Arcas de Babel: Adalberto Müller e Guilherme Gontijo Flores traduzem Louise Glück

Arcas de Babel: Adalberto Müller e Guilherme Gontijo Flores traduzem Louise Glück
Müller e Gontijo Flores mostram poemas de Louise Glück (Fotos: Manuel Müller/Iris do Nascimento Flores/Sigrid Estrada)

 

A poeta estadunidense Louise Glück, ainda inédita em livro no Brasil, tinha acabado de receber o Prêmio Nobel de Literatura e já começavam a aparecer em blogs e nas redes sociais inúmeras traduções de seus poemas. Essa recepção espontânea, ainda não absorvida pelo mercado editorial, mostra a vitalidade da produção poética contemporânea e sua íntima ligação com a experiência de traduzir. Para dar visibilidade a essas traduções brasileiras já existentes e apresentar a obra de Louise Glück a um público mais vasto, a Arca de Babel desta semana é coletiva.

Essa edição especial reúne traduções de poemas de Louise Glück por seis poetas: Camila Assad, Mariana Basílio, Piero Eyben, Guilherme Gontijo Flores com Adalberto Müller e Thiago Ponce de Moraes, a quem agradeço pelas belas contribuições.

Adalberto Müller é poeta, ficcionista e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFF. Foi professor/pesquisador visitante em Münster (WWU), Lyon2, Yale e na SUNY Buffalo. Publicou diversos livros de poesia, ensaio, tradução e narrativa, entre os quais: Transplantações: do jardim da minha mãe (Para.Texto, 2019); O traço do calígrafo: contos (Medusa, 2020) Poesia completa de Emily Dickinson (Editora da UnB/Editora Unicamp, 2020, no prelo); Walter Benjamin: teses sobre a história (com Márcio Seligmann-Silva, Ed. Alameda, 2020), Pequena filosofia do voo: contos (Patuá, em editoração) e Francis Ponge: partido das coisas (retradução, in progress).

Guilherme Gontijo Flores é autor dos poemas de carvão :: capim (Edições Artefacto), do romance História de joia (todavia) e do ensaio “Algo infiel”, em parceria com Rodrigo Gonçalves, entre outros. Traduziu A anatomia da melancolia (UFPR)de Robert Burton, Elegias de sexto propércio (Autêntica) e Safo: fragmentos completos (Editora 34), entre outros. É coeditor do blog-revista escamandro e membro do grupo Pecora Loca, dedicado a tradução e(m) performance.

Eles traduzem os poemas “Matins, “Trillium” e “Lamium”.

 

Matins

 

O sol brilha; na caixa do correio, folhas
da bétula dupla dobradas, com pregas de barbatana.
Abaixo, talos ocos de narcisos brancos, Triandros, Trombetas, negras
folhas de violeta selvagem. Noah diz que
os deprimidos detestam a primavera, se desequilibram
entre o mundo interno e o externo. Eu defendo
outra teoria – ficar deprimida, sim, mas de certo jeito gamada
em grudar numa árvore, meu corpo enrolado
mesmo entre os troncos bifurcados, quase em paz, sob a chuva da tarde
quase capaz de sentir
seiva espumando e subindo: Noah diz que é
um erro dos deprimidos se identificar
com uma árvore, enquanto o coração feliz
zanza no jardim que nem folha caindo, uma figura
pra parte, não o todo.

 

Matins

 

Pai inacessível, quando fomos primeiro
exilados do céu, você fez
uma réplica, um lugar num sentido
distinto do céu, que teve o
desígnio de dar uma lição: ou seja
a mesma – beleza de ambos os lados, beleza
sem alternativa – Só que
a gente não sacou qual foi a lição. Abandonado,
cada qual cansou o outro. Anos
de escuridão vieram; a gente se revezou
cuidando do jardim, as primeiras lágrimas
enchendo nossos olhos feito a terra
erodida por pétalas, umas
vermelho-escuras, outras cor de carne –
Nunca lembramos de você
que aprendemos a louvar.
Mal sabíamos que não era da natureza humana amar
apenas o que retribui o amor.

 

Trillium

 

Quando acordei estava numa floresta. O breu
parecia natural, o céu entre o pinhal
denso de tantas luzes.

Não sabia nada; Não dava pra nada, só ver.
E enquanto olhava, todas as luzes do céu
esmaeceram pra fazer uma só coisa, um fogo
ardendo entre os frios abetos.
Mas já não era mais possível
contemplar o céu sem ser destruída.

Será que existem almas que precisam
da presença da morte, como eu careço de proteção?
Acho que se eu falar bastante
vou responder àquela questão, verei
o que quer que elas vejam, uma escada
subindo entre os abetos, seja lá o que for
que as convoca a trocar de vida –

Pense no que eu já compreendo.
Acordei ignorante numa floresta;
há pouco, nem conheceria minha voz
se uma me fosse dada
seria cheia de mágoas, minhas frases
feito gritos atados em feixe.
Eu nem sabia que sentia mágoa
até que essa palavra veio, até sentir
a chuva evaporando de mim.

 

Lamium

 

 

Assim é que se vive quando o coração é frio.
Como eu: em sombras, rastejando sobre rochas frias,
sob os grandes bordos.

O sol mal me toca.
Às vezes o vejo na primavera, subindo distante.
Aí crescem folhas nele, ocultando-o todo. Sinto
ele luzindo entre as folhas, errático, como
alguém batendo o lado de um copo com uma colher.

Coisas vivas não requerem todas
a luz no mesmo nível. Algumas de nós
fabricam sua própria luz: uma folha prateada
como uma trilha que ninguém vai usar, um raso
lago de prata na escuridão sob os grandes bordos.

Mas você já sabe disso.
Você e os outros que pensam
que vivem pra verdade, e, por extensão, amam
tudo o que é frio.

 

***

 

Matins

 

The sun shines; by the mailbox, leaves
of the divided birch tree folded, pleated like fins.
Underneath, hollow stems of the white daffodils, Ice Wings, Cantatrice; dark
leaves of the wild violet. Noah says
depressives hate the spring, imbalance
between the inner and the outer world. I make
another case – being depressed, yes, but in sense passionately
attached to the living tree, my body
actually curled in the split trunk, almost at peace, in the evening rain
almost able to feel
sap frothing and rising: Noah says this is
an error of depressives, identifying
with a tree, whereas the happy heart
wanders the garden like a falling leaf, a figure for
the part, not the whole.

 

Matins

 

Unreachable father, when we were first
exiled from heaven, you made
a replica, a place in one sense
different from heaven, being
designed to teach a lesson: otherwise
the same – beauty on either side, beauty
without alternative – Except
we didn’t know what was the lesson. Left alone,
we exhausted each other. Years
of darkness followed; we took turns
working the garden, the first tears
filling our eyes as earth
misted with petals, some
dark red, some flesh colored –
We never thought of you
whom we were learning to worship.
We merely knew it wasn’t human nature to love
only what returns love.

 

Trillium

 

When I woke up I was in a forest. The dark
seemed natural, the sky through the pine trees
thick with many lights.

I knew nothing; I could do nothing but see.
And as I watched, all the lights of heaven
faded to make a single thing, a fire
burning through the cool firs.
Then it wasn’t possible any longer
to stare at heaven and not be destroyed.

Are there souls that need
death’s presence, as I require protection?
I think if I speak long enough
I will answer that question, I will see
whatever they see, a ladder
reaching through the firs, whatever
calls them to exchange their lives –

Think what I understand already.
I woke up ignorant in a forest;
only a moment ago, I didn’t know my voice
if one were given me
would be so full of grief, my sentences
like cries strung together.
I didn’t even know I felt grief
until that word came, until I felt
rain streaming from me.

 

Lamium

 

This is how you live when you have a cold heart.
As I do: in shadows, trailing over cool rock,
under the great maple trees.

The sun hardly touches me.
Sometimes I see it in early spring, rising very far away.
Then leaves grow over it, completely hiding it. I feel it
glinting through the leaves, erratic,
like someone hitting the side of a glass with a metal spoon.

Living things don’t all require
light in the same degree. Some of us
make our own light: a silver leaf
like a path no one can use, a shallow
lake of silver in the darkness under the great maples.

But you know this already.
You and the others who think
you live for truth and, by extension, love
all that is cold.


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