Um intelectual essencial

Um intelectual essencial
(Foto: Divulgação/Companhia das Letras)

 

Essencialidades

Acaba de ser lançada pela Penguin, braço editorial da Companhia das Letras, coletânea com o Essencial (como diz o título) de Roberto Schwarz. Nada mais justo, no ano em que o crítico – nascido na Áustria, em 1938 – completou 85 primaveras.

Ao longo deste período, Schwarz se consolidou como personagem intelectual inescapável no cenário brasileiro e, em certa medida, global. Para Franco Moretti, que assina a introdução do livro, Schwarz é nada menos do que “o maior crítico marxista de nosso tempo”, o que já havia sido vaticinado por Perry Anderson tempos atrás.

Mais difícil, porém, é definir o que, na economia interna da obra de Schwarz, configura o “essencial” a ser disposto em uma só coletânea. Estamos diante, afinal de contas, de um autor cuja obra apresenta um enlaçamento interno rigoroso, como se quase nada transbordasse o seu núcleo fundamental.

À primeira vista, tal organicidade – que não exclui bifurcações pelo caminho – facilitaria a tarefa. Em uma obra em que tudo parece “essencial”, bastaria escolher ao acaso alguns dos seus ensaios mais conhecidos, de preferência aqueles identificáveis pelos títulos que ressoam aos ouvidos de quem mesmo ainda não os leu.

No entanto, quando se olha além das árvores, na direção da floresta, o que se vê é uma flora “envenenada”, para lembrar um dos ensaios (este, a propósito de Dom Casmurro) sobre Machado de Assis compilados no livro. Isso porque ela não está imune à história da qual faz parte, e tampouco às contingências que a vida impõe, redefinida a margem de manobra possível.

É nessa relação complexa entre itinerário intelectual, textos e contextos, portanto, que a sua originalidade “essencial” pode ser captada. Tanto mais não seja porque, para quem acompanha o autor, não é difícil imaginar que foi ele próprio o responsável pela escolha dos ensaios, assim como por sua disposição interna. Relê-los à luz dessa premissa se torna, então, uma chave interpretativa profícua à compreensão do modo como Schwarz visualiza, no presente, o sentido de sua obra pretérita.

Ideias modernas, lugar periférico

Não parece obra do acaso, nesse sentido, que o volume seja aberto com o ensaio “As ideias fora do lugar”, cujo título nem sempre foi bem compreendido. Publicado quase simultaneamente na França e no Brasil, em 1972 e 1973, respectivamente, o ensaio é decisivo na trajetória de Schwarz. Não apenas por ter sido redigido nos primeiros anos do exílio em Paris, mas também, e sobretudo, porque é nele que, pela primeira vez, o intelectual austro-brasileiro descortina em termos rigorosos a direção dos seus estudos sobre Machado de Assis.

Se a ideia de pensar Machado por meio do Brasil oitocentista, e vice-versa, já lhe havia ocorrido ainda nos anos 1960, em especial após o golpe de 1964, faltava-lhe uma interpretação específica do processo social brasileiro através da qual pudesse desvendar a “objetividade” da forma machadiana. E essa interpretação só foi de fato realizada no exílio, momento em que, após os traumas de 1964 e de 1968, com a proclamação do AI-5, o crítico que agora retornava ao continente de origem pôde repensar o passado brasileiro a partir dos desdobramentos da ditadura militar reacionária, mas modernizadora, no presente.

Da França, Schwarz tomava parte, assim, no processo de revisão crítica do pensamento social e político brasileiro levado a cabo por intelectuais paulistas ligados à Universidade de São Paulo e, a partir de 1969, ao CEBRAP, então fundado por professores cassados após o AI-5, tais como Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti, Fernando Novais, dentre outros – quase os mesmos que, de 1958 a 1964, tinham sido responsáveis pelo chamado Seminário d’O Capital. Na época aluno da graduação em Ciências Sociais, Schwarz participou do Seminário e, posteriormente, não se cansaria de demarcar – não raro de maneira um tanto exagerada – a importância da “nova intuição sobre o Brasil” ali gestada para a sua própria reflexão sobre Machado de Assis.

Nos anos 1970, esse processo assumiu contornos coletivos, o que alçaria os intelectuais paulistas ao centro da cena intelectual brasileira, num momento em que a temática da construção nacional interrompida, sem desaparecer, vai cedendo passo à questão da democracia. A especificidade de Schwarz, nesse cenário, reside no modo como a literatura – ou a cultura de modo geral – é tomada como via de acesso ao processo social brasileiro. Com isso, ele acabaria por escapar de algumas das aporias que, malgrado os avanços em relação ao imaginário nacional-desenvolvimentista, ainda limitavam os trabalhos de seus professores e/ou colegas do Seminário d’O Capital.

Dentre elas, destaca-se a persistência de uma certa idealização do moderno que ainda não seríamos, muito embora se buscasse comprovar, no mesmo passo, a inviabilidade de um desenvolvimento nacional “autônomo” e capaz de internalizar os seus centros decisórios, para retomar a linguagem de Celso Furtado. Em ensaio dos anos 1990, “Um seminário de Marx”, também compilado no livro, Schwarz faria um balanço crítico da experiência, no qual se ressente da ausência, no grupo, da crítica ao fetichismo da mercadoria e à mercantilização da cultura. Como criticar a modernidade realmente existente se o horizonte ainda era o da procura por uma modernidade possível?

A forma da formação

O ensaio “As ideias fora do lugar” figuraria como capítulo introdutório de sua tese de doutorado, dedicada a José de Alencar e ao primeiro Machado de Assis, e defendida na França em 1976. No ano seguinte, pouco antes de Schwarz voltar do exílio, o estudo foi publicado em livro no Brasil com o título – igualmente sugestivo da mimetização acima referida – Ao vencedor as batatas.

No ensaio, Schwarz argumenta que as ideias liberais/modernas pareciam fora do lugar, no século 19, uma vez que boa parte dos seus portadores sociais (as elites) não hesitavam em proclamá-las ao mesmo tempo em que reproduziam, sem grandes complexos, uma formação social ainda marcada pelo processo de colonização e, tanto mais importante, pela escravização de negros africanos. Para Schwarz, essa “desfaçatez de classe” configura a “objetividade” por meio da qual tanto o processo social quanto a forma dos romances machadianos da última fase podem ser lidos, um através do outro.

Na medida em que o “social está na forma”, como disse o jovem Lukács, cabe à crítica estabelecer as mediações entre os dois polos, a realidade e a literatura. Mas, em se tratando de um país periférico, tal relação não pode ser pensada como o fora no realismo europeu.

Veja-se o caso da “importação do romance e suas contradições em Alencar”, tema do segundo capítulo da tese de doutorado de 1976, também alocado como segundo ensaio do volume aqui debatido. Ao retomar o modelo realista europeu, tingindo-o de matéria local, Alencar reproduziu, sem mediações, o desajuste entre forma e realidade, decalagem que, em outra chave, pode ser vista igualmente no primeiro Machado.

Esse não será o caso do último Machado, argumenta Schwarz. Com Memórias póstumas de Brás Cubas, o bruxo do Cosme Velho (como o escritor ficou conhecido graças a um poema de Carlos Drummond de Andrade) atinge um novo patamar, deslocando o seu ponto de vista para os de cima. E assim o faria através da figura do narrador volúvel, ponto fulcral a partir do qual o crítico explica a forma dos romances não como figuração realista do movimento de conjunto da sociedade – como no Balzac lido por Lukács, por exemplo –, mas sim como uma espécie de tradução literária da dinâmica das elites pátrias, que no fim das contas aparecem explicitadas no seu descompromisso com qualquer projeto de construção de uma nação moderna.

Ao expor as elites ao ridículo, o narrador machadiano comporta-se como um verdadeiro “traidor de classe”, em papel semelhante ao assumido pelo poeta francês Charles Baudelaire diante da burguesia francesa, ao menos a se acreditar nas interpretações de Walter Benjamin ou de Dolf Oehler, como é o caso de Schwarz. Tanto assim que o título de seu livro sobre o último Machado não esconde o parentesco com a caracterização benjaminiana de Baudelaire: se este era o “lírico no auge do capitalismo”, o escritor carioca seria o nosso “mestre na periferia do capitalismo”.

Com esse livro, publicado apenas em 1990, quando era professor da Unicamp, Schwarz finalmente arrematava o projeto esquadrinhado em “As ideias fora do lugar”, no exílio. Foi o último Machado que logrou encontrar uma forma capaz de traduzir em linguagem literária os impasses nacionais identificados no ensaio do início dos anos 1970. No quesito das essencialidades, encontra-se no volume talvez o principal capítulo de Um mestre na periferia do capitalismo, “Acumulação literária e nação periférica”.

Em Schwarz, é como se Machado de Assis fosse a mediação por meio da qual o crítico reconstitui o marxismo “a partir das contradições locais”, única forma de evitar que ele também se mantenha como uma “ideia fora do lugar”. Como diz em entrevista de 1976 ao jornal Movimento, reproduzida no livro, se, de um lado, o marxismo também parece deslocado na periferia do sistema, de outro, em função de sua inclinação materialista – segundo a qual “a teoria é parte […] da realidade, e sua inserção no processo social é parte do que concretamente ela é” –, ele se encontra em melhores condições, se comparado ao liberalismo ou ao conservadorismo, de reelaborar as ideias à luz do lugar cuja compreensão é, afinal, o que importa.

A opção por situar “As ideias fora do lugar” como primeiro ensaio do livro é ainda mais sintomática por se tratar de uma escolha não cronológica. Há no volume ensaios anteriores, inclusive um de sua juventude intelectual, “8 ½ de Fellini: o menino perdido e a literatura”, publicado originalmente na revista Civilização Brasileira, em 1965, e estranhamente alocado como último texto do livro.

Está ali também o afamado ensaio “Cultura e política, 1964-1969: alguns esquemas”, seu primeiro texto escrito no exílio, publicado em 1970 na revista Les Temps Modernes. São ensaios relevantes, sem dúvida, mas que também revelam, por contraste, o salto qualitativo representado por “As ideias fora do lugar”.

Atualidades periféricas

Em Roberto Schwarz Essencial, é notável a pouca quantidade de ensaios dos anos 1990, 2000 ou 2010, período em que a crítica schwarziana vai se revelando cada vez mais “negativa”, na contramão da ascensão do neoliberalismo. Além do já mencionado ensaio sobre o Seminário d’O Capital, escrito em 1995, no primeiro ano da presidência de Fernando Henrique Cardoso, um dos criadores do grupo, constam no volume texto de 1999 sobre Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, e o ensaio sobre Verdade tropical, de Caetano Veloso, originalmente publicado em 2012.

Não se vê na coletânea, por exemplo, um ensaio como “Fim de século”, de 1994, em que Schwarz esboça um diagnóstico do colapso da modernização à brasileira que, mais tarde, seria utilizado como pontapé crítico por autores como Francisco de Oliveira (em “Ornitorrinco”) e Paulo Arantes (em “Fratura brasileira do mundo” e outros ensaios). Trata-se de um escrito decisivo para explicitar a inflexão pela qual passou o pensamento do autor a partir do início dos anos 1990. Para Schwarz, num cenário em que a modernização já não podia mais ser vista como caminho para a efetivação da construção de uma nação “moderna”, a questão nacional-periférica seguia vigente, mas como problema e não como solução.

É de se indagar a ligação entre essa ausência e os últimos dez anos da política brasileira. Talvez a ascensão da extrema-direita, na esteira dos acontecimentos entre 2013 e 2016, tenha estimulado Schwarz a revisar, em parte, se não o seu diagnóstico de fundo, ao menos a sua a análise mais conjuntural, entrevendo nos governos liderados pelo PT uma barreira nacional e democrática possível diante do avanço do neofascismo.

Nesse cenário, a crítica negativa permanece, mas agora aparece temperada por considerações políticas mais urgentes, desafios cujo enfrentamento demandaria um recuo tático em relação à constatação de um impasse que, entretanto, continua sendo estrutural. Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, Schwarz parece retomar a disjuntiva entre moderno e tradicional a fim de definir o bolsonarismo como o retorno à cena, apoiado pelo capital, do “fundo regressivo” da sociedade brasileira. Assim como em 1964, as elites teriam se bandeado para uma “aposta anti-ilustrada”, agora em reação à democratização relativa vivenciada nos governos do PT, mobilizando, para tanto, a frustração de expectativas em relação aos limites de tal avanço democrático.

Mais recentemente, na peça de teatro Rainha Lira, Schwarz arriscou uma análise mais global da “cacofonia ideológica” do Brasil recente, não hesitando em explicitar os dilemas da própria esquerda sob ataque. O retorno ao teatro – nos anos 1970, ele já havia publicado a peça A lata de lixo da história – é por si só significativo. Foi a mediação possível para que o crítico arriscasse um diagnóstico do espírito do tempo brasileiro num momento em que, como ele próprio reconheceu em entrevista recente, a mim concedida e publicada na revista Margem Esquerda, não se via em condições de elaborar uma análise ensaística propriamente político-social.

No capítulo das ausências, é notável também o fato de que um ensaio como “Nacional por subtração”, de 1986, não tenha sido selecionado. Nele, Schwarz retoma a problemática de “As ideias fora do lugar”, confrontando-a, então, com abordagens “cosmopolitas”, de corte pós-estruturalista, como a de Silviano Santiago. Para o crítico, se o nacionalismo estreito, avesso a qualquer diálogo com os influxos externos, não é uma saída crível diante do funcionamento do mundo das ideias na periferia do capitalismo, nem por isso a resposta estaria no abandono da questão nacional em benefício de um cosmopolitismo abstrato.

E se há uma linha de continuidade no pensamento de Schwarz, de “As ideias fora do lugar” aos ensaios redigidos a partir do início dos anos 1990, é exatamente essa: a defesa da questão nacional não como subterfúgio para uma perspectiva nacionalista, na teoria e/ou na política, mas sim, ao contrário, como problema “objetivo” inescapável mesmo para uma reflexão marxista ancorada na luta de classes. Não se anulam as determinações do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo apenas por um ato de subversão linguística.

É essa mirada periférica, aliás, que garantiria o alcance universal quer seja da própria literatura brasileira, quer seja de sua crítica. Do ponto de vista da periferia, é o sistema como um todo que aparece na sua faceta mais desagregadora, ainda mais em tempos, como os de hoje, em que problemas sociais outrora restritos aos países “subdesenvolvidos” ou “em desenvolvimento” se alastram também por países “desenvolvidos”.

O país do futuro enfim se tornou um dos espelhos do presente, mas numa direção muito diferente daquela antes almejada. Da vanguarda de um mundo em desmanche, e com Machado à l’esprit, Schwarz acompanhou com lupa crítica todo esse processo. E por isso mesmo ele é, de fato, um dos maiores intelectuais do nosso tempo, um intelectual essencial. E assim o será, ao menos enquanto o Brasil e o mundo continuarem sendo o que são.

Fabio Mascaro Querido é professor livre-docente e atual chefe do Departamento de Sociologia na Unicamp.


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