‘Intervenção traz risco altíssimo à democracia’, diz historiadora Dulce Pandolfi

‘Intervenção traz risco altíssimo à democracia’, diz historiadora Dulce Pandolfi
Dulce Pandolfi, historiadora, pesquisa regimes autoritários no Brasil e na América Latina (Foto Luís Costa)

 

Às vésperas de completar 70 anos, a historiadora Dulce Pandolfi deixou a sala de aula – à sua revelia. Demitida em janeiro deste ano do CPDOC/FGV (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas), ela agora ocupa a agenda atendendo a convites de universidades para colóquios, seminários e aulas magnas. “É uma maneira de dar um troco. É como se dissessem: vocês estão jogando fora pessoas que nós consideramos fundamentais.”

Pandolfi é a veterana de quatro professoras do CPDOC demitidas entre janeiro e fevereiro deste ano. Além dela, Luciana Heymann, Verena Alberti e Mônica Kornis foram desligadas da instituição. Heymann, novata entre elas, tinha 32 anos de casa. Pandolfi, a decana, contava 42 anos de trabalho. “Nós quatro somos as últimas que fizemos toda a formação acadêmica integradas ao CPDOC”, diz.

O caso gerou uma reação imediata. Um abaixo-assinado na internet contra as demissões reunia, até o momento em que este texto é escrito, mais de 2.900 assinaturas, entre elas a de nomes como José Murilo de Carvalho, Lilia Moritz Schwarcz e Daniel Aarão Reis. O antropólogo Roberto DaMatta dedicou artigo em O Estado de S. Paulo para condenar as demissões, também criticadas em nota pela Associação Nacional de História (Anpuh).

Quando foi demitida, Pandolfi orientava seis alunos de pós-graduação e se preparava para oferecer mais uma versão do curso Democracia e Ditadura no Brasil e na América Latina, que havia ministrado no segundo semestre de 2017.

Em carta aberta divulgada nas redes sociais, Pandolfi considerou as demissões “desprezo, por parte da direção do CPDOC, pela liberdade de pensamento, pelo funcionamento democrático das instituições, pelo caráter público do conhecimento”. Ela chegou a falar em “destruição” da instituição, que guarda um dos mais importantes acervos de história contemporânea brasileira.

“Falou-se em crise, que havia necessidade de cortes. A direção nunca se dirigiu a nós, a despeito de um grande movimento da academia cobrando uma explicação”, diz Pandolfi, que fala em “sangria” após, segundo ela, um processo de seguidos desligamentos de professores com mais tempo de casa, a partir de 2010. “O CPDOC é hoje um centro em que não se debate minimamente as coisas. São decisões monocráticas da direção”.

‘Um pé na academia, outro na militância’

Filha do professor de direito Luiz Pandolfi, Dulce cresceu em uma casa frequentada por intelectuais. Menina ainda, conviveu com personalidades como o artista plástico Francisco Brennand, o escritor Ariano Suassuna e o designer gráfico Aloísio Magalhães. O ambiente doméstico combinava-se, aliás, com a agitação política e cultural daquele Recife dos anos 1960.

Pernambuco era então um estuário de nomes que formariam o cânone da esquerda no Brasil: era o tempo do governo socialista de Miguel Arraes, da liderança campesina de Francisco Julião, da pedagogia da autonomia de Paulo Freire, da pregação rebelde de Dom Helder Câmara.

Em plena efervescência do movimento estudantil em oposição à ditadura, Pandolfi entrou no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em 1967. Eleita secretária-geral do DCE da universidade, militou na resistência ao regime. “A gente não teve a passeata dos 100 mil, mas tivemos a dos 50 mil”, brinca. No ano seguinte, ingressou nos quadros da Ação Libertadora Nacional, a ALN, um dos principais grupos da esquerda armada no Brasil. Procurada pela polícia pernambucana, fugiu para o Rio.

Foi presa e levada, em agosto de 1970, ao quartel da Polícia do Exército, onde funcionava o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), no bairro da Tijuca. Naquelas instalações, sofreria três meses de tortura, entre afogamentos, choques elétricos e – uma invenção brasileira – a suspensão no pau de arara, quando serviu como cobaia para uma aula de tortura.

A história de horror foi contada em depoimento à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, em 2013. “Há uma disputa de memórias e estamos perdendo”, afirma a professora, autora de Camaradas e Companheiros: Memória e História do PCB, lançado em 1995. “A ditadura no Brasil teve essa faceta de manter alguns aparatos da democracia, como a existência de eleições e partidos, e ficou muito disfarçada. A gente conseguiu pouco desmascarar essa ditadura”.

Para a historiadora, a fragilidade da memória da ditadura e a inexistência, segundo ela, de uma justiça de transição de fato na redemocratização, permitiram a permanência de um desprezo pelos direitos humanos em setores da sociedade brasileira. “Existe conivência com a tortura no Brasil”, diz a professora. “A cidadania no Brasil é muito frágil, os direitos humanos, muito precários. Por um lado, há uma elite predadora e, por outro, uma parte da população pré-cidadã, pouco consciente dos seus direitos, que são percebidos como benefícios, privilégios.”

Quando saiu da prisão, Dulce voltou à universidade, desta vez no Rio, no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF). Foi ainda na graduação que ela soube de uma vaga de estágio no recém-criado CPDOC. À época, o centro recrutava estudantes para trabalhar na pesquisa para o Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, que se tornaria uma referência no estudo de fatos e personagens da história política do Brasil contemporâneo.

Entre o estágio, a pesquisa e a docência, foram 42 anos de CPDOC, interrompidos pelo aviso de desligamento em janeiro passado (em 2013, Dulce já havia sido demitida, mas foi logo readmitida após pressão da comunidade acadêmica). Nesse tempo, com “um pé na academia e outro na militância”, como ela diz, aproximou-se do sociólogo Betinho e foi convidada para ser diretora do Ibase, função que ocupou entre 2004 e 2011.

Pesquisadora de regimes autoritários no Brasil e na América Latina, Pandolfi entende que há muita diferença entre o atual quadro institucional brasileiro e aquele de 50 anos atrás. Entretanto, segundo ela, há um “risco altíssimo”, por exemplo, na intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro, sob controle das Forças Armadas desde fevereiro. “Temo que o Rio esteja sendo um laboratório para uma intervenção militar em outros estados, quiçá no Brasil como um todo”.

Ela aponta que, mesmo nas ditaduras, é possível haver arremedos de instituições democráticas em funcionamento, como eleições e partidos políticos, mas sob tutela autoritária. Foi o que teria acontecido com a ditadura de 1964-1985, na qual o autoritarismo era disfarçado por meio do funcionamento formal das instituições. Pandolfi acredita que é esse o risco por que a passa hoje o país. “Podemos até não ter uma ditadura naqueles moldes, mas um cerceamento da democracia cada vez maior”.


Luís Costa é jornalista e doutorando em história pela UFRJ

(2) Comentários

  1. Texto interessante, entretanto este “risco altíssimo” referido na matéria é único e necessário, pois não há instituições no Brasil capazes de serem protagonistas de uma intervenção federal no Rio de Janeiro. Temor maior seria sem as forças armadas agindo firmemente na garantia da lei e da ordem.

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