A estratégia da aranha

A estratégia da aranha

Para o historiador José Murilo de Carvalho, os brasileiros são eternos inconfidentes, e a democracia, uma obra sempre em construção

Quando o historiador mineiro José Murilo de Carvalho afirma que nós brasileiros somos “eternos inconfidentes”, não há nenhum traço de heroísmo na expressão. Seu sentido é de uma tarefa inconclusa. No Brasil, a democracia – se definida como um conjunto de valores que inclui a liberdade, a igualdade e a participação – não é obra acabada. “A liberdade e a participação, em vigor desde 1985, ainda não produziram a redução dos índices de desigualdade. Esse é o nó de nossa democracia”, disse Carvalho em entrevista à CULT, no Rio de Janeiro.

Para o historiador, a desigualdade social é o equivalente republicano da escravidão na monarquia. “Assim como o trabalho escravo era o grande obstáculo à democratização no século 19, a desigualdade é hoje a escravidão que impede o avanço democrático”, afirma. Autor de obras fundamentais da historiografia brasileira, Carvalho já analisou profundamente diversos aspectos da vida política nacional: a construção do Estado (Teatro de sombras – A construção da ordem; ed. Civilização Brasileira), da nação (Os bestializados e A formação das almas; ed. Companhia das Letras) e da cidadania (Desenvolvimiento de la ciudadanía em Brasil, publicado no México pelo Fondo de Cultura Económica, em 1995).

Professor titular do departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e recém-empossado como novo imortal da Academia Brasileira de Letras, no último mês, Carvalho fala sobre o longo percurso de implantação da democracia no Brasil.

DEMOCRACIA À BRASILEIRA?
Democracia é um ideal de sistema político criado no Ocidente, cujo conteúdo e exercício têm passado por constantes modificações ao longo da história. Se a definirmos como um conjunto de valores que incluam igualdade, liberdade e participação, podemos dizer que os países se alinham de acordo com a maior ou menor aproximação desse modelo, tendo cada um seguido um percurso próprio. Idas e vindas devem-se ao fato de que os três componentes são muitas vezes incompatíveis. Nesse sentido, não há uma democracia à brasileira. Há um percurso brasileiro de busca do modelo, iniciado em 1822.
Algumas características desse percurso? Primeira: é “looongo”! Segunda: é particularmente falho na parte do tripé que corresponde à igualdade. Terceira: é tortuoso, mas vai para a frente. Democracia, ainda que tardia.
Somos eternos inconfidentes.

DIREITOS CIVIS E SOCIAIS
No caso dos direitos sociais, nossa legislação social foi bastante precoce, implantada ao estilo alemão, de cima para baixo. Seu problema hoje é gerencial e financeiro. No caso dos direitos civis, estão na Constituição desde 1824. Mas são até hoje os menos garantidos. Enfrentaram ao longo da história os obstáculos formidáveis da escravidão, do latifúndio e do patriarcalismo, que os tornavam letra morta para a maioria da população. Hoje, enfrentam o problema da violência urbana, da corrupção policial, da ineficiência do Judiciário. O cidadão do campo, indefeso diante do senhor de terras, continua hoje indefeso no mundo urbano diante do crime, do arbítrio policial, da inacessibilidade ao Judiciário.

PARTIDOS POLÍTICOS
A história dos partidos políticos no Brasil caracteriza-se pela descontinuidade. No Império, havia partidos nacionais, frouxamente organizados. A República os destruiu e criou partidos mais organizados, mas de alcance apenas estadual. A Revolução de 30 os destruiu e não chegou a formar partidos, dada a interrupção de 1937. Entre 45 e 64, formava-se um sistema de partidos nacionais razoavelmente funcional. O Golpe de 64 os destruiu. A nova tentativa tem 20 anos e necessariamente exibe falhas que só a prática ininterrupta pode corrigir.

INCLUSÃO VS. EXCLUSÃO
O século 20 político começou em 1930. Foi marcado pela turbulenta tentativa de incorporar o povo à República. A incorporação via política foi interrompida em 1937 e em 1964. O Estado Novo compensou a exclusão política pela inclusão social. A inclusão política foi afinal conseguida após 1985, mas ficou inacabada a tarefa da inclusão social.

MODELOS REPUBLICANOS
Havia vários modelos de república disputando a hegemonia ao final do Império: o liberal, o revolucionário, o positivista. O primeiro, de inspiração norte-americana, era federalista e darwinista; o segundo, de inspiração francesa, era centralista e jacobino; o terceiro, de origem também francesa, era social e autoritário. Venceu o primeiro: liberdade sem igualdade e sem participação, liberdade para os mais fortes. O Estado Novo ensaiou o modelo positivista: igualdade social sem liberdade política. Hoje se busca uma república social, mencionada pela primeira vez na França em 1848. Nela, tenta-se combinar os três modelos: liberdade (norte-americano), participação (jacobino), inclusão social (positivista).

REPÚBLICA LIBERAL
República e democracia não são sinônimos. Há repúblicas não-democráticas, como as liberais e as socialistas. Em sociedade hierarquizada como a nossa, o ideal de república para o andar de cima, como diz o [jornalista Elio] Gaspari, é a república liberal.

A ESCRAVIDÃO DA REPÚBLICA
Assim como a escravidão era o grande obstáculo à democratização no século 19, pelo lado da liberdade, da igualdade e da participação, a desigualdade é hoje a escravidão que impede o avanço democrático. Assim como o país no século 19 foi muito lento em abolir a escravidão, continuou no século 20 lentíssimo em reduzir a desigualdade. A liberdade e a participação, em vigor desde 1985, ainda não produziram a redução dos índices de desigualdade. Esse é o nó de nossa democracia. Tem sem dúvida havido melhoria na qualidade de vida das pessoas, como efeito indireto de políticas sociais que vêm do governo Fernando Henrique Cardoso. Essa melhoria talvez explique a tolerância da injustiça causada pelo desemprego e por baixos salários. A solução duradoura só virá pela capacidade do mercado de produzir empregos. Sem isso, a política social assumirá características cada vez mais paternalistas, com custos financeiros cada vez mais proibitivos.

CONTRA A DESIGUALDADE
Desde a redemocratização de 1985, há maior consciência do problema da desigualdade e da exclusão. O governo atual busca intensificar o esforço de promover a incorporação dos que até agora ficaram de fora. É a tentativa de consertar o pé quebrado da igualdade. Sem ele, adeus democracia.

O GOVERNO
O valor simbólico da chegada de Lula ao poder foi grande e ajudou nos primeiros meses do governo. Mas no segundo ano já vieram as cobranças de resultados concretos e serão eles que decidirão se haverá fato novo. Ironicamente, o aumento atual de popularidade é resultado da retomada do crescimento parcialmente devido à políticas econômicas continuístas severamente criticadas pelos próprios aliados. A aproximação com parte do PFL também lembra a mesma aliança do governo anterior, pela qual FHC pagou alto preço. A retomada do desenvolvimento, se sustentada, pode gerar maiores recursos para a política social e com isso acelerar o combate à desigualdade. Creio que essa aceleração, dentro da democracia, mesmo que feita às vezes com métodos polêmicos, é o que de melhor se pode esperar do governo Lula.

O BRASIL NO MUNDO
Lula continua deslumbrado, achando-se um grande líder mundial (“Outro dia, acordei invocado e liguei pro Bush”). Mas a política externa de seu governo tem sido mais agressiva e apresenta resultados positivos. Na América do Sul, rompeu com a tradicional hesitação em assumir o papel de liderança que as dimensões de sua economia justificam. No plano mundial, a aproximação com grandes nações não-ocidentais, Índia, China, África do Sul, embora não sem problemas, marca uma posição menos subserviente. O que é necessário é dosar a ousadia com a real capacidade de influência do país, regular o passo com o tamanho da perna.


Ricardo Calil

Jornalista

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