Inventário das ignorâncias

Inventário das ignorâncias
Detalhe da tela “A parábola dos cegos” (1568), de Pieter Bruegel, o Velho (Reprodução/Museo di Capodimonte)
  Diabo rima com dúvida”, diz um dos personagens de Fausto, a peça com que Goethe transformou o mito germânico do século 16 em uma das obras fundamentais do cânone literário ocidental. No alemão, Teufel (diabo) e Zweifel (dúvida) mantinham a correspondência fonética que a tradução desfez. O que dava unidade às duas ideias, no entanto, era talvez uma semelhança além da mera rima. Como a serpente do Éden que oferece a Eva o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, o diabo aparentava ser uma afronta à certeza, um incômodo na credulidade. Na lenda, o desejo incontido de conhecimento leva o doutor Fausto à danação, após prometer sua alma a Mefistófeles, o diabo sedutor, em troca dos saberes do mundo. Feito um desacato à máxima bíblica segundo a qual é preferível temer a conhecer, Fausto ata seu destino ao pecado original da curiosidade. O contrário imediato de não saber, contudo, não é o próprio saber, mas sim desconfiar, como sugeriu Descartes ao fundar o pensamento científico moderno a partir da demolição dos enunciados a priori. Aqui, o paradoxo socrático na dialética do conhecimento: o saber converte-se em saber-se, a princípio, ignorante – argumento do paradigma racional desde ao menos o século 17. A condenação do conhecimento (uma afronta à recomendação bíblica de não presumir conhecer demais) e a contradição de saber não saber (que está em Sócrates e Montaigne) são duas das variações históricas que Peter Burke analisa em Ignorância: uma história global, originalmente publicado em 2022 e l

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