Arcas de Babel: Piero Eyben traduz Louise Glück
Piero Eyben traduz oito poemas de Louise Glück, vencedora do Nobel de Literatura em 2020 (Fotos: Divulgação e Sigrid Estrada/AP)
A poeta estadunidense Louise Glück, ainda inédita em livro no Brasil, tinha acabado de receber o Prêmio Nobel de Literatura e já começavam a aparecer em blogs e nas redes sociais inúmeras traduções de seus poemas. Essa recepção espontânea, ainda não absorvida pelo mercado editorial, mostra a vitalidade da produção poética contemporânea e sua íntima ligação com a experiência de traduzir.
Para dar visibilidade a essas traduções brasileiras já existentes e apresentar a obra de Louise Glück a um público mais vasto, a Arca de Babel desta semana é coletiva. Essa edição especial reúne traduções de poemas de Louise Glück por seis poetas: Camila Assad, Mariana Basílio, Piero Eyben, Guilherme Gontijo Flores com Adalberto Müller e Thiago Ponce de Moraes, a quem agradeço pelas belas contribuições.
Piero Eyben é poeta, professor de Teoria da Literatura na Universidade de Brasília, traduziu Jacques Derrida, James Joyce, Jean-Luc Nancy, Safaa Fathy. Publicou os livros de poesia ocos (Lumme editor), voo de rapina, Trilogia de perdas (Editora Horizonte), Algum olhar apesar (7Letras), Filete de sangue, A galope, Loa contínua e Nome próprio (C14, casa de edição).
Entre os livros de teoria e filosofia, publicou Escritura do Retorno: meta-signo em Mallarmé e Joyce, Dizer – da aporia, Abismo por paixão (Horizonte), Poesia pandemia (plaquete da coleção O Tranca Rua) e A origem da escrita, além de ter organizado mais de dez livros teóricos e ter publicados diversos ensaios acadêmicos nas mais diversas revistas. Ele traduz os poemas “Canção de ninar”, “Imagem espelhada”, “Posfácio”, “Solstício de verão”, “De um diário”, “Averno”, “Parábola da besta” e “A vestimenta”, além de assinar o ensaio de apresentação da obra de Glück.
Canção de ninar
Hora de descansar agora; você teve
excitação bastante por hora.
Crepúsculo, então início da noite. Vagalumes
na sala, piscando aqui e ali, aqui e ali,
e a doçura profunda do verão enchendo a janela aberta.
Não pense mais nessas coisas.
Ouça minha respiração, sua própria respiração
como os vagalumes, cada breve respiração
uma erupção em que o mundo aparece.
Cantei bastante para você numa noite de verão.
Vou te conquistar no final; o mundo não pode te dar
esta visão contínua.
Você deve ser ensinado a me amar.
Os seres humanos devem ser ensinados a amar
silêncio e escuridão.
(de “The wild íris”)
Imagem espelhada
Esta noite me vi na janela escura como
a imagem do meu pai, cuja vida
foi gasta assim,
pensando na morte, com a exclusão
de outros assuntos sensuais,
então, ao fim, aquela vida
foi fácil desistir, uma vez que
não continha nada: mesmo
a voz da minha mãe não conseguiu fazê-lo
mudar ou voltar atrás
como ele acreditava
que uma vez que você não pode amar outro ser humano
você não tem lugar no mundo.
(de “Ararat”)
Posfácio
Lendo o que acabei de escrever, agora acredito
Parei precipitadamente, de modo que minha história parece ter sido
ligeiramente distorcida, terminando, como estava, não abruptamente
mas em uma espécie de névoa artificial do tipo
pulverizada em estágios para permitir mudanças difíceis de aspecto.
Por que eu parei? Algum instinto fez
discernir uma forma, o artista em mim
intervindo para parar o tráfego, por assim dizer?
Uma forma. Ou o fado, como dizem os poetas,
intuído naquelas poucas horas atrás –
Eu devo ter pensado assim uma vez.
E ainda não gosto do termo
que me parece uma muleta, uma fase,
a adolescência da mente, talvez –
Ainda assim, foi um termo que eu mesma usei,
frequentemente para explicar minhas falhas.
Fado, destino, cujos desígnios e avisos
agora me parecem simplesmente
simetrias locais, metonímicas
bugigangas dentro de uma confusão imensa –
Caos foi o que vi.
Meu pincel congelou – eu não conseguia pintar.
Escuridão, silêncio: essa era a sensação.
Como chamamos isso então?
Uma “crise de visão” correspondente, eu acredito,
para a árvore que confrontou meus pais,
mas enquanto eles foram forçados
avançar para o obstáculo,
Eu recuei ou fugi –
A névoa cobriu o palco (minha vida).
Os personagens iam e vinham, os trajes eram trocados
minha escova se moveu de um lado para o outro
longe da tela,
lado a lado, como um limpador de para-brisa.
Certamente este era o deserto, a noite escura.
(Na verdade, uma rua movimentada em Londres,
os turistas agitando seus mapas coloridos.)
Fala-se uma palavra: eu.
Fora deste fluxo
as grandes formas –
Eu respirei fundo. E veio a mim
a pessoa que recuperou o fôlego
não era a pessoa da minha história, sua mão infantil
segurando o lápis com confiança –
Eu tinha sido essa pessoa? Uma criança, mas também
um explorador para quem o caminho fica subitamente claro, para quem
a vegetação parte –
E além, não mais protegido da vista, aquela exaltada
solidão que Kant talvez experimentou
em seu caminho para as pontes –
(Compartilhamos um aniversário).
Lá fora, as ruas festivas
foram amarradas, no final de janeiro, com exaustas luzes de Natal.
Uma mulher encostada no ombro de seu amante
cantando Jacques Brel em seu fraco soprano –
Bravo! a porta está fechada.
Agora nada escapa, nada entra –
Eu não me movi. Eu senti o deserto
esticando-se à frente, esticando-se (parece agora)
por todos os lados, mudando enquanto eu falo,
de modo que eu estava constantemente
cara a cara com o vazio, que
enteado do sublime,
que, ao que parece,
tem sido meu assunto e meu meio.
O que meu gêmeo teria dito, se meus pensamentos
o alcançassem?
Talvez ele tivesse dito
no meu caso não havia obstáculo (para fins de argumentação)
depois do qual eu teria sido
encaminhado à religião, o cemitério onde
questões de fé são respondidas.
A névoa havia se dissipado. As telas vazias
foram viradas para dentro contra a parede.
O gatinho está morto (assim dizia a música).
Devo ser erguido da morte?, o espírito pergunta.
E o sol diz que sim.
E o deserto responde
sua voz é areia espalhada pelo vento.
(de “Faithful and virtuous night”)
Solstício de verão
Em noites como esta costumávamos nadar na pedreira,
os meninos inventando jogos que os obrigam a arrancar as roupas das meninas
e as meninas cooperando, porque elas tinham novos corpos desde o verão passado
e elas queriam exibi-los, os bravos
pulando das rochas altas – corpos aglomerando-se na água.
As noites eram úmidas, paradas. A pedra era fria e molhada,
mármore para cemitérios, para prédios que nunca vimos,
prédios em cidades distantes.
Em noites nubladas, você fica cego. Naquelas noites, as rochas eram perigosas,
mas, por outro lado, tudo era perigoso, era isso que queríamos.
O verão começou. Então meninos e meninas começaram a formar pares
mas sempre havia alguns sobrando no final – às vezes eles ficavam vigiando,
às vezes eles fingiam sair juntos como o resto,
mas o que eles poderiam fazer lá, no bosque? Ninguém queria ser eles.
Mas eles apareceriam de qualquer maneira, como se alguma noite sua sorte fosse mudar,
o destino seria um destino diferente.
No início e no fim, contudo, estávamos todos juntos.
Depois das tarefas noturnas, depois que as crianças menores estavam na cama,
então estávamos livres. Ninguém disse nada, mas sabíamos as noites em que nos encontraríamos
e as noites que não. Uma ou duas vezes, no final do verão,
podíamos ver que um bebê ia sair de todo aquele beijo.
E para aqueles dois, foi terrível, tão terrível quanto estar só.
O jogo acabou. Sentávamos nas rochas fumando cigarros,
preocupando-se com aqueles que não estavam lá.
E então, finalmente, caminhar para casa pelos campos,
porque sempre havia trabalho no dia seguinte.
E no dia seguinte, éramos crianças de novo, sentados nos degraus da frente de manhã,
comendo um pêssego. Só isso, mas parecia uma honra ter uma boca.
E depois ir para o trabalho, o que significava ajudar no campo.
Um menino trabalhava para uma senhora, construindo prateleiras.
A casa era muito velha, talvez construída quando a montanha foi construída.
E então o dia desvaneceu. Estávamos sonhando, esperando a noite.
Parados na porta da frente no crepúsculo, observando as sombras se alongarem.
E uma voz na cozinha sempre reclamando do calor,
querendo que o calor parasse.
Então o calor acabou, a noite ficou clara.
E você pensou no menino ou na menina que conheceria mais tarde.
E você pensou em entrar no bosque e se deitar,
praticando todas aquelas coisas que você tinha aprendido na água.
E embora às vezes você não pudesse ver a pessoa com quem estava,
não havia substituto para essa pessoa.
A noite de verão brilhava; no campo, vagalumes cintilavam.
E para aqueles que entendiam dessas coisas, as estrelas enviavam mensagens:
Você vai deixar o vilarejo onde nasceu
e em outro lugar você se tornará muito rico, muito poderoso,
mas sempre você lamentará algo que deixou para trás, mesmo que você não consiga dizer o que foi,
e eventualmente você voltará para buscá-lo.
(de “A village life”)
De um diário
Uma vez tive um amante,
Duas vezes tive um amante,
facilmente três vezes amei.
E entre
meu coração se reconstruiu perfeitamente
como um verme.
E meus sonhos também se reconstruíram.
Depois de um tempo, percebi que estava vivendo
uma vida completamente idiota.
Idiota, devastada –
E algum tempo depois, você e eu
começamos a nos corresponder, inventando
uma forma inteiramente nova.
Intimidade profunda à grande distância!
Keats para Fanny Brawne, Dante para Beatrice –
Não se pode inventar
uma nova forma em
um personagem antigo. As cartas que enviei permaneceram
imaculadamente irônicas, indiferentes
mas francas. Enquanto isso, eu estava escrevendo
cartas diferentes na minha cabeça,
algumas se tornaram poemas.
Tanto sentimento genuíno!
Tantas declarações ferozes
de ânsia apaixonada!
Eu amei uma vez, amei duas vezes,
e de repente
a forma desabou: me encontrei
incapaz de sustentar a ignorância.
Que triste ter perdido você, ter perdido
qualquer chance de realmente o conhecer
ou lembrando de você ao longo do tempo
como uma pessoa real, como alguém que eu poderia ter crescido
profundamente apegada, talvez
o irmão que eu nunca tive.
E como é triste pensar
em morrer antes de descobrir
qualquer coisa. E perceber
como todos nós somos ignorantes na maior parte do tempo,
vendo coisas
apenas de uma posição, como um atirador.
E havia tantas coisas
Eu nunca pude te falar sobre mim,
coisas que podem ter influenciado você.
E a foto que eu nunca mandei, tirada
na noite em que eu parecia quase esplêndida.
Eu queria que você se apaixonasse. Mas a flecha
continuou batendo no espelho e voltando.
E as letras continuaram se dividindo
com nenhuma parte totalmente verdadeira.
E, infelizmente, você nunca compreendeu
nada disso, embora você sempre tenha respondido
tão prontamente, sempre a mesma carta ilusória.
Eu amei uma vez, amei duas vezes,
e mesmo que no nosso caso
as coisas nunca saíram do chão
foi bom ter tentado.
E ainda tenho as cartas, é claro.
Por vezes vou levar alguns valorosos anos
para reler no jardim,
com um copo de chá gelado.
E eu sinto, às vezes, parte de algo
muito grande, totalmente profundo e vasto.
Eu amei uma vez, amei duas vezes,
facilmente três vezes amei.
(de “The seven ages”)
Averno
1
Você morre quando seu espírito morre.
Caso contrário, você vive.
Você pode não fazer um bom trabalho, mas você continua –
algo sobre o qual você não tem escolha.
Quando eu digo isso a meus filhos
eles não prestam atenção.
Os velhos, eles pensam –
isso é o que eles sempre fazem:
falar sobre coisas que ninguém pode ver
para cobrir todas as células cerebrais que estão perdendo.
Eles piscam um para o outro;
escutando o velho, falar sobre o espírito
porque ele não consegue se lembrar mais da palavra para cadeira.
É terrível ficar sozinho.
Eu não pretendo viver sozinha –
estar sozinha, onde ninguém te ouve.
Lembro-me da palavra para cadeira.
Quero dizer – eu só não estou mais interessada.
Eu acordo pensando
você tem que se preparar.
Logo o espírito vai desistir –
todas as cadeiras do mundo não vão te ajudar.
Eu sei o que dizem quando estou fora da sala.
Devo estar vendo alguém, devo estar tomando
um dos novos medicamentos para a depressão?
Posso ouvi-los, em sussurros, planejando como dividir o custo.
E eu quero gritar
vocês todos estão vivendo em um sonho.
Já é ruim, eles pensam, me ver desmoronar.
Já ruim o suficiente sem esse sermão que eles ganham hoje em dia
como se eu tivesse qualquer direito a essas novas informações.
Bem, eles têm o mesmo direito.
Eles estão vivendo em um sonho, e eu estou me preparando
para ser um fantasma. Eu quero gritar
a névoa se dissipou –
É como uma nova vida:
você não tem interesse no resultado;
você sabe o resultado.
Pense nisso: sessenta anos sentado em cadeiras. E agora o espírito mortal
buscando tão abertamente, tão destemidamente –
Levantar o véu.
Ver do que você está se despedindo.
2
Eu não voltei por um longo tempo.
Quando voltei a ver o campo, o outono tinha acabado.
Aqui, termina quase antes de começar –
os idosos nem mesmo possuem roupas de verão.
O campo estava coberto de neve, imaculado.
Não havia sinal do que aconteceu aqui.
Você não sabia se o fazendeiro
replantou ou não.
Talvez ele tenha desistido e se mudou.
A polícia não pegou a garota.
Depois de um tempo, eles disseram que ela se mudou para outro país,
onde não há campos.
Um desastre como este
não deixa marcas na terra.
E pessoas assim – acham que isso lhes dá
um novo começo.
Fiquei muito tempo olhando para o nada.
Depois de um tempo, percebi como estava escuro, e frio.
Há muito tempo – não tenho ideia de quanto tempo.
Uma vez que a terra decide não ter memória
o tempo parece de certo modo sem sentido.
Mas não para meus filhos. Eles estão atrás de mim
para fazer um testamento; eles estão preocupados que o governo
pegue tudo.
Eles deveriam vir comigo algum dia
para olhar este campo coberto de neve.
A coisa toda está escrita lá.
Nada: não tenho nada para dar a eles.
Essa é a primeira parte.
A segunda é: não quero ser queimada.
3.
De um lado, a alma vagueia.
Por outro, seres humanos vivem com medo.
No meio, o poço do desaparecimento.
Algumas meninas me perguntam
se eles estarão seguros perto de Averno –
eles estão com frio, eles querem rumar para o sul um pouco.
E alguém diz, como uma piada, mas não muito ao sul –
Eu digo, tão seguro quanto em qualquer lugar,
o que os deixa felizes.
O que isso significa é que nada é seguro.
Você entra em um trem, e desaparece.
Você escreve seu nome na janela, e desaparece.
Existem lugares como este em todos os lugares,
lugares em que você entra quando jovem
e que você nunca retorna.
Como o campo, aquele que ardeu.
Depois disso, a garota se foi.
Talvez ela não existisse,
não temos provas de todo modo.
Tudo o que sabemos é:
o campo queimou.
Mas nós vimos isso.
Então temos que acreditar na garota,
no que ela fez. De outra forma
são apenas forças que não entendemos
governando a terra.
As meninas estão felizes pensando nas férias.
Não pegue um trem, eu digo.
Elas escrevem seus nomes em névoa na janela de um trem.
Eu quero dizer, vocês são boas meninas,
tentando deixar seus nomes para trás.
4.
Passamos o dia inteiro
navegando no arquipélago,
as minúsculas ilhas que eram
parte da península
até que elas se separaram
nos fragmentos que você vê agora
flutuando na água do mar do norte.
Elas pareciam seguras para mim,
Acho que porque ninguém pode morar lá.
Mais tarde nos sentamos na cozinha
vendo a noite começar e depois a neve.
Primeiro uma, depois a outra.
Ficamos em silêncio, hipnotizadas pela neve
como se fosse uma espécie de turbulência
que antes estava escondida
e agora se tornando visível,
algo dentro da noite
exposto agora –
Em nosso silêncio, estávamos nos perguntando
aquelas perguntas amigas que confiam umas nas outras
pedindo para sair da enorme fatiga,
cada uma esperando que a outra saiba mais
e quando não for assim, esperando que
suas impressões compartilhadas resultarão em intuição.
Há algum benefício em se forçar
a compreensão de que se deve morrer?
É possível perder a oportunidade da vida?
Perguntas assim.
A neve estava pesada. A noite negra
transformada em agitado ar branco.
Algo que não tínhamos visto revelado.
Apenas o significado não foi revelado.
5.
Depois do primeiro inverno, o campo voltou a crescer.
Mas não havia mais sulcos ordenados.
O cheiro do trigo persistia, uma espécie de aroma aleatório
misturado com várias ervas daninhas, para as quais
nenhum uso humano ainda foi inventado.
Foi intrigante – ninguém sabia
onde o fazendeiro tinha ido.
Algumas pessoas pensaram que ele morreu.
Alguém disse que ele tinha uma filha na Nova Zelândia,
que ele foi para lá criar
os netos em vez de trigo.
A natureza, ao que parece, não é como nós;
não tem um armazém de memória.
O campo não fica com medo de jogos,
de meninas. Não se lembra
tampouco de sulcos. É morto, queimado,
e um ano depois está vivo novamente
como se nada de incomum tivesse acontecido.
O fazendeiro olha pela janela.
Talvez na Nova Zelândia, talvez em outro lugar.
E ele pensa: minha vida acabou.
Sua vida se expressou nesse campo;
ele não acredita mais em fazer nada
fora da terra. A terra, ele pensa,
me dominou.
Ele se lembra do dia em que o campo queimou,
não, ele pensa, por acidente.
Algo dentro dele disse: eu posso viver com isso,
posso lutar contra isso depois de um tempo.
O momento terrível foi na primavera depois que seu trabalho foi apagado,
quando ele entendeu que a terra
não sabia como lamentar, que em vez disso mudaria.
E então continua existindo sem ele.
(de “Averno”)
Parábola da besta
O gato circula na cozinha
com o pássaro morto,
sua nova posse.
Alguém deveria discutir
ética com o gato como se
indaga sobre o pássaro flácido:
nesta casa
nós não experimentamos
a vontade desta maneira.
Diga isso ao animal,
seus dentes já
cravados na carne de outro animal.
(de “Meadowlands”)
A vestimenta
Minha alma secou.
Como uma alma lançada ao fogo, mas não completamente,
não para aniquilação. Ressecada,
continuou. Frágil,
não da solidão, mas da desconfiança,
o rescaldo da violência.
Espírito, convidado a deixar o corpo,
a ficar exposto por um momento,
tremendo, como antes
sua apresentação ao divino –
espírito atraído da solidão
pela promessa da graça,
como você vai acreditar novamente
no amor de outro ser?
Minha alma murcha e encolhida.
O corpo converte-se por si enorme vestimenta.
E quando a esperança voltou para mim
era inteiramente outra esperança.
(de “Vita Nova”)
***
Lullaby
Time to rest now; you have had
enough excitement for the time being.
Twilight, then early evening. Fireflies
in the room, flickering here and there, here and there,
and summer’s deep sweetness filling the open window.
Don’t think of these things anymore.
Listen to my breathing, your own breathing
like the fireflies, each small breath
a flare in which the world appears.
I’ve sung to you long enough in the summer night.
I’ll win you over in the end; the world can’t give you
this sustained vision.
You must be taught to love me.
Human beings must be taught to love
silence and darkness.
Mirror image
Tonight I saw myself in the dark window as
the image of my father, whose life
was spent like this,
thinking of death, to the exclusion
of other sensual matters,
so in the end that life
was easy to give up, since
it contained nothing: even
my mother’s voice couldn’t make him
change or turn back
as he believed
that once you can’t love another human being
you have no place in the world.
Afterword
Reading what I have just written, I now believe
I stopped precipitously, so that my story seems to have been
slightly distorted, ending, as it did, not abruptly
but in a kind of artificial mist of the sort
sprayed onto stages to allow for difficult set changes.
Why did I stop? Did some instinct
discern a shape, the artist in me
intervening to stop traffic, as it were?
A shape. Or fate, as the poets say,
intuited in those few long ago hours—
I must have thought so once.
And yet I dislike the term
which seems to me a crutch, a phase,
the adolescence of the mind, perhaps—
Still, it was a term I used myself,
frequently to explain my failures.
Fate, destiny, whose designs and warnings
now seem to me simply
local symmetries, metonymic
baubles within immense confusion—
Chaos was what I saw.
My brush froze—I could not paint it.
Darkness, silence: that was the feeling.
What did we call it then?
A “crisis of vision” corresponding, I believed,
to the tree that confronted my parents,
but whereas they were forced
forward into the obstacle,
I retreated or fled—
Mist covered the stage (my life).
Characters came and went, costumes were changed,
my brush hand moved side to side
far from the canvas,
side to side, like a windshield wiper.
Surely this was the desert, the dark night.
(In reality, a crowded street in London,
the tourists waving their colored maps.)
One speaks a word: I.
Out of this stream
the great forms—
I took a deep breath. And it came to me
the person who drew that breath
was not the person in my story, his childish hand
confidently wielding the crayon—
Had I been that person? A child but also
an explorer to whom the path is suddenly clear, for whom
the vegetation parts—
And beyond, no longer screened from view, that exalted
solitude Kant perhaps experienced
on his way to the bridges—
(We share a birthday.)
Outside, the festive streets
were strung, in late January, with exhausted Christmas lights.
A woman leaned against her lover’s shoulder
singing Jacques Brel in her thin soprano—
Bravo! the door is shut.
Now nothing escapes, nothing enters—
I hadn’t moved. I felt the desert
stretching ahead, stretching (it now seems)
on all sides, shifting as I speak,
so that I was constantly
face to face with blankness, that
stepchild of the sublime,
which, it turns out,
has been both my subject and my medium.
What would my twin have said, had my thoughts
reached him?
Perhaps he would have said
in my case there was no obstacle (for the sake of argument)
after which I would have been
referred to religion, the cemetery where
questions of faith are answered.
The mist had cleared. The empty canvases
were turned inward against the wall.
The little cat is dead (so the song went).
Shall I be raised from death, the spirit asks.
And the sun says yes.
And the desert answers
your voice is sand scattered in wind.
Midsummer
On nights like this we used to swim in the quarry,
the boys making up games requiring them to tear off the girls’ clothes
and the girls cooperating, because they had new bodies since last summer
and they wanted to exhibit them, the brave ones
leaping off the high rocks — bodies crowding the water.
The nights were humid, still. The stone was cool and wet,
marble for graveyards, for buildings that we never saw,
buildings in cities far away.
On cloudy nights, you were blind. Those nights the rocks were dangerous,
but in another way it was all dangerous, that was what we were after.
The summer started. Then the boys and girls began to pair off
but always there were a few left at the end — sometimes they’d keep watch,
sometimes they’d pretend to go off with each other like the rest,
but what could they do there, in the woods? No one wanted to be them.
But they’d show up anyway, as though some night their luck would change,
fate would be a different fate.
At the beginning and at the end, though, we were all together.
After the evening chores, after the smaller children were in bed,
then we were free. Nobody said anything, but we knew the nights we’d meet
and the nights we wouldn’t. Once or twice, at the end of summer,
we could see a baby was going to come out of all that kissing.
And for those two, it was terrible, as terrible as being alone.
The game was over. We’d sit on the rocks smoking cigarettes,
worrying about the ones who weren’t there.
And then finally walk home through the fields,
because there was always work the next day.
And the next day, we were kids again, sitting on the front steps in the morning,
eating a peach. Just that, but it seemed an honor to have a mouth.
And then going to work, which meant helping out in the fields.
One boy worked for an old lady, building shelves.
The house was very old, maybe built when the mountain was built.
And then the day faded. We were dreaming, waiting for night.
Standing at the front door at twilight, watching the shadows lengthen.
And a voice in the kitchen was always complaining about the heat,
wanting the heat to break.
Then the heat broke, the night was clear.
And you thought of the boy or girl you’d be meeting later.
And you thought of walking into the woods and lying down,
practicing all those things you were learning in the water.
And though sometimes you couldn’t see the person you were with,
there was no substitute for that person.
The summer night glowed; in the field, fireflies were glinting.
And for those who understood such things, the stars were sending messages:
You will leave the village where you were born
and in another country you’ll become very rich, very powerful,
but always you will mourn something you left behind, even though
you can’t say what it was,
and eventually you will return to seek it.
From a journal
I had a lover once,
I had a lover twice,
easily three times I loved.
And in between
my heart reconstructed itself perfectly
like a worm.
And my dreams also reconstructed themselves.
After a time, I realized I was living
a completely idiotic life.
Idiotic, wasted —
And sometime later, you and I
began to correspond, inventing
an entirely new form.
Deep intimacy over great distance!
Keats to Fanny Brawne, Dante to Beatrice —
One cannot invent
a new form in
an old character. The letters I sent remained
immaculately ironic, aloof
yet forthright. Meanwhile, I was writing
different letters in my head,
some of which became poems.
So much genuine feeling!
So many fierce declarations
of passionate longing!
I loved once, I loved twice,
and suddenly
the form collapsed: I was
unable to sustain ignorance.
How sad to have lost you, to have lost
any chance of actually knowing you
or remembering you over time
as a real person, as someone I could have grown
deeply attached to, maybe
the brother I never had.
And how sad to think
of dying before finding out
anything. And to realize
how ignorant we all are most of the time,
seeing things
only from the one vantage, like a sniper.
And there were so many things
I never got to tell you about myself,
things which might have swayed you.
And the photo I never sent, taken
the night I looked almost splendid.
I wanted you to fall in love. But the arrow
kept hitting the mirror and coming back.
And the letters kept dividing themselves
with neither half totally true.
And sadly, you never figured out
any of this, though you always wrote back
so promptly, always the same elusive letter.
I loved once, I loved twice,
and even though in our case
things never got off the ground
it was a good thing to have tried.
And I still have the letters, of course.
Sometimes I will take a few years’ worth
to reread in the garden,
with a glass of iced tea.
And I feel, sometimes, part of something
very great, wholly profound and sweeping.
I loved once, I loved twice,
easily three times I loved.
Averno
1.
You die when your spirit dies.
Otherwise, you live.
You may not do a good job of it, but you go on —
something you have no choice about.
When I tell this to my children
they pay no attention.
The old people, they think —
this is what they always do:
talk about things no one can see
to cover up all the brain cells they’re losing.
They wink at each other;
listen to the old one, talking about the spirit
because he can’t remember anymore the word for chair.
It is terrible to be alone.
I don’t mean to live alone —
to be alone, where no one hears you.
I remember the word for chair.
I want to say — I’m just not interested anymore.
I wake up thinking
you have to prepare.
Soon the spirit will give up —
all the chairs in the world won’t help you.
I know what they say when I’m out of the room.
Should I be seeing someone, should I be taking
one of the new drugs for depression.
I can hear them, in whispers, planning how to divide the cost.
And I want to scream out
you’re all of you living in a dream.
Bad enough, they think, to watch me fall apart.
Bad enough without this lecturing they get these days
as though I had any right to this new information.
Well, they have the same right.
They’re living in a dream, and I’m preparing
to be a ghost. I want to shout out
the mist has cleared —
It’s like some new life:
you have no stake in the outcome;
you know the outcome.
Think of it: sixty years sitting in chairs. And now the mortal spirit
seeking so openly, so fearlessly —
To raise the veil.
To see what you’re saying goodbye to.
2.
I didn’t go back for a long time.
When I saw the field again, autumn was finished.
Here, it finishes almost before it starts —
the old people don’t even own summer clothing.
The field was covered with snow, immaculate.
There wasn’t a sign of what happened here.
You didn’t know whether the farmer
had replanted or not.
Maybe he gave up and moved away.
The police didn’t catch the girl.
After awhile they said she moved to some other country,
one where they don’t have fields.
A disaster like this
leaves no mark on the earth.
And people like that — they think it gives them
a fresh start.
I stood a long time, staring at nothing.
After a bit, I noticed how dark it was, how cold.
A long time — I have no idea how long.
Once the earth decides to have no memory
time seems in a way meaningless.
But not to my children. They’re after me
to make a will; they’re worried the government
will take everything.
They should come with me sometime
to look at this field under the cover of snow.
The whole thing is written out there.
Nothing: I have nothing to give them.
That’s the first.
The second is: I don’t want to be burned.
3.
On one side, the soul wanders.
On the other, human beings living in fear.
In between, the pit of disappearance.
Some young girls ask me
if they’ll be safe near Averno —
they’re cold, they want to go south a little while.
And one says, like a joke, but not too far south —
I say, as safe as anywhere,
which makes them happy.
What it means is nothing is safe.
You get on a train, you disappear.
You write your name on the window, you disappear.
There are places like this everywhere,
places you enter as a young girl
from which you never return.
Like the field, the one that burned.
Afterward, the girl was gone.
Maybe she didn’t exist,
we have no proof either way.
All we know is:
the field burned.
But we saw that.
So we have to believe in the girl,
in what she did. Otherwise
it’s just forces we don’t understand
ruling the earth.
The girls are happy, thinking of their vacation.
Don’t take a train, I say.
They write their names in mist on a train window.
I want to say, you’re good girls,
trying to leave your names behind.
4.
We spent the whole day
sailing the archipelago,
the tiny islands that were
part of the penisula
until they’d broken off
into the fragments you see now
floating in the northern sea water.
They seemed safe to me,
I think because no one can live there.
Later we sat in the kitchen
watching the evening start and then the snow.
First one, then the other.
We grew silent, hypnotized by the snow
as though a kind of tubulence
that had been hidden before
was becoming visible,
something within the night
exposed now —
In our silence, we were asking
those questions friends who trust each other
ask out of great fatigue,
each one hoping the other knows more
and when this isn’t so, hoping
their shared impressions will amount to insight.
Is there any benefit in forcing upon oneself
the realization that one must die?
Is it possible to miss the opportunity of one’s life?
Questions like that.
The snow was heavy. The black night
transformed into busy white air.
Something we hadn’t seen revealed.
Only the meaning wasn’t revealed.
5.
After the first winter, the field began to grow again.
But there were no more orderly furrows.
The smell of the wheat persisted, a kind of random aroma
intermixed with various weeds, for which
no human use has been as yet devised.
It was puzzling — no one knew
where the farmer had gone.
Some people thought he died.
Someone said he had a daughter in New Zealand,
that he went there to raise
grandchildren instead of wheat.
Nature, it turns out, isn’t like us;
it doesn’t have a warehouse of memory.
The field doesn’t become afraid of matches,
of young girls. It doesn’t remember
furrows either. It gets killed off, it gets burned,
and a year later it’s alive again
as though nothing unusual has occured.
The farmer stares out the window.
Maybe in New Zealand, maybe somewhere else.
And he thinks: my life is over.
His life expressed itself in that field;
he doesn’t believe anymore in making anything
out of earth. The earth, he thinks,
has overpowered me.
He remembers the day the field burned,
not, he thinks, by accident.
Something deep within him said: I can live with this,
I can fight it after awhile.
The terrible moment was the spring after his work was erased,
when he understood that the earth
didn’t know how to mourn, that it would change instead.
And then go on existing without him.
Parable of the beast
The cat circles the kitchen
with the dead bird,
its new posession.
Someone should discuss
ethics with the cat as it
inquires into the limp bird:
in this house
we do not experience
will in this manner.
Tell that to the animal,
its teeth already
deep in the flesh of another animal.