“Índio-mania” e a filosofia nos trópicos
Índios cajatis na década de 1970; pensamento ameríndio pontua a história intelectual brasileira (Foto: Acervo Correio da Manhã/Arquivo Nacional)
Na filosofia, falar em pensamento ameríndio pode parecer moda passageira, fruto sobretudo do impacto da obra de Eduardo Viveiros de Castro ou de um livro como A queda do céu (2015), de Davi Kopenawa e Bruce Albert. De modo semelhante, algumas pessoas mais ou menos desinformadas acusam o recente e vertiginoso crescimento dos estudos de gênero e de pensamentos e culturas afrobrasileiras, ou das teorias decoloniais latino-americanas, na filosofia, como mero modismo, importado do exterior.
Essa “tese do modismo” não se sustenta, ainda que reconheçamos a força e a centralidade da influência de referências recentes, importadas ou não. É fácil demonstrar que tais pesquisas inserem-se em antigas e importantes tradições do pensamento brasileiro, também na filosofia – no caso do pensamento ameríndio, tradições por vezes esquecidas, ou identificadas pela academia com uma linhagem de pensadores pouco rigorosos, nada sistemáticos, mais literatos e políticos do que filósofos, como Sílvio Romero e Oswald de Andrade. Um dos problemas em jogo aqui, portanto, é o da fronteira disciplinar; outro, o de um método próprio da filosofia – problemas para os quais alguns cães de guarda gostariam de ter a última palavra.
Já em 1874, em Etnologia selvagem: estudo sobre a memória, região e raças selvagens do Brasil do dr. Couto de Magalhães, o próprio Sílvio Romero pontificava: “A índio-mania cresceu por fatalidade e acabou por inconsciência”. A estranha proposição, na abertura de um ensaio de etnografia, explica-se. “Índio-mania”, nesse texto, refere-se à tendência, por parte de alguns estudiosos seus contemporâneos (José Vieira Couto de Magalhães, João Barbosa Rodrigues, Teófilo Braga), de supostamente superestimarem a importância dos indígenas na cultura brasileira. O crítico-filósofo sergipano batia-se, à época, contra teses que defendiam, por exemplo, os “cruzamentos pré-históricos de nosso caboclo com alguma raça branca”. Racialista, defensor da superioridade do português e do estágio de “atraso” dos ameríndios (que “jamais poderão ter uma história” por não terem desenvolvido a escrita), Sílvio Romero entretanto assumia os estudos antropológicos (associados à arqueologia e à linguística) como centrais para o desenvolvimento de uma crítica literária e uma filosofia nossas, que não fossem mera importação-repetição do que se produzia alhures.
Desafio semelhante apresentou-se a Oswald de Andrade. Uma das mais intensas provocações decoloniais do pensamento brasileiro, a Antropofagia surgiu em 1928, com o Manifesto antropófago, e seria conceitualmente desenvolvida em diversos textos produzidos até o fim da vida do escritor (1954). A importância especificamente filosófica da Antropofagia tem sido recentemente reconhecida por inúmeros trabalhos, dissertações e teses, na esteira de textos seminais como os de Benedito Nunes e dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos. Necessário compreender a relevância filosófica da Antropofagia na perspectiva de continuidade aos debates que a antecedem, como aquele animado por Sílvio Romero. Independentemente da avaliação que se faça quanto à relevância da produção desses dois ensaístas – Sílvio Romero e Oswald de Andrade –, isso é suficiente para desacreditar a crítica leviana de que o interesse propriamente filosófico pelas culturas indígenas consiste em mero modismo.
Em Caetés (1933), romance de estreia de Graciliano Ramos, o narrador e personagem João Valério, que pretendia escrever um livro sobre os índios, desabafa: “Também aventurar-me a fabricar um romance histórico sem conhecer história! Os meus caetés não têm verossimilhança, porque deles apenas sei que existiram, andaram nus e comiam gente. Li, na escola primária, uns carapetões interessantes no Gonçalves Dias e no Alencar, mas já esqueci quase tudo. […] Caciques. Que entendia eu de caciques?”. Pode-se muito bem ler essa passagem, para além da intenção do autor, como exemplo de crítica à “índio-mania”, que Romero já ironizava. O que Romero ou Oswald (e Gonçalves Dias e José de Alencar) conheciam dos indígenas? E o que entendemos nós de caciques? Essa é, contudo, uma forma rasa de formular a questão, diante do desafio de, ao filosofar no Brasil, levar em conta o pensamento e as culturas indígenas – forma que parece prevalecer até mesmo em leituras positivas da Antropofagia que privilegiam a questão da devoração como metáfora da apropriação subversiva de “outras culturas”, como a europeia, a partir do mote oswaldiano “só me interessa o que não é meu”. A armadilha aqui está em transformar em quase nada o gesto antropófago, congelando o paradoxo do modernista que elege como “sua” uma cultura que lhe é alheia, a indígena, e como “outra” essa cultura europeia que tão bem lhe constitui.
Mas qual seria, afinal, a importância
do pensamento e das culturas dos
ameríndios para a produção filosófica
nos trópicos, em face de nossa formação
ocidental, predominantemente europeia?
E de quais elementos filosóficos e culturais ameríndios estamos falando? Há hoje, no Brasil, numa estimativa conservadora, cerca de 240 povos indígenas, e existe, em relação a cada um deles, o desafio de oferecer traduções razoáveis para aquilo que “nós”, os “ocidentais” que os estudamos, podemos querer reconhecer como seus “elementos filosóficos e culturais”. Os estudos antropológicos nos forçam a atentar, de um lado, para a conjugação do trabalho teórico de tradução, interpretação e generalização; de outro, para a percepção das especificidades e do intraduzível, de seus imponderáveis. Tudo somado, é fundamental partir do princípio de que nossas teorias sobre o pensamento e as culturas ameríndias não são mais “objetivas” ou “verdadeiras” do que os próprios mitos e pensamentos indígenas, como insistiu por diversas vezes Claude Lévi-Strauss. Outro princípio, ao primeiro associado, é questionar seriamente a suposta superioridade de nossas ontologias ocidentais ante às dos ameríndios, como sugerem Viveiros de Castro e Philippe Descola.
Mas por que fazê-lo? Mero exercício de “relativismo cultural”? O que queremos nós, filósofos/as, quando nos debruçamos sobre as culturas indígenas? Trata-se, no mínimo (e não é pouco), de perceber quanto essa demanda interpela algumas concepções tradicionais da filosofia e de seu ensino: que as cosmoapreensões que atribuímos aos ameríndios, assim como seus saberes, mitos e ritos, desafiam, em diversos sentidos, as das filosofias ocidentais, obrigando-nos a reconhecer o quanto o próprio desenvolvimento das cosmovisões ocidentais modernas deve ao encontro, à recusa e à destruição desses outros modos de compreensão e experiências da vida, do mundo, dos seres humanos e não humanos.
Não menos relevante, por fim, é o fato de que pensamos do ponto de vista de uma certa periferia do mundo globalizado. Nós, ocidentais periféricos urbanos, falantes de uma língua latina, herdeiros de complexas tradições de pensamentos e culturas majoritariamente ocidentais, somos também atravessados, em nosso contexto local, em nossas identidades, queiramos ou não, pelas histórias e culturas ameríndias e africanas. Atentar para esses elementos constituintes, suas tensões e aporias, valorizá-los, assumi-los como elementos essenciais de nossas percepções, preocupações, afetos e questionamentos não é mera opção, salvo como uma cegueira antifilosófica muito suspeita diante das condições de nosso próprio pensamento, como Oswald nos ajuda a reconhecer. Trazer tal tomada de consciência para o centro desse exercício que chamamos de “filosofia” – exercício de pensamento cujas estruturas, peculiaridades e finalidades parecem indissociáveis da história do Ocidente, do colonialismo, do patriarcado feminicida, dos etnocídios e genocídios ainda hoje praticados contra indígenas e afrodescendentes – tem a ver com o sentido mesmo que a filosofia pode ter entre nós, nos trópicos, ao menos na medida em que nos colocamos seriamente a questão acerca do que significa, tanto ontem como hoje, filosofar nos trópicos.
Filipe Ceppas é filósofo e professor da Faculdade de Educação e da pós-graduação em Filosofia da UFRJ. Autor, entre outros, de Ensaios de filosofia nos trópicos: questões de ensino e aprendizado (Unicamp, 2020).