O lugar onde as andanças nômades chegam ao seu fim: “Moldávia”, de Timo Berger, e outros lançamentos
Verônica, a expatriada argentina, é uma das chaves para leitura de Moldávia e outras histórias, coletânea de contos do alemão Timo Berger que acaba de ser lançada pelas Edições Jabuticaba. Não por acaso, é a única personagem, além do narrador em primeira pessoa, que aparece em mais de uma narrativa, obcecada por países que significam uma fronteira entre o mundo conhecido e um destino insólito, no limiar da invenção.
Basta dizer que, no conto que abre e dá título ao livro, Verônica está hospedada na casa do narrador e vive com ele algo que poderia ser uma história de amor, mas que nunca sai do campo das possibilidades, dos jogos de insinuação e de afastamento. O desejo é marcado pela imprecisão, pela incapacidade de se conhecer o que se quer; e é nesse contexto que Moldávia, nos confins da Europa, surge como um idílio sonhado ou, como diria a personagem, o lugar onde as andanças dos nômades chegam ao seu fim.
Com isso, Verônica não apenas anuncia ao narrador (e por consequência a quem lê) o quinhão de possibilidades que apenas pode existir num território inventado, como apresenta um tema que vai permear o livro: o nomadismo. Afinal, a grande maioria dos contos trata de relações do autor com estrangeiros ou com o próprio autor assumindo esta condição, longe de casa, em viagem por diversos países.
Daí, é um passo para que o nomadismo apresentado em Moldávia e outras histórias não seja apenas geográfico, mas também das relações humanas. Sucedem-se narrativas que não são mais do que breves relatos, recortes da vida sem grandes acontecimentos ou significados, enumeração de possibilidades frustradas ou simplesmente deixadas de lado.
Com a persuasão da melancolia, Berger trata da impossibilidade de se obter alguma clareza sobre o próprio desejo, expondo o sentimento de uma juventude ora alienada, ora em fuga, mas que pouco a pouco vai consolidando uma ideia de desperdício, de existência composta por adiamentos e desistências; e é assim, entre a amargura e a desolação, que Verônica retorna, já num dos contos finais, agora se referindo ao narrador como um “macedônio”, e por “macedônio” ela quer dizer alguém que vê a vida passar ao largo.
E o que se sucede, após Verônica proferir o seu veredito e sair da cena, é o conto que encerra o livro e que, numa primeira leitura, parece deslocado em relação às demais narrativas que compõem o volume. Contudo, um olhar mais atento revela significativas conexões com o universo apresentado por Berger. Retorna a Moldávia, ou melhor, surgem os moldavos, agora expatriados nos subúrbios de Berlim, moradores de uma casa que também teria servido de residência ao escritor Kafka.
Sem antecipar detalhes do conto, é justo dizer que esta casa em ruínas assume o mesmo significado que Moldávia teve para Verônica no conto que abre o livro – o local onde termina uma peregrinação – e, numa interpretação mais ampla, o mesmo significado que um castelo tem para o agrimensor K. no monumental e inacabado romance O castelo: um lugar que se busca acessar com a força de uma obsessão para a conquista de algo que pode ser interpretado como uma verdade íntima e profunda que justifica toda uma existência de errância.
A rigor, “Kafka e Eu” é o único fechamento possível para o volume, pois é um desdobramento e um avanço em relação às narrativas anteriores. Pela primeira vez, já não estamos no campo das possibilidades frustradas e da opacidade do desejo, ao contrário, pela primeira vez temos um personagem que avança em relação àquilo que deseja, e o faz com uma obsessão delirante, inventando uma identidade para si e um significado para a sua busca, como que a dizer que apenas no território da invenção a aventura humana pode prosperar. Vale para o amor, vale para a literatura.
Daniel Francoy é poeta. Publicou os livros Identidade (Editora Urutau), vencedor Jabuti na categoria poesia, O Ganges represado (Editora Ututau), A invenção dos subúrbios (Edições Jabuticaba) e O velho que não sente frio e outras histórias (Edições Jabuticaba).
[ficção]
por Redação
Clássico da literatura venezuelana do século 20. Segundo e último romance da autora, traz as recordações de Blanca Nieves, em primeira pessoa, sobre sua infância na fazenda Pedra Azul e a mudança com a família para Caracas. De família aristocrática, Teresa De La Parra reflete sua formação no romance: a vida em Pedra Azul é um idílio, com os traços bucólicos e oníricos de uma rica família de fazendeiros que vive como em um castelo. Pela posição privilegiada dos protagonistas, o romance deixa entrever os conflitos de raça, classe e gênero que envolvem o bem-estar dos fazendeiros: como os choques com os trabalhadores e empregados da fazenda, em sua maioria mestiços, que não são aceitos em seus hábitos e costumes pelos padrões morais dos empregadores.
Em seu quinto livro de poesia, a escritora pernambucana retorna a alguns poemas publicados em seu livro precedente, 13 nudes, e os revisita em outro contexto, somando ao poema de amor o tom político. Dividido em três seções – “raiva, euforia, cansaço”; “writer’s block” e “raiva, esperança, ação” – o título do livro é polissêmico, referindo-se às diversas camadas de significação da palavra chifre, como bem escreve a autora: “Um chifre é uma coisa linda, com funções maravilhosas para quem o tem. É, ao mesmo tempo, adorno e arma. Mas também é uma coisa cheia de metáforas sobre traição e maledicência… Eu queria fazer jus aos chifres, aos touros, às vacas, aos bois, cabras, antílopes, búfalos, veados, impalas, queria fazer jus aos teimosos, aos que não desistem do amor romântico e aos corações daqueles que teimam em seguir lutando, apesar de tudo”.
Reunião de textos de 17 autoras ligadas à cidade de Leme, no interior de São Paulo, em uma espécie de mapeamento da literatura produzida por mulheres fora dos grandes centros urbanos. Bel Parolim, responsável pela seleção e organização da obra, escreve na apresentação do volume que, apesar de Leme ser o eixo central do livro, as produções literárias extravasam qualquer limite geográfico: “São muitas histórias, muitos pontos de vista escancarados por autoras corajosas. São personagens e enredos que nos fazem refletir, rir, nos emocionam e nos enternecem na busca de nossos territórios e mares, faróis e ancoradouros mais íntimos”.
[não ficção]
Reunião de discursos proferidos pelo ativista negro norte-americano entre 1964 e 1965. Escrevendo na época em que a segregação racial ainda imperava nos Estados Unidos, seus discurso são marcados por falas e imagens que insistiam na necessidade de a população negra se revoltar contra as opressões de raça e lutar por seus direitos. “Queria que todos enxergassem a sutileza do racismo. Revolucionário, não se importava em ser chamado de homem preto raivoso, em ser reduzido à figura de incitador de violência contra brancos. Sua revolta vinha de antes. Ele sabia que pessoas pretas revolucionárias sempre seriam taxadas de perigo para a sociedade”, como escreve Preta Ferreira na apresentação da obra. Além dos discursos, a obra inclui entrevistas, cartas e um memorando escrito para a Organização para a Unidade Afro-Americana.
Originalmente publicado em 1991, o livro traz análises sobre a cultura brasileira feitas pelo psicanalista italiano Contardo Calligaris, morto no início deste ano. O objeto inicial era entender porque, ao final dos anos 1980, ele sentira-se tão atraído a estabelecer moradia no Brasil. Tornou-se uma vigorosa análise cultural da nação, que percorre da herança escravocrata à corrupção política. Além do texto original, revisto pelo autor em 2017, a edição traz prefácio inédito de Lilia Schwarcz, um caderno de imagens e cinco ensaios que se embrenham pela psique brasileira.
Psicanalista e psiquiatra, Mario Eduardo Costa Pereira explora em sua obra estatísticas sobre insônia na contemporaneidade e o crescente consumo de medicamentos para dormir. Passa por obras de Shakespeare, como Macbeth e Hamlet, e conceitos de Freud e Lacan, para refletir sobre o estado de alerta e a difícil tarefa de baixar defesas para entregar-se ao dormir. O autor ainda atravessa algumas figuras da tradição escravocrata brasileira, como a da Mãe Preta, ama de leite, cafuné, cantigas e acalantos, para refletir sobre a experiência de dormir brasileira e sua relação com as marcas legadas pela escravidão de mulheres negras.
A autora, doutora em Antropologia pela USP, parte de sua pesquisa de doutorado, na qual acompanhou a rotina dentro de duas delegacias de defesa da mulher, para refletir sobre a relação entre as novas tecnologias e o aumento de ameaças e violências contra a mulher. Um dos pontos-chave dessa reflexão é o nude, que, de artifício de paquera e sedução, pode espalhar-se por milhões de computadores conectados e tornar-se mais uma ferramenta na histórica opressão da mulher.