Arcas de Babel: Camila Assad traduz Louise Glück

Arcas de Babel: Camila Assad traduz Louise Glück
Camila Assad traduz poemas de Louise Glück, vencedora do Nobel de Literatura em 2020 (Fotos: Laura Dower e Sigrid Estrada/AP)

 

A poeta estadunidense Louise Glück, ainda inédita em livro no Brasil, tinha acabado de receber o Prêmio Nobel de Literatura e já começavam a aparecer em blogs e nas redes sociais inúmeras traduções de seus poemas. Essa recepção espontânea, ainda não absorvida pelo mercado editorial, mostra a vitalidade da produção poética contemporânea e sua íntima ligação com a experiência de traduzir. Para dar visibilidade a essas traduções brasileiras já existentes e apresentar a obra de Louise Glück a um público mais vasto, a Arca de Babel desta semana é coletiva.

Essa edição especial reúne traduções de poemas de Louise Glück por seis poetas: Camila Assad, Mariana Basílio, Piero Eyben, Guilherme Gontijo Flores com Adalberto Müller e Thiago Ponce de Moraes, a quem agradeço pelas belas contribuições.

Camila Assad nasceu em 1988 em Presidente Prudente  e estudou Arquitetura e Urbanismo. É autora dos livros de poesia Cumulonimbus (2016), Eu não consigo parar de morrer (2019) e Desterro (2019), obra contemplada pelo Proac/SP. Atualmente vive em São Paulo. É ela quem traduz os poemas “Teoria da memória”, “Pingos de neve”, “Manhã”, “Sirene” e “Primeira memória”.

 

Teoria da memória

 

Muito, muito tempo atrás, antes de eu ser uma artista atormentada, afligida pela saudade ainda incapaz de estabelecer ligações duradouras, muito antes disso, eu era um governante glorioso unindo todos em um país dividido – foi o que me disse a cartomante que examinou minha mão. Grandes coisas, disse ela, estão à sua frente, ou talvez atrás de você; é difícil ter certeza. E ainda, ela acrescentou, qual é a diferença? Agora mesmo você é uma criança de mãos dadas com uma vidente. Todo o resto é hipótese e sonho.

 

Pingos de neve

 

Você sabe o que eu fui, como eu vivi? Você sabe
o que é desespero; então
o inverno deve ter algum significado para você.

Eu não esperava sobreviver,
a terra me suprimindo. Eu não esperava
acordar novamente, sentir
na terra úmida o meu corpo
capaz de responder novamente, lembrando
depois de tanto tempo como se abrir novamente
na luz fria
da primeira primavera –

assustada sim, mas entre vocês novamente
chorando mas arriscando alegrias

no vento cru do novo mundo.

 

Manhã

 

Você quer saber como eu gasto meu tempo?
Eu caminho pelo gramado frontal, fingindo
estar capinando. Você deve saber que
Eu nunca estou capinando, de joelhos, puxando
aglomerados de trevo dos canteiros de flores: na verdade
Estou procurando por coragem, por alguma evidência de que
minha vida vai mudar, embora isso
leve uma eternidade, verificando
cada aglomerado para a folha
simbólica, e logo o verão estará terminando, as folhas já girando, sempre as árvores doentes
indo primeiro, a morte virando
amarela brilhante, enquanto alguns pássaros escuros executam
seu toque de recolher musical. Você quer ver as minhas mãos?
Tão vazias agora quanto na primeira nota.
Ou a intenção sempre foi
continuar sem um sinal?

 

Sirene

 

Tornei-me uma criminosa quando me apaixonei.
Antes disso eu era garçonete.

Eu não queria ir para Chicago com você.
Eu queria me casar com você, eu queria que
sua esposa sofresse.

Eu queria que a vida dela fosse como uma peça
em que todas as cenas fossem cenas tristes.

Uma boa pessoa
Pensa assim? Eu mereço

créditos pela minha coragem —

Sentei no escuro na sua varanda.
Tudo estava claro para mim:
Se sua esposa não te deixasse ir
isso provaria que ela não te amava.
Se ela te amasse
ela não gostaria que você fosse feliz?

Eu acho agora que
se eu sentisse menos eu seria
uma pessoa melhor. Eu fui
uma boa garçonete.
Eu conseguia carregar oito garrafas.

Eu costumava te contar meus sonhos.
Ontem à noite eu vi uma mulher sentada em um ônibus escuro –
No sonho, ela está chorando, o ônibus em que ela está
está se afastando. Com uma mão
ela está acenando; a outra acaricia
uma caixa de ovos cheia de bebês.

O sonho não resgata a donzela.

 

Primeira memória

 

Há muito tempo, fui ferida. Eu vivi
para me vingar
contra meu pai, não
pelo que ele era –
pelo que eu fui: desde o começo dos tempos,
na infância pensei que
aquela dor significava que
eu não fui amada.
Isso significa que eu amei.

***

 

Theory of memory

 

Long, long ago, before I was a tormented artist, afflicted with longing yet incapable of forming durable attachments, long before this, I was a glorious ruler uniting all of a divided country-so I was told by the fortune-teller who examined my palm. Great things, she said, are ahead of you, or perhaps behind you; it is difficult to be sure. And yet, she added, what is the difference? Right now you are a child holding hands with a fortune-teller. All the rest is hypothesis and dream.

 

Snowdrops

 

Do you know what I was, how I lived? You know
what despair is; then
winter should have meaning for you.

I did not expect to survive,
earth suppressing me. I didn’t expect
to waken again, to feel
in damp earth my body
able to respond again, remembering
after so long how to open again
in the cold light
of earliest spring –

afraid, yes, but among you again
crying yes risk joy

in the raw wind of the new world.

 

Matin

 

You want to know how I spend my time?
I walk the front lawn, pretending
to be weeding. You ought to know
I’m never weeding, on my knees, pulling
clumps of clover from the flower beds: in fact
I’m looking for courage, for some evidence
my life will change, though
it takes forever, checking
each clump for the symbolic
leaf, and soon the summer is ending, already
the leaves turning, always the sick trees
going first, the dying turning
brilliant yellow, while a few dark birds perform
their curfew of music. You want to see my hands?
As empty now as at the first note.
Or was the point always
to continue without a sign?

 

Siren

 

I became a criminal when I fell in love.
Before that I was a waitress.

I didn’t want to go to Chicago with you.
I wanted to marry you, I wanted
your wife to suffer.

I wanted her life to be like a play
In which all the parts are sad parts.

Does a good person
Think this way? I deserve

Credit for my courage –

I sat in the dark on your front porch.
Everything was clear to me:
If your wife wouldn’t let you go
That proved she didn’t love you.
If she loved you
Wouldn’t she want you to be happy?

I think now
If I felt less I would be
A better person. I was
A good waitress.
I could carry eight drinks.

I used to tell you my dreams.
Last night I saw a woman sitting in a dark bus–
In the dream, she’s weeping, the bus she’s on
Is moving away. With one hand
She’s waving; the other strokes
An egg carton full of babies.

The dream doesn’t rescue the maiden.

 

First memory

 

Long ago, I was wounded. I lived
to revenge myself
against my father, not
for what he was—
for what I was: from the beginning of time,
in childhood, I thought
that pain meant
I was not loved.

It meant I loved.


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