Arcas de Babel: Luci Collin traduz Diana Goestch

Arcas de Babel: Luci Collin traduz Diana Goestch
Luci Collin traduz Diana Goetsch (Foto: Luciano Paschoal/Svetlana Jovanovitch)

 

A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.

A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.

Nesta Arca, a premiada poeta, ficcionista e tradutora curitibana Luci Collin traz poemas inéditos da contemporânea Diana Goetsch, que ela também apresenta. Essas traduções serão publicadas em livro no ano que vem, pela Editora Roça Nova.

Luci Collin tem mais de 20 livros publicados entre os quais Querer falar (Finalista do Prêmio Oceanos 2015), A palavra algo (Prêmio Jabuti 2017) e Rosa que está (2019). Na USP, concluiu o Doutorado em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês, e dois estágios pós-doutorais em Tradução de Literatura Irlandesa. Traduziu Gertrude Stein, E. E. Cummings, Vachel Lindsay, Gary Snyder, Eiléan Ní Chuilleanáin, entre outros.

 

***

 

Diana Goetsch, nascida no Brooklin, New York, é uma poeta, ficcionista, ensaísta e educadora norte-americana, autora de oito coletâneas de poesia entre as quais In America (2017) e Nameless Boy (2015). Seus poemas foram publicados em importantes revistas e antologias nacionais como The New Yorker, Poetry, The Gettysburg Review, The Iowa Review e Best American Poetry. Recebeu bolsas de estudo da National Endowment for the Arts, da Fundação de Artes de Nova York e o Prêmio Donald Murray de Pedagogia. Graduada em Religião pela Wesleyan University, também diplomou-se com um MA pela New York University e um MFA pelo Vermont College of Fine Arts. Por 21 anos foi professora de escolas públicas em New York City, trabalhando sobretudo com crianças imigrantes e adolescentes em medidas cautelares. Atualmente, tem mantido uma atividade constante como educadora oferecendo palestras, cursos e workshops de escrita criativa por todos os EUA; também é praticante e instrutora de Budismo Tibetano.

A poesia de Goetsch se caracteriza pelo tratamento vívido e coloquial do texto, com tons de ironia; é também ousada e tematiza uma grande variedade de assuntos, questões políticas, questões de gênero e raça, as lembranças da infância e seus traumas, a solidão e o tédio das vidas mecanizadas, o comportamento de estereótipos na sociedade, a violência do discurso e a falta de comunicação, a discriminação sofrida pelo considerado “diferente”, mas também apresenta momentos de percepção daquela porção mais sagrada da vida, da beleza da comunhão e da amizade, a valorização do cotidiano em sua dimensão do que é raro.

Os poemas apresentados aqui fazem parte da coletânea intitulada Menino sem nome, a ser lançado no Brasil pela Editora Roça Nova, do Rio de Janeiro. Esse projeto de tradução foi iniciado pela Laura Di Pietro, diretora editorial da Roça Nova que, ao conhecer a Diana e sua poesia num evento literário, pensou na publicação no Brasil. Laura me passou o encargo da tradução e eu o desenvolvi para um lançamento ainda esse ano, quando Diana viria ao Brasil. Com esse contexto da pandemia, o lançamento foi adiado por um semestre e o livro será publicado no início de 2021.  Fica então uma amostra da sensibilidade poética de Diana Goetsch, esperando que os leitores se emocionem com essa poesia. – Luci Collin

 

 ***

 

Canções de amor

 

Com 12 anos Richard Perry veio da Califórnia
pra arremessar uma bola mais longe do que qualquer um
da vizinhança. Se esse é o tipo de coisa que
você admira  — e pra nós era — você poderia também
admirar outras coisas nele, até sua gagueira,
que se manifestou na rodinha quando ele fez aquele lance
com a palma da mãozorra, seus olhos inteligentes
sinalizando algumas manobras astutas
antes mesmo de emergirem as palavras pra isso, criando
um tipo de suspense encantado, enquanto a defesa esperava
com as mãos nos quadris. Eu era seu receptor favorito,
sempre dando o máximo, durante todo o outono, inverno,
na primavera, quando um dia, depois de várias
piscadas, Richard afirmou o seguinte:
“Canções de amor são as melhores que existem.”
Quatro meninos de 12 anos se entreolharam e, então, voltaram
pro Richard, que desfez a rodinha sem hesitar.
Mais tarde descobriríamos que ele tinha uma garota —
Regina Eiselstein, do outro lado
da rodovia — e apesar de sua afirmação
sobre canções de amor ter parecido meio esquisita,
não é sempre o que acontece, com esse tipo de sentimento,
e você tem que contar pra todo mundo? Pessoalmente,
eu achava canções de amor chatas e bobas, como
assistir aos meus pais jogando bridge, mas essa
também era a ideia dele: nos dizer algo que
não tínhamos como saber. E agora eu gostaria de
ter me rendido a algo, do jeito que
Richard Perry se entregou completamente,
algo que não fiz aos 12 nem aos 20
e nem aos 40 anos. Eu nunca choquei ninguém
com uma confissão tão estranha e terna,
gaguejada sem constrangimento porque
ele tinha amor, ele tinha Regina e uma canção
na cabeça que sabia valer mais
do que seu braço-foguete que podia lançar
bolas de futebol até o céu. E caso não tenha
percebido tudo isso é sobre você.
Você, Julie, numa espiral em direção aos meus braços
como um passe que viajou por 30 anos,
como uma canção que consigo finalmente ouvir.

 

Telêmaco aos 50

 

Meu pai? Já me cansei desse assunto.
Mas você segue perguntando, então aí vai uma história:
na minha infância ele costumava me levar pra velejar
atrás da casa num pequeno esquife.
Cada vez que chegávamos à entrada do porto,
eu ficava em pé e perguntava: “O que tem lá?”
Ele apenas dava a volta pra casa sem dizer uma palavra.
Meu pai nunca me ensinou coisas importantes –
como interpretar os alíseos ou ajustar as velas,
escapar das tempestades ou então segui-las.
Aprendi ao acaso com velhos piratas,
jogadores e malandros, aprendi tarde
e nunca experimentei navios de fato. Mas, de algum modo,
consegui ver o mundo com meus próprios olhos,
terras onde a luz em si é de uma cor diferente,
reluzindo em garotas de pele iridescente,
onde as frutas caem de uma altura assombrosa e têm sabor
apimentado, e seus deuses são cheios de alegria ardente
e moedas de brinquedo tilintam nos meus bolsos
enquanto sigo errante neste mundo maravilhoso.
Não encontra tesouro o coração que fica no porto – meu
pai deve ter sabido disso – eu não sei.
Agora você me diz que ele está perto e se orgulha de mim?
Se orgulha de quem exatamente? E quem é ele?

 

Nadando à Nova Zelândia

 

Uma ou duas vezes na vida você encontra uma mulher
pela qual atravessaria o oceano a nado. O que está fazendo?
amigos perguntam, enquanto você aperfeiçoa a braçada,
enquanto se compadece de todos os excluídos do amor.
Seu único obstáculo, o Pacífico azul:
onde seu sol afunda, ela está se vestindo pela manhã
e, quando o amanhecer retorna, nos atingindo por todo lado
e aumentando o volume na sua cidade,
ela está cerrando persianas, removendo a maquiagem.
Se você fosse o Gatsby construiria uma mansão
em alguma distante enseada do mar da Tasmânia
e daria festas para atraí-la. Você não é,
claro… embora tudo seja possível,
menos a vida sem ela, e então você nada.

 

Transmitindo o Saber

                                                                               os alunos da Webb School, Knoxville, TN

 

 

A primeira vez em que ouvi falar da árvore na floresta
eu estava na aula de música no 8º ano.
O Prof. Warner, baixo, gordinho e de cavanhaque

desenhou uma orelha gigante, um tronco caído e disse:
Não há som a menos que eu esteja lá para ouvi-lo.
Então fez uma pausa para que anotássemos aquilo no caderno.

Andy Schecter escreveu: Como é que ele pode saber?
destacou a folha e passou adiante.
Pobre Prof. Warner, vencido pela garotada de 13 anos

que não usava argumentos, mas infalíveis
detectores de besteiras, prontos pro ataque desde o dia
em que ele leu um trecho da sua tese inacabada

sobre Os Beatles, parando pra gente copiar
suas palavras ipsis litteris. No final do corredor
o Prof. Stetbacher disse à turma de Estudos Sociais

que só existiam três raças de pessoas –
caucasiana, africana e “mongolóide” –
o que deixou os dois porto-riquenhos da escola

se sentindo ainda mais excluídos. Era difícil dizer
qual a raça do Prof. Stetbacher – seu rosto parecia branco
mas seu afro era alto e denso o suficiente

pra segurar lápis. Pra nós ele era gordo
mais do que tudo. O Prof. Hamdallah
era palestino, seja lá o que isso significasse.

Nunca aceite um trabalho sem registro – seu conselho,
repetido diariamente, era tudo que dava pra entender
do seu sotaque. Não consigo lembrar que matéria

ele ensinava, nem ele conseguia, mas é difícil não gostar
de um cara que canta Over the rainbow
todo dia ao entrar na sala de aula tão feliz da vida.

A Srta. Bix, a nova professora de Saúde que todos os garotos
e até algumas das garotas desejavam comer
tentou desesperadamente, e não conseguiu, nos fazer

acreditar que estupro não tinha nada a ver com sexo.
Agradeço a esses dedicados professores,
homens e mulheres que nos forçaram a chegar

às nossas próprias conclusões, já que as suas eram asneiras,
promovendo a autoconfiança, e assim pudemos abordar
as questões importantes pra nossa idade:

se Rebecca Flanagan tinha axilas peludas,
se a ruiva do comercial do perfume Aviance
era mesmo a mãe do Mike Burton,

e por que Pete Falciano, que podia deixar o cosmo no banco de reserva,
aparecia toda segunda-feira com novos hematomas –
perguntas às quais não se encontra respostas em nenhum livro.

E quanto ao Prof. Warner, ele seguiu até completar
sua pesquisa sobre a superestimada banda de rock,
pôs um Dr. na frente do nome e pôs esse nome

no topo de uma coluna que ele escrevia pro diário
local, compartilhando verdades que pareciam só a ele
pertencer, por exemplo, como a Guerra do Vietnã

produziu uma nova geração de homossexuais
ao privar meninos de seus pais.
Ele chamou a coluna de “Transmitindo o saber”,

e, sem dúvida, isso foi muito antes do Reagan
ter dito: Fatos são coisas estúpidas, antes do Clinton
não ter tragado e antes de todo mundo ter declarado

uma Guerra ao Terror – como se fosse possível
bombardear uma ideia, tanto quanto
silenciar a queda de uma floresta com uma teoria.

 

Elaine!

 

Esse amor me faz pensar em Cinema Paradiso,
Salvatore atravessando todo o inverno,
debaixo da janela da filha do banqueiro
esperando o coração dela derreter; ou Benjamin,
no final de A primeira noite de um homem, gritando
o nome da noiva lá do fundo da igreja
como um símio enlouquecido, e afastando a família
com aquela cruz gigante arrancada da parede.
Mas esse tipo de coisa só funciona em filmes –
na vida real acho que é considerado perseguição.
Assim, enquanto espero pela vida em que você me ama,
apenas admirarei as árvores, que permanecem estoicas
todo o inverno, como se não tivessem veias e pulsos,
como se não estivessem agarrando a terra pra sobreviver.

 

***

 

Love Songs

 

At 12 Richard Perry came from California
to throw a football way further than anyone
on the block. If that’s the kind of thing
you admire — and we did — you could also
admire other things about him, even his stutter,
which manifested in the huddle when he drew
plays on his man-sized palms, his intelligent eyes
signaling some clever maneuver moments
before the words for it emerged, creating
a kind of charmed suspense, while the defense
waited hands on hips. I was his favorite receiver,
always going long, all through the fall, winter,
into spring, where one day, after several
blinks, Richard stated the following:
“Love songs are the best songs there are.”
Four 12-year-olds looked at each other, then back at
Richard, who broke the huddle without a play.
Later we would find out he had a girl —
Regina Eiselstein, from the other side
of the highway — and though his assertion
about love songs seemed way out of line,
isn’t it always the case with that kind of feeling,
that you have to tell everyone? Personally
I found love songs boring and stupid, like
watching my parents play bridge, but that
was also his point: to tell us something
we couldn’t know. And I wish now I could
have surrendered to something the way
Richard Perry gave it up completely,
something I didn’t do at age 12 or 20
or even 40. I’ve never shocked anyone
with a confession that strange and tender,
stuttered without embarrassment because
he had love, he had Regina and a song
in his head that he knew was worth more
than his rocket arm which could launch
footballs into the sky. And in case you haven’t
figured it out this is all about you.
You, Julie, spiraling into my arms
like a pass that’s been traveling 30 years,
like a song I can finally hear.

 

Telemachus at 50

My father? I’m tired of the subject.
But you keep asking, so here’s a story:
when I was small he used to take me sailing
out behind the house in a little skiff.
Each time we reached the mouth of the harbor
I’d stand and point and ask,“What’soverthere?”
He’d just turn for home without a word.
My father never taught me things that matter—
how to read the trades or trim the sails,
to outrun storms or else steer into them.
I learned haphazardly from old pirates,
gamblers and ne’er-do-wells, and I learned late,
and I never had much of a ship. But somehow
I managed to see the world with my own eyes,
lands where the light itself is a different color,
shining on girls with iridescent skin,
where fruit falls from astounding heights and tastes
peppery, and their gods are full of fiery joy,
and toy-like coins jangle in my pockets
as I keep wandering this amazing world.
No treasure for the heart that stays in the harbor—my
Father may have known that — I don’t know.
Now you tell me he’s near, and proud of me?
He’s proud of who exactly? And who is he?

 

Swimming to New Zealand

 

Once or twice in life you find a woman
you’d swim the ocean for. What are you doing?
Friends will ask, as you perfect your stroke,
meantime pitying everyone outside of love.
Your only obstacle, the blue Pacific—
Where your sun sinks, she’s dressing in the morning,
and when the dawn comes reaching back around,
turning up the volume in your city,
she’s drawing blinds, removing her make-up.
If you were Gatsby you would build a mansion
In some cove off the Tasmanian sea
and throw parties to lure her in. You’re not
of course — though nothing’s impossible,
except life without her, and so you swim.

 

Wisdom’s Passing               

The first time I heard about the tree in the forest
I was in 8th grade music class.
Short, plump, goateed Mr. Warner

drew a giant ear, a felled trunk and said,
There is no sound unless I’m there to hear it.
Then paused so we could write that in our notebooks.

Andy Schecter wrote, How the hell can he know?
tore out the page and passed it around.
Poor Mr. Warner, overmatched by 13-year-olds

who use, not arguments, but infallible
bullshit detectors, on tilt since the day
he read from his unfinished dissertation

on The Beatles, stopping for us to copy
his words verbatim. Down the hall
Mr. Stetbacher told his Social Studies class

there were only three races of people—
Caucasian, African, and “Mongoloid”—
which made the two Puerto Ricans in the school

feel even more left out. It was hard to tell
Stetbacher’s race — his face looked white
but his afro was big and tight enough

to catch pencils. To us he was more fat
than anything. Mr. Hamdallah
was Palestinian, what ever that was.

Never take a job off the books — his advice,
repeated daily, was all we could hear
through his accent. I can’t recall what subject

he taught, neither could he, but it’s hard to dislike
a man who sings “Pennies from Heaven” as he
enters the room every day drunk on life.

Miss Bix, the new health teacher all the boys
and even some of the girls wanted to bone,
tried desperately and unsuccessfully to get us

to believe rape had nothing to do with sex.
I’m thankful for these dedicated teachers,
men and women who forced us to reach

our own conclusions, theirs being so asinine,
fostering self-trust, so we could tackle
the important questions of our age:

whether Rebecca Flanagan had hairy armpits,
if the red head on the Aviance perfume
commercial was really Mike Burton’s mom,

and why Pete Falciano, who could bench the universal,
showed up each Monday with new bruises—
questions you couldn’t find answers to in any book.

As for Mr. Warner, he went on to complete
his research on the overrated rock group,
put a Dr. in front his name, and put that name

at the top of a column he penned for the local
gazette, sharing truths only he seemed
to possess, such as how the Vietnam War

spawned a new generation of homosexuals
by depriving boys of their fathers.
He called the column “Wisdom’s Passing”—

and it certainly was, long before Reagan
said, Facts are stupid things, before Clinton
didn’t inhale, and before everyone declared

a War on Terror—as if you could
bomb an idea, any more than you can
silence a falling forest with a theory.

 

Elaine!

 

This love makes me think of Cinema Paradiso,
Salvatore standing through the winter
beneath the window of the banker’s daughter
waiting for her heart to thaw; or Benjamin
at the end of The Graduate, screaming
the bride’s name from the back of the church
like a crazed ape, then fending off her family
with the mammoth cross ripped from the wall.
But that kind of thing only Works in movies—
In real life I think it’s called stalking.
So while I wait for the life in which you love me,
I’ll just admire the trees, standing stoically
all winter, as if they didn’t have veins and pulses,
as if they aren’t gripping the earth for dear life.


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