e não queria passar a vida toda investindo numa fórmula.

Prefiro buscar tudo de novo, outra vez, mesmo me arriscando a falhar. Falhar por risco é muito mais digno do que falhar por casmurrice, essa insistência infinita numa descoberta que, com o tempo, vai perdendo todo o interesse.

Por que escolheu a palavra “mãe” como nome artístico?

Percebi que a mãe, numa generalização, será o ser humano mais capaz de um amor incondicional. Por utopia, o escritor, ou o artista, procurará suscitar por uma obra o mesmo sentimento de proteção incondicional. Procuramos sempre uma obra que nos pareça imprescindível. Claro que nenhum livro valerá por um filho, mas todos sonham com valer assim.

Falando em filho, seu livro trata de um homem que chega aos 40 anos sem ter tido um. Até que ponto é autobiográfico?

Apenas nesse ponto. Todo o restante é ficcional, no que aos fatos diz respeito. Acontece de o livro me ter servido para pensar acerca dessa aventura de se querer cuidar de alguém, de se querer alguém como herdeiro genuíno de todo um mundo de afetos que somos e em que se traduz a vida inteira.

Cheguei aos 40, não tenho filhos, talvez gostasse de ter um, mas não estou em urgência alguma e, sobretudo, não abri qualquer concurso para encontrar uma mãe. Isso importa-me cada vez mais dizer às pessoas.

Em seu livro, o protagonista é um transexual. A questão da identidade é crucial em sua produção?

Estou a escrever um livro em que um dos personagens levanta dúvidas na comunidade acerca de seu gênero. Ninguém saberá se se trata efetivamente de uma mulher ou de um homem vestido de mulher.

O livro está em oficina. Não quero adiantar muito, mas posso dizer que é um livro passado na Islândia. Amo a Islândia e quero muito inventar uma história cheia de frio e mar, cheia de gente muito abandonada e resistente.

Mas o livro trata também de preconceito, retratado principalmente por meio do personagem homossexual Antonino. Já sofreu algum tipo de preconceito?

Creio que todos sofremos, em algum momento. Fui muito discriminado por ser tímido na minha juventude. Falava pouco e sentia-me muito desenquadrado. Escrevia para superar a incapacidade de fazer amigos ou ser mais social.

Como nasci em Angola, também me lembro de passagens em que me rejeitaram por ter vindo da “terra dos pretos”, coisa que me ofendia. Chamavam-me preto e eu ficava muito surpreendido. Num certo sentido, acho que gostava muito de ter nascido negro por glorificação desse lugar onde nasci. Mas nasci branco. Nada a fazer em relação a isso.

A morte está bastante presente em sua obra. Qual a sua concepção a respeito?

Todos os temas são vida ou morte. No fundo, estamos todos a pensar para que serve estar vivo e em que se definirá a morte. São as questões principais, e a literatura deve ter paciência apenas para as questões principais. O resto é um pouco mediania.

No romance, o personagem Alfredo diz a seu neto ser uma pena a falta de leitura não se converter numa doença. E o menino imagina que os livros podem controlar o colesterol. Vivemos em uma época avessa à leitura?

Não diria que estamos numa época avessa à leitura, porque é claro que nunca como agora se leu tanto. Nunca o livro foi tão acessível e, por outro lado, os novos meios implicam muito texto, muita leitura e muita escrita. Nunca como agora o cidadão comum passou tanto tempo a escrever, como, por exemplo, nas mensagens de celular e nas plataformas virtuais.

A questão estará em saber se a literatura é ainda pertinente no nosso tempo. A mim parece-me que sim. Que a literatura é meditação, é uma proposta de pensar melhor, ir mais adiante e, como tal, interessa proteger. Daí a questão sempre presente de saber como divulgar, como seduzir os não leitores para a magnitude do gesto da leitura.

Acredito que quem não lê tem como que uma cabeça mais pequena. É como decidir ter um pensamento mais limitado, uma vida mais limitada.

No final do livro, você se descreve como “filho de mil homens”. Quem são?

Todos quantos me precederam e fizeram o mundo onde vivo. Todos quantos, por boa ou má-fé, deixaram as coisas no ponto onde as pego eu. Importa-me muito pensar na minha vida como um lugar de passagem em que posso deixar uma melhor herança.

Essa ideia de que os afetos e o ensinamento da humanidade são efetivamente o melhor que temos para legar. Adoraria pensar em mim como alguém que pode influir em mil vidas no sentido de as querer melhor, mais justas, mais apaziguadas com o destino de ser gente.

Além de escrever, você também se dedica à música e às artes plásticas. Tem pretensões profissionais nessas duas áreas?

Não. Rigorosamente nenhuma. Sempre explico que sou apenas um amador, alguém que ama as artes plásticas e a música. Não é algo para ser levado demasiado a sério.

Passados cinco meses, como avalia sua participação na Flip?

Não poderia deixar de avaliar a partir de uma gratidão infinita e uma muito boa saudade. Foi um momento lindo. Não vou esquecer nunca.

Como foi dividir a mesa com a escritora argentina Pola Oloixarac – gostou de seu livro?

Ela esteve muito desconcentrada, creio. Não sei se teve dificuldade em entender o que dizíamos em português. Li o livro dela a correr, por respeito ao fato de dividir o palco com ela. Pareceu-me um bom livro, sério, embora um pouco atrapalhado em algumas ideias. Com um bom final, talvez. Está a ser agora publicado em Portugal, mas não existe o entusiasmo que percebi existir no Brasil.

Sua poesia é muito mais traduzida do que seus romances – contudo, no Brasil, acontece o contrário. Percebe uma diferença entre os seus leitores portugueses, os brasileiros e os do resto do mundo? Sente-se mais poeta ou romancista?

Sou um romancista que começou com a poesia e que não quer, de algum modo, deixar de ser ainda poeta. Existem, sim, muitas traduções da poesia, mas surgem cada vez mais pedidos para a tradução dos romances, creio que é uma questão de ser agora o momento certo para outras coisas.

Têm sido uns anos muito motivadores, e o Brasil figura no topo desse agente motivador.

Acredita que a experiência do exílio tem um impacto na atual literatura portuguesa, como um todo, e na sua obra, em particular?

Não creio. Não poderei falar pela literatura portuguesa, mas nos meus livros essa questão não está colocada ainda. Os nossos políticos conseguem sempre humilhar o país e mais uma vez dão provas de que temos sucessivos governos sem rumo, para não dizer pior.

Mas a democracia que conseguimos é muito clara e a manifestação das convicções e a ação de cada um são livres. Isso é fundamental. A minha geração é muitas vezes obrigada a emigrar por uma questão de sobrevivência financeira, mas não exatamente exilada, escapando a um sistema perverso.

Portugal vive a maior recessão dos últimos 40 anos, com uma economia fortemente abalada, bancos descapitalizados, alta taxa de desemprego… Como a literatura portuguesa mimetiza essa situação?

Os meus livros vêm falando disso. Em o apocalipse dos trabalhadores [sem previsão de lançamento no Brasil], abordo um pouco a questão da precariedade. Não sei se outros livros estão já a falar da questão. É tudo ainda muito novo e existe uma dificuldade de perceber a questão. Não faltarão livros adiante. Estou convencido de que surgirão alguns dos escritores de referência.

Vários escritores portugueses têm feito sucesso no Brasil. O mercado brasileiro está se tornando mais importante do que o português para os escritores de Portugal?

Não, mais importante, não. Creio que nenhum autor português vende mais no Brasil do que em Portugal. O sonho em relação ao Brasil tem de ser muito realista. O Brasil tem os seus heróis e assim deve ser.

Em Portugal, o meu último livro entrou direto no primeiro lugar de vendas e assim ficou durante um mês; isso passa por uma relação de proximidade e identidade que cada autor acaba por ter com seu país.

Enfim, também são aqueles que são obrigados a suportar-me mais, nem que não queiram, porque vivo e sou daqui e levanto minha voz por direito.

Qual a sua opinião sobre os escritores conterrâneos António Lobo Antunes e Gonçalo M. Tavares?

São dois autores que muito prezo. Absolutamente distintos, o António Lobo Antunes pertence a uma geração muito já plenamente definida. O Gonçalo M. Tavares tem a minha idade, ainda tem muito a definir e a fazer. São diferentes por completo.

O primeiro pensa a portugalidade, sobretudo, a partir da questão da descolonização, e o segundo parece austríaco, uma espécie de Kafka em 2011, mais dedicado a alegorias e grandes metáforas, sempre com personagens de nome alemão, criando uma esquizofrenia de lugar muito estranha e interessante.

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