Arcas de Babel: Julio Mendonça traduz Lorine Niedecker

Arcas de Babel: Julio Mendonça traduz Lorine Niedecker
Julio Mendonça: Na poesia de Niedecker nota-se um estranhamento muito peculiar (Fotos: Reprodução/Divulgação)

 

A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.

A série Arcas de Babel acolhe traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.

Hoje, o poeta e curador Julio Mendonça traduz e apresenta poemas inéditos de Lorine Niedecker, poeta cuja obra que tem sido reconhecida como uma das mais importantes da vanguarda norte-americana de meados do século 20.

Julio Mendonça é doutor em Comunicação e Semiótica e coordena o Centro de Referência Haroldo de Campos, na Casa das Rosas. Foi curador das exposições “Esdrúxulo! 100 anos da morte de Augusto dos Anjos” e “As ideias concretas – poesia 60 anos adiante” (juntamente com Reynaldo Damazio) e organizou os livros Poesia (im)popular brasileira e Que pós-utopia é esta?. Publicou o livro Democratizar a participação cultural e as plaquetes De ‘A’ a Zukofsky e Poesia, memória e o presente que nos arrasta, além de poemas em veículos como Folha de S.Paulo, revistas Artéria, Atlas e Errática, entre outros.

 

***

 

Lorine Niedecker nasceu em 1903 em Black Hawk Island, uma pequena ilha situada numa área pantanosa de Fort Atkinson, Wisconsin, EUA. Sua juventude e início de vida adulta foram marcadas por crises familiares (relação extraconjugal do pai, depressão e progressiva surdez da mãe) e efeitos da grande depressão econômica dos anos 30.

O ambiente insular em que cresceu e viveu grande parte da vida, caracterizado por inundações cíclicas, está fortemente presente em sua poesia e a ele se associou, ainda, um temperamento introvertido, agravado por deficiência de visão. “As Brontë tinham suas charnecas, eu tenho meus pântanos”, escreveu Lorine para Louis Zukofsky sobre a ilha de Black Hawk.

Entretanto, esses dados biográficos por si sós não diriam muito do que é mais significativo de sua obra se a eles não tivesse se somado a circunstância de, no início da vida adulta, Lorine ter tomado contato com a produção poética moderna que naquele momento se publicava no palco cosmopolita de revistas literárias como Poetry. Nesta revista, em 1931, Louis Zukofsky publicou um ensaio que lançou o que passou a ser chamado de Objetivismo, movimento que terá grande influência na poesia norte-americana daí para diante. Lorine conhece, então a poesia de Zukofsky, William Carlos Williams, George Oppen e Marianne Moore, entre outros. Com Zukofsky manterá contato constante até o final da vida.

Por dificuldades financeiras, não pôde concluir seus estudos universitários e retornou à sua ilha. Niedecker trabalhou por pouco tempo na biblioteca de Fort Atkinson, teve um casamento de curta duração, escreveu roteiros, limpou chão de hospital e publicou seu primeiro livro aos 43 anos. A ele se seguiram apenas mais três livros publicados em vida e um postumamente. Nos anos 1960, voltou a publicar e a se casar e começou a ver sua obra reconhecida pelo esforço de contemporâneos como Basil Bunting e de poetas mais jovens. Faleceu em 1970.

Lorine Niedecker deixou uma obra poética que tem sido reconhecida como uma das mais importantes da vanguarda norte-americana de meados do século 20. Durante sua vida, sua poesia foi apreciada por Marianne Moore, William Carlos Williams, Charles Reznikoff e Cid Corman, entre outros. No início de 1971, pouco após a sua morte, Basil Bunting escreveu:

“Lorine Niedecker. . . será lembrada por muito tempo e calorosamente na Inglaterra, um país que ela nunca visitou. Ela foi, na opinião de muitos, a poeta mais interessante que a América já produziu. Sua obra era austera, livre de qualquer ornamento, baseando-se nos ritmos fundamentais da expressão concisa, de modo que para muitos leitores deve ter parecido estranha e despojada. Ela estava apenas começando a ser apreciada quando morreu […]”

Niedecker nunca foi tão “objetivista” quanto William Carlos Williams ou Louis Zukofsky e sua poesia me parece menos ousadamente experimental que a de Marianne Moore, mas nela notamos, de fato, um estranhamento muito peculiar que, creio, foi bem apreendido nestas palavras publicadas há pouco por Elizabeth Robinson no livro Radical Vernacular – Lorine Niedecker and the Poetics of Place:

“A poesia de Lorine Niedecker é, além disso, iluminada em termos da discussão de Daniel Barbiero da lírica como circunspectiva (em oposição à introspectiva): em vez de ver o poema lírico como emergindo de uma voz que sonda sua própria interioridade, a lírica circunspectiva diria que “nós estamos situados no centro das circunstâncias que nos rodeiam. Mas disso subentende-se que tal centro não é algo que criamos, mas sim um tipo de ponto de inserção na situação”. Isso é certamente relevante para o trabalho de Niedecker, que muitas vezes luta com as circunstâncias adversas de sua vida diária, levando-a a examinar o banal, embora frequentemente com efeito surpreendente.”

 

Agora em um ano

 

Agora em um ano
………………………………….um livro publicado
……………………………………………………………..e prumado –
levou a vida toda
……………………………………a esgotar
………………………………………………………..grota
…………………………………………………………………………………..a gota

Now in one year

 

Now in one year
………………….a book published
………………………………………..and plumbing—
took a lifetime
………………..to weep
…………………………………………a deep
…………………………………………………………………………trickle

 

Linnaeus na Lapônia

 

Nada digno de nota
exceto uma Andromeda,
quadrangulares, os brotos –
………………………….as botas
da gente

encharcadas: devem nadar
para o templo em meio às cheias
ou ser taxado – os botões
………………………que brotam
dos seios

*

Manhã com névoa –
Só enxergo
por onde caminho. Levo
…………………………..minha lucidez
comigo.

*

Ouve
onde sua tumba-neve está
o Você
…………………………..ah você
das pombas de luto

 

Linnaeus in Lapland

 

Nothing worth noting
except an Andromeda
with quadrangular shoots—
………………………..the boots
of the people

wet inside: they must swim
to church thru the floods
or be taxed—the blossoms
……………………….from the bosoms
of the leaves

*

Fog-thick morning—
I see only
where I now walk. I carry
………………………..my clarity
with me.

*

Hear
where her snow-grave is
the You
………………………..ah you
of mourning doves

 

Eu casei

 

Eu casei

na noite negra do mundo
pelo abrigo
………………………………se não farol.
………………………………No final—
acaso.

Me calei com ele
das armas de largo calibre.
……………………………..No guarda-louça
……………………………….perna, cabeça
no armário.

Uma lasca de luz
sem aurora de galos –
………………………………….Simplório
………………………………….eu pensei
ele bebia

demais.
Eu digo
…………………………………eu casei
…………………………………e me enterrei.
Eu pensei –

 

I married

 

I married

in the world’s black night
for warmth
………………………….if not repose.
………………………….At the close—
someone.

I hid with him
from the long range guns.
……………………………..We lay leg
……………………………..in the cupboard, head
in closet.

A slit of light
at no bird dawn—
……………………………Untaught
……………………………I thought
he drank

too much.
I say
…………………………..I married
………………………….and lived unburied.
I thought—

 

À minha bomba de pressão

 

Havia sido livre
……………………com pouco
……………………………………..e simples
aprumada por princípios

Agora sou enviada
por chave………….ducha
caldeira…………….valva
vedação…………….custo

de serviços ao meu
beija
…………água
………………….flor

 

To my pressure pump

 

 

I’ve been free
……………with less
…………………………….and clean
I plumbed for principles

Now I’m jet-bound
by faucet …………shower
heater ………………valve
ring seal ………….service

cost to my little
humming
…………………….water
………………………………..bird

 

Elogio do lugar

 

(trecho inicial)

……………………………………………………..E o lugar
……………………………………………………..era água

peixe
……………pato
………………………..pântano
…………..lírio de lama
Minha flama

nas folhas e na água
Minha mãe e eu
…………………………………..viemos
do vale e da várzea e vergamos
para a água

Meu pai
na névoa do brejo
…………..remou
……………………do aprumo
viu o rosto dela

em cada parte
suportou o peso da água do charco
……………e o gelo –
ele cercou a carpa para o leilão
pois sua cria

talvez vá longe
no chão
………….se educar
Viu sua mulher ficar
surda

e vaga
Ela
……………que conhecia barcos
………………………e cordas
não embarcou mais

 

Paean to place

 

…………………………………………………..And the place
…………………………………………………..was water

Fish
……………fowl
………………………..flood
……………Water lily mud
My life

in the leaves and on water
My mother and I
………………………………………born
in swale and swamp and sworn
to water

My father
thru marsh fog
…………sculled down
………………….from high ground
saw her face

at the organ
bore the weight of lake water
………..and the cold—
he seined for carp to be sold
that their daughter

might go high
on land
…………to learn
Saw his wife turn
deaf

and away
She
…………….who knew boats
…………………………and ropes
no longer played


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