Bruta sacudidela nas artes nacionais!

Bruta sacudidela nas artes nacionais!
O poeta Oswald de Andrade, um dos mentores do movimento modernista (Foto: Reprodução)

 

Em meados de 1921, os poetas viam a cidade de São Paulo a miragem da “Paulicéia”, a “girl babilônica” (Oswald de Andrade) com sua “grande boca de mil dentes” (Mário de Andrade), a cosmópole que assistia, indiferente, à renovada de pássaros metálicos e à aparição de catedrais e fábricas imensas que “se centimultiplicavam em garras e tentáculos” (Agenor Barbosa). Tais imagens soam hiperbólicas aos ouvidos de hoje, mesmo porque a cidade de 400 mil habitantes dos anos 20 não representa nem a sombra da megalópole de 15 milhões do século 21 – esta sim, urbe tentacular, babilônica… ou será que daqui a cem anos dirão que superestimávamos São Paulo do século 21 como um Leviatã? É preciso esforço para imaginar a perplexidade que tomava conta dos artistas paulistanos e gerava uma sensibilidade até então inédita no Brasil, afetada pelo impacto da máquina e das vanguardas européias, em especial o Futurismo italiano. Essa percepção alterava a visão de mundo e o comportamento. E foi ela a fornecer a atmosfera para a Semana de Arte Moderna.

O evento compreendeu três noitadas, ou “festivais”, com recitais, conferências, declamação de poemas e exposição de escultura e pintura. As récitas aconteceram no Teatro Municipal de São Paulo entre 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, segunda, quarta e sexta-feira. Apesar de ter sido realizada em poucas noites, para um público relativamente reduzido, sua repercussão pode ser sentida até hoje, embora em menor escala do que nas primeiras três décadas que o sucederam. A Semana enterrou reputações, erigiu uma nova plêiade e revolucionou o paradigma cultura. Ao público, a emergência da nova estética se afigurou novidade. Mas ela vinha sendo fermentada desde pelo menos 1917. O Modernismo foi uma bomba bem instalada.

Até a irrupção do movimento, São Paulo não ia muito além do casario de Amador Bueno, paroquial e garoenta, para não dizer agourenta, “tristonha”, como definia Mário de Andrade. Poucos almofadinhas e melindrosas andavam pelas alamedas de Campos Elíseos – o bairro chique da cidade, hoje sede da famosa Cracolândia – e a moda, além de dançar o maxixe estilizado da dupla de bailarinos Duque e Gaby nos salões familiares, resumia-se em desfilar pelo Jardim da Luz com um lulu da Pomerânia, por imitação aos cariocas, lançadores de moda, até porque habitavam a capital da República. A “Paulicea”, contudo, não se despia de charme. Quando a visitou, na Belle Époque, a atriz francesa Sarah Bernhardt a havia apelidado de “Cidade das Artes”. Os paulistanos sabiam que se tratava de mais uma coquetterie de Sarah, mas ostentavam-na como um título honorífico. Podiam não dispor do esplendor fluminense; ainda assim, contavam com teatros, livrarias, editoras, cinemas, jornais, restaurantes, bares, mansões e palácios edificados pelos barões do café. Os primeiros prédios de lojas e apartamentos, de até três andares, recortavam o céu nublado do Viaduto do Chá. A Faculdade de Direito do Largo São Francisco funcionava desde 1828; durante o Romantismo, alguns de seus estudantes, como Bernardo Guimarães e Álvares de Azevedo, inseriram a cidade no mapa cultural, praticando o byronismo ortodoxo, movido a orgias, dissipações e a santificação da tísica.

Outra instituição, o Conservatório Dramático e Musical, foi fundada em 1906 pela oligarquia cafeeira. Formava pianistas, compositores, atores e diretores de teatro e sediava, em sua sala de concertos de acústica insuperável, concertos internacionais e palestras da Sociedade de Cultura Artística. Numa cerimônia no salão, em 21 de novembro de 1917, o jovem repórter Oswald de Andrade (trabalhava no Jornal do Commercio), bacharelando em direito pela São Francisco, se impressionou com um discurso que o jovem professor Mário Raul de Moraes Andrade proferiu em homenagem a Elói Chaves, então secretário de Justiça do Governo de São Paulo, e se tornou seu amigo. Mário dava aulas de história da música na instituição e engatinhava nas letras sob o semipseudônimo de Mário Sobral. Este mal havia publicado seu primeiro livro, Há uma gota de sangue em cada poema.

 

Ainda não existiam universidades
e os intelectuais atuavam na esfera
pública, por meio do jornalismo.
Reuniam-se nas casas e nos bares.

 

 

Egresso do Ginásio de São Bento e ainda a ruminar ruidosamente uma viagem pela Europa em 1912, de onde trouxe um exemplar do Manifesto Futurista (1909), de Marinetti, Oswald declarava independência dos padrões morais de sua família ao alugar, naquele 1917, um apartamento, na rua Líbero Badaró, 67, 3º andar. Ele chamava o imóvel de garçonnière, e não era modo de dizer, não: o termo cunhado por oligarcas e estudantes para designar apartamentos de encontros libertinos servia para isso mesmo, mas Oswald ampliava a função do imóvel, transformando-o numa espécie de café-filosófico avant la lettre: reunia os amigos e as namoradas. Continuava a morar oficialmente na casa da família, na rua Augusta, onde dona Inês de Souza obrigava o rapaz a cursar direito. Das tertúlias de Oswald participaram Monteiro Lobato, Léo Vaz, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida e Miss Cíclone (ou Deisi, ou Maria de Lourdes Castro Pontes), a musa que dominou a primeira dentição da criatividade oswaldiana. É de notar que o pudico Mário não freqüentava o local. Oswald dizia preferir encontrá-lo nas leiterias, numa velada ironia ao jeito família e efeminado de Mário. O “livro de ouro” da garçonnière, com pilhérias, versos e improvisos, virou o O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, publicado por Haroldo de Campos e Mário da Silva Brito em 1982 e republicado dez anos depois pela editora Globo. O livro se encerra com o necrológio de Cíclone, em agosto de 1919, aos 19 anos, casada in extremis com Oswald. Tudo isso fez de garçonnière  o primeiro salão do futurismo paulistano. Nela, Monteiro Lobato esqueceu o manuscrito do artigo “Velha Praga” (1914) da coletânea Urupês (1919), a primeira obra considerada moderna na literatura local. Ali, Oswald forjou o personagem João Miramar e começou a escrever o romance sobre ele, Memórias sentimentais de João Miramar, publicado em 1924.

Entre 1917 e 1920, Oswald, Menotti, Mário e outros jovens se deram conta da existência de uma arte nova pela aparição na cidade de dois artistas: a pintora Anita Malfatti e o escultor Victor Brecheret. Em torno das obras dos dois, se agregaram os “modernistas das cavernas”, como diria Mário, na conferência “O Movimento Modernista”, em 1942.

O primeiro impacto veio com a exposição de Anita, que aconteceu de dezembro de 1917 a janeiro de 1918. Tratava-se da segunda exposição da pintora, recém-chegada dos Estados Unidos, depois de estudar com os expressionistas em Berlim. Nos Estados Unidos, Anita havia estudado com Homer Boos, filósofo e pintor vanguardista. Entre os colegas, Anita guardou lembraças de Juan Gris e do “bonito Marcel Duchamp, que pintava sobre enormes placas de vidro” e discorria sobre como fazer barba em dias melancólicos. Fascinada pelo uso festivo das cores. Sua primeira exposição havia acontecido em 1913, na sede da Mappin Sores, na rua 15 de Novembro, com boa aceitação. A segunda estava destinada a desencadear o debate estético em torno da vanguarda e provocou reações exacerbadas. A mostra aconteceu num salão térreo na rua Líbero Badaró, 111, não muito longe de cafés, como o Paraventi, pontos de encontros da boêmia local. Num sábado, Mário (ainda Sobral) visitou com um amigo a exposição e, na presença da artista, deu gargalhadas diante de telas como “O homem amarelo” e “Mulher de cabelos verdes”, carregadas de cores. Anita não gostou da reação, achou Mário um tanto desabusado. Dias depois, o moço vinha lhe trazer um soneto parnasiano em homenagem ao “Homem amarelo”. Como contou Mário em 42, “e a esse mesmo ‘Homem amarelo’ de formas tão inéditas então, eu dedicava um soneto de forma parnasianíssima”, manifestação de um poeta que ainda não conhecia Cézanne nem a forma livre. “Parece absurdo”, disse Mário, “mas aqueles quadros foram a revelação”. Quando Monteiro Lobato, pintor acadêmico e escritor de vanguarda, escrevem em O Estado de S. Paulo o artigo “Paranóia ou mistificação”, um ataque à arte moderna, valendo-se de respeitosamente de Anita, Oswald e Mário saíram para defendê-la nos jornais. Mário contou, em 1924, que Anita, “mulher que sofre”, “foi para casa e desapareceu, ferida”. E começou a praticar impressionismo silvícola. O “coice monumental” (segundo Oswald) arrancaria de Lobato o cetro de líder da escritura vanguardista, cheia de “sugestões de mecanicidade”. Como observa Wilson Martins em Literatura brasileira – Modernismo (editora Cultrix), algumas dessas sugestões seriam usadas por Oswald em 1928 para o seu “Manifesto Antropófago”. Lobato apresentou Peri mosqueando Ceci para o jantar. Oswald pregou a volta à antropofagia.

 

Parte da Comissão Organizadora da Semana de Arte Moderna. Oswald de Andrade aparece em primeiro plano (Foto: Reprodução)

 

Ídolos caíam ao surgimento de outros num dominó arlequinal (palavra do gosto da época). Em janeiro de 1920, Oswald descobriu para os amigos o escultor Victor Brecheret. O “hominho narigudo com voz de baixo russo” (Mário) havia instalado seu ateliê no segundo andar da parte terminada do pavilhão central do Palácio das Indústrias, em construção havia seis anos (até ser inaugurado oficialmente dali a quatro anos, o edifício serviria para feiras agrícolas, pecuárias e artísticas). Oswald ficou pasmo e se valeu da primeira impressão que lhe causara o ateliê para descrevê-lo no romance A estrela do absinto (escrito entre 1921 e 1922, publicado em 1927), transformando Brecheret no personagem Jorge d’Alvelos: “Haviam-no deixado montar aí casa de doido, com desenhos ciclópicos tirados a carvão no soalho e baldes e greda e formas de fragmentos e estátuas.” Ou, como escreveu Mário, na conferência de 1942, “O Movimento Modernista”, o escultor “morava em São Paulo numa espécie de exílio, um quarto que lhe tinham dado grátis, no Palácio das Indústrias, pra guardar os seus calungas”.

A estilização decorativa de Brecheret foi o aspecto que mais seduziu a rapaziada. Considerava-no um gênio. Mário comprou-lhe, pelos olhos da cara, o bronze “Cabeça de Cristo”. Levou a escultura para casa. Seus parentes acharam horrível o Cristo “de trancinhas”. O poeta estava tão feliz que não se importou com as brigas e repreensões que se seguiram à compra da peça. Depois do jantar tenso, Mário subiu ao quarto (que existe ainda, na casa da Lopes Chaves), abriu as portas da sacada, e “olhou sem ver”o que se passava em frente. “Ruídos, luzes, falas abertas subindo, como que indestinado. Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, ‘Paulicéia Desvairada’. O estouro chegara afinal, depois de quase ano de angústias interrogativas. Entre desgostos, trabalhos urgentes, dívidas, brigas, em pouco mais de uma semana estava jogado no papel um canto bárbaro”.

Excitados por Oswald, todos começaram a se considerar gênios e a defender pelos jornais a arte de Brecheret. A escritura nova, inspirada nas artes plásticas, se processava à margem da cultura oficial, de cunho parnasiano e simbolista. As bases do Modernismo já estavam bem estabelecidas em 1920, ano em que Mário redigiu a primeira versão de Paulicéia desvairada e Oswald esboçou João Miramar. Os livros só foram publicados posteriormente, em 1922 e 1924, mas eram lidos e comentados na roda que se formou a partir de então.

 

Ainda em 1919 a turma ganhou
adeptos, com a chegada de
Rubens Borba de Moraes e
Serge Milliet (mais tarde, Sérgio)
da Europa, “sabidíssimos”, na
expressão de Mário.

 

 

Vivia-se nos salões de São Paulo um ambiente francês, patrocinado pelos barões do café, lembra Borba de Moraes no seu ensaio fundamental “Recordações de um sobrevivente da Semana de Arte Moderna” (Correio Brasiliense, de 21 de fevereiro de 1970). Ele viria a ser um dos editores da revista Klaxon (1922) e o tratadista inaugural do movimento, com o ensaio “Domingo dos séculos”, de 1924. Foi o primeiro a associar o ideal da semana à alegria (daí o título do livro), à teoria da relatividade de Einstein e à noção ontológica de velocidade. Afirma, no texto de 1970, que a teoria modernista não recebeu uma formulação definitiva, apesar de sua tentativa no calor dos fatos. Os jovens pertencentes ao núcleo primevo do movimento discutiam e conversavam sem se dar conta da importância e da repercussão que em breve alcançariam: “A doutrina do grupo não foi escrita nem tampouco os princípios aceitos por todos ou as nuanças elaboradas por e para o uso próprio de cada um. Nada ficou registrado do resultado das acaloradas discussões, das impressões de leitura que tanto nos influenciaram, das críticas veementes que fazíamos dos autores contemporâneos, das piadas reveladoras de nosso estado de espírito, dos princípios que aceitávamos e das atitudes que tomávamos.”

Borba de Moraes argumenta que a ausência de fontes primárias sobre o planejamento da Semana fez com que os historiadores se fiassem em material secundário, como artigos de Menotti, Mário, Agenor e Oswald nos jornais em 1921. Cada um tratou de se colocar ocmo líder do movimento. Oswald, para Borba de Moraes, não passava de um “vendedor habilíssimo dos novos produtos da artes e da literatura moderna”, mas “não soube interpretar corretamente a ideologia do grupo modernista. Não lhe faltava inteligência, faltava-lhe cultura, para não dizer simples leitura. Devorava Marinetti e alguns poetas italianos, mas não conhecia, senão de ouvido, a poesia e a prosa francesa contemporânea, tão importantes na gênese do Movimento Modernista brasileiro”. Ora, diz o ensaísta, o Modernismo legou idéias novas e boas, “tão boas que hoje ninguém as contradiz, tão novas que provocaram uma revolução e abriram novos caminhos no Brasil”. E as idéias fervilhavam. Os jornais estampavam textos doutrinários ao estilo dos manifestos de Marinetti (comprados na Livraria Italiana do Tisi, no Largo São Bento). A turma de intelectuais jovens se autodenominava e era chamada pejorativamente de “futuristas de São Paulo”.

Pela primeira vez na cidade, observou Paulo Prado, o mecenas do movimento, as conversas nos salões, nos cafés e nos jornais deixaram de girar em torno de fofocas pessoais ou assuntos políticos para se concentrar no debate estético. A estética conquistava as ruas. E, com ela, uma nova geração de artistas, pensadores e até epígonos.

 

Mário de Andrade, um dos organizadores da Semana de Arte Moderna (Foto: Reprodução)

 

A preparação dos festejos do Centenário de Independência, em 1921, acelerou o tumulto. A turma futurista conquistava aos poucos espaço nos jornais. É o que conta Mário da Silva Brito no livro História do Modernismo brasileiro – Antecedentes da arte moderna (1958). Oswald trabalhava na sucursal do Jornal do Commercio. Ainda em janeiro, Oswald prferia um discurso, num banquete em homenagem a Menotti no salão Parque Trianon, no qual anunciava a existência de uma confraria de “orgulhosos cultores da extremada arte de nosso tempo”. Era a primeira manifestação pública dos futuros modernistas, atuante nas redações de jornal, nas escolas, nas editoras. Menotti divulgava futuristas estrangeiros e nacionais. Seu pupilo, Agenor Barbosa, que também trabalhava no Jornal Paulistano, defendeu ali a pureza estética de Marinetti e publicou versos da própria lavra, apresentados pelo mestre. “Seus poemas são naturalistas integralistas de acordo com as novas correntes estéticas, fixando, assim, numa compreensão integral da função poética de agora, os aspectos da vida violenta e citadina”, escreveu Menotti em “Um poeta”, publicado em 30 de abril de 1921. Um dos poemas se intitula “Canto real da estrada de rodagem”. Outro, “Vida boêmia”: “Eu vim também pra vencer… Mas vim num dia, escuro de ventania/ e de garoa…” Surgia o primeiro poeta marinettista. Mas não venceu. Agenor desapareceria em breve, sob apupos dos colegas que liam seus poemas às gargalhadas, como contou Borba de Moraes (um dos traços do Modernismo à brasileira foi o combate nas próprias trincheiras, e o que explodia era vaidade irrefreável de cada um).

Um mês depois do lançamento por Menotti de Agenor, Oswald estampava o artigo “O meu poeta futurista” no Jornal do Commercio (27/05/1921). Oswald apresentava ao público aquele que viria ser a figura central do Modernismo: Mário de Andrade, autor de verros futuristas ainda não publicados. Oswald não cita seu nome, mas apresenta os versos e o descreve como “lívido e longo Parsifal bem-educado”. “Ele é autor de um supremo livro neste momento literário. Chamou-o Paulicéia desvairada – cinqüenta páginas talvez da mais rica, mais inédita, da mais bela poesia citadina.” E citava os versos livres com que Mário exaltava São Paulo, sob o pathos do Cristo de Brecheret: “Lady Macbeth feita de névoa fina,/ pura neblina da manhã!/ Mulher que és minha madrasta e minha irmã”.

Paulicéia desvairada levaria ainda uma no e meio para ser publicada. Mas Mário ganhou fama instantânea . Passou a ser apupado nas ruas e perdeu todas as suas alunas de piano. “Nunca me diverti tanto”, recordaria depois. Foi agradecer e reclamar a Oswald na redação. Os intelectuais deslumbrados com a vanguarda européia agora eram identificados publicamente como “futuristas”. No artigo “Futuristas!?”, estampado em 6 de junho de 1921 no jornal de Oswald, Mário se dizia indignado com o rótulo e horrorizado com o desrespeito a Deus, o idioma e as “noções pátrias”.

Os debates se exacerbaram. Os poetas queriam aparecer. Nada melhor que usar o Centenário da Independência para tocar a corneta. O ano de 21 foi “o ano do fermento da Semana”, de acordo com Mário da Silva Brito. Tudo indica que a sugestão de um festival nos moldes franceses apareceu em um dos saraus na mansão do intelectual e aristocrata Paulo Prado, na avenida Higienópolis. Talvez Marinette, mulher de Paulo, tenha dado a idéia ao pintor Di Cavalcanti, estudante de São Francisco. Em suas memórias, Di jurou que a eureka teria partido dele, promover “uma semana de escândalos literários e artísticos, de meter os estribos na barrigada da burguesiazinha paulistana”. Prado, anti-burguês, adorou o projeto.

 

Di mostrou-o a Mário, Menotti
e Oswald, numa das dezenas de
reuniões que aconteceram na
casa deste último, um sobrado
amarelo na Praça da República.

 

 

Oswald garantia que ali havia fermentado a Semana de Arte Moderna. Já no segundo semestre de 1921, Paulo Prado convidou Graça Aranha, veterano autor de Canaã (1902) e A estética da vida (1921) e membro da Academia Brasileira de Letras, para tomar parte do espetáculo. Pardo também se encarregou de comover o governo para ceder o Teatro Municipal. Seu amigo, o empresário René Thiollier, recolheu fundos entre os grandes ricos da época e o Municipal foi finalmente alugado por três noites, ao preço camarada de 847 mil réis. Em agosto, Mário de Andrade publicava a série de artigos “Mestres do passado”, no Jornal do Commercio (edição paulista). No texto, Mário desmontava uma a um os grandes nomes da poesia nacional, de Francisca Júlia a Vicente de Carvalho, sem esquecer o espantalho do momento, Olavo Bilac. Mário descrevia o clima daquele momento como “destruidor”. Irritado com a pecha que ganhou nas ruas, insistiu para que o termo “futurismo” fosse trocado por “modernismo”. Todos aceitaram. Di organizou a comitiva carioca, que tinha como estrela o compositor Heitor Villa-Lobos, que viria com seus músicos. Da capital da República vieram a artista plástica Zina Aita e os escritores Graça Aranha e Ronald de Carvalho. Entre os poetas paulistas destacavam-se Mário, Oswald, Menotti, Agenor, Sérgio Milliet, Guilherme de Almeida. A musicista mais famosa da cidade se encarregaria da terceira noite: a pianista Guiomar Novaes.

Embora se pretendesse lançar o movimento como um verdadeiro “tumulto estético”, ele se revestiu de oficialismo. Recebeu anúncio nos jornais desde o começo de 1922, bem como artigos de Oswald e Menotti, exaltando previamente a iniciativa. Em 8 de fevereiro, Oswald estourava assim o título de sua matéria sobre o festival: “O triunfo da revolução”.

Os ingressos para as três noites custavam de 20 mil (balcões) a 186 mil réis (frisas e camarotes). O preço era exorbitante para os padrões do público médio; pagava-se 2 mil réis para uma cadeira no filme A canalha de Paris em cartas naquela noite de 13 de fevereiro no cine Pathé Palácio, na praça João Mendes. No Municipal, às 20horas e meia, o mundo elegante se apinhava no saguão, surpreendendo-se com as telas de Anita Malfatti, Di, Rego Monteiro, as esculturas de Brecheret. Alguns, tomados de ‘pavor e êxtase”, diz Thiollier em suas memórias, ironizavam as obras. A reação continuou fora dos eventos de performance, já que a exposição permaneceria aberta ao público de dia, até o fim do evento. Mas o primeiro festival não provocou reações violentas. Graça Aranha, com sua autoridade de decano, deu início à Semana com a conferência “A emoção estética na arte moderna”. “O que hoje fixamos não é a renascença de uma arte que não existe”, disse. “É o próprio comovente nascimento da arte no Brasil, e como não temos passado para matar a imaginação, tudo promete uma admirável ‘florada’ artística”. A fala foi muito aplaudida, e a ele segui-se o recital do pianista Ernani Braga. O público apreciou a declamação de Ronald e Guilherme. Lucília Villa-Lobos, ao piano, e Alfredo Gomes, violoncelo, executaram a Sonata II, de Villa-Lobos, que pela primeira vez era tocada em São Paulo. O concerto terminou com o Trio segundo, dom esmo compositor, pelo trio de violino com piano formado por Paulina d’Ambrósio, Alfredo Gomes e Frutuoso Vianna. Na segunda parte, Ronald de Carvalho proferiu a conferência “A pintura e a escultura moderna no Brasil”. Ernani Braga retornou ao palco para executar suas obras. Um grupo de câmara encerrou a noite, tocando mais Braga.

Conforme a coletânea 22 por 22 (Edusp, organização de Maria Eugenia Boaventura), que reúne crônicas e reportagens publicadas pelos jornais paulistas e cariocas na época da Semana, a repercussão na imprensa foi positiva, à exceção de uma nota de Guiomar Novaes que apareceu em O Estado de S.Paulo no dia 14. A pianista, atração da segunda notie, reclamava do tom “exclusivista e intolerante” da primeira, e se dizia triste por causa da exibição pública de “peças satíricas à música de Chopin” – sua especialidade, aliás.

 

A segunda festa foi aberta
por uma palestra de Menotti,
ilustrada pelo recital de prosa
e poesia por Oswald, Mário,
Agenor, Luis Aranha, Sérgio Milliet
e Tácito de Almeida.

 

 

Paulo Prado divertia-se sentado na primeira fila, soprando instruções para o pessoal do palco. O teatro semi-repleto aplaudiu Menotti. Mas as galerias (chamadas até hoje de “galinheiro”) começaram a se manifestar durante as declamações. Vaias, insultos e pateadas prorromperam. Mário, nervoso e sorridente, ouviu uma “tempestade de achincalhes” e tentou conter o público, que riu dele novamente. Ronald de Carvalho declamou “Os sapos”, de Manuel Bandeira, e logo o público fez coro no refrão grotesco “foi não foi”. Relinchos e miados do público fizeram acompanhamento ao número de Milliet. O único aplauso se dirigiu a Agenor Barbosa, talvez porque seus versos ainda exibiam figurinos parnasianos; seja como for, naquela noite a estrela do poeta futurista começou a se apagar até se dissipar por completo. O recital de Guiomar Novaes, com obras de Debussy e Villa-Lobos, foi ouvido em silêncio e ovacionado. Corbelhas de flores foram levadas ao palco em homenagem à virtuose. Em seguida, na escadaria do hall, Mário fez sua conferência, completamente aturdido. “Como pude fazer uma conferência sobre artes plásticas, na escadaria do Teatro, cercado de anônimos que me caçoavam e ofendiam a valer?…”, lembraria vinte anos depois. A segunda parte foi prejudicada pelo Ânimo do público. Ninguém conseguiu ouvir a palestra “Perennis poesia” de Renato Almeida nem o recital de canto e piano e quarteto de cordas com obras de Villa-Lobos.

O terceiro sarau foi dedicado ao compositor e contou com o mesmo elenco de músicos da festas anteriores. Um trio com piano executou o Trio terceiro, a soprano Maria Emma interpretou as Historietas de Ronald de Carvalho acompanhada ao piano por Lucília. Paulina e Fructuoso tocaram a Sonata segunda. Na segunda sessão, Ernani Braga se ocupou de três peças (“Camponesa cantadeira”, “Num berço encantado” e “Dança infernal”). O gran finale foi o Quarteto simbólico (Impressões da vida mundana), para flauta, sax, celesta e piano. No dia seguinte, Ronald de Carvalho estampava em O Estado de S.Paulo o relato sobre o concerto. Elogiou os intérpretes, observando que “as peças excetuadas impressionaram bastante o auditório, embora seja difícil, numa primeira audição, apreciar todas as qualidades do compositor”.

Alguns jornais informaram que as galerias foram interditadas porque uma claque preparava uma saraivada de batatas. Mas a hecatombe não chegou a acontecer. Tudo terminou sem sublevações, como mais um evento passado na “Cidade das Artes”. A contratação de claques (por uma pequena quantia e um ingresso grauito) para consagrar ou derrubar esta ou aquela diva de ópera era prática comum no Municipal. Dizia-se que Oswald havia introduzido uma mudança de hábito, contratando uma claque para variar não o inimigo, mas ele próprio e seus próprios correligionários. Oswald chamou a reação de “consagração da vaia”. Para Mário da Silva Brito, a assuada tinha sido legítima, e comandada por moços como o jurista Getúlio de Paula Santos.

Ao comentar a noite sem tê-la presenciado, o crítico Oscar Guanabarino exultou com os supostos assobios e gaitadas que a “música africana” e sem harmonia de Villa-Lobos recebeu do público. Guanabarino lamentou o episódio e disparou: “Nenhuma obra sensata foi produzida até hoje (pelo modernistas). Em música são ridículos; na poesia são malucos e na pintura são borradores de telas”. E rematou: “É doloroso”.

 

Guanabarino, como boa
fatia da intelectualidade
brasileira, perdeu a batalha.
A partir de então, ou o
indivíduo era moderno ou
estava fora do baile das artes.

 

 

Dois anos depois, Paulo Prado ainda se deliciava com a provocação dos comparsas, parecendo não se importar com o prejuízo de 4 contos e 700 mil réis que o evento causara a ele e a seus amigos (aliás, o prejuízo certamente desencorajou novos festivais modernos, que de fato nunca mais aconteceram): “Esse Ensaio, ingênuo e  ousado, de reação contra o Mau Gosto, a Chapa, o Já Visto, a Velharia, a Caduquice, o Mercantilismo, obteve um resultado imprevisto e retumbante. Assanhou o ócio dos filisteus, introduziu a dúvida nos espíritos de boa-fé, e fez rir às gargalhadas um público triste e conselheiral.” A Semana enterrou reputações, boas e más, e balizou a produção cultural vindoura. Tanto inaugurou um paradigma como coroou o trabalhou de uma geração, que vinha atuando subterraneamente havia pelo menos seis anos. Mais que geração, tratava-se de um grupo restrito que congregou aliados com a facilidade de filhos da aristocracia. E o grupo refugou, por questões pessoais ou estéticas, figuras de importância na constituição da sensibilidade modernista.

Com o tempo, a Semana se transformou em fábula, dividindo os historiadores. Alguns tentam diminuir sua importância, como acontecimento social da elite, e reduzir sua extensão. Outros aproximaram demais a lente da valorização e convertem-na no fulcro de uma verdadeira revolução nas arte, quase sub levando a população de São Paulo. Os fatos se embrulharam e ganharam cores de mito.

Na realidade, o acontecimento marcou uma virada no destino das quatro artes que focalizou e, se não constituiu um evento grandioso nem tão escandaloso assim, ajudou a alterar a mentalidade do público e dos artistas. Dois aspectos colaboraram para que a dimensão exata dos fatos tenha se perdido: a fogueira das vaidades artísticas e a lenta deturpação das informações.

A fama de muitos que tomaram parte da Semana se revelou maior que o evento em si, pela produtividade desencadeada a partir dele: a revista Klaxon (1922), que lançou Sérgio Buarque de Hollanda no ensaísmo, o ensaio Retrato do Brasil, de Paulo Prado, o Manifesto Antropofágico de Oswald, Macunaíma, de Mário, e o Abapuru, de Tarsila (que se juntaria à turma em meados de 1922), todos de 1928, Cobra Norato (1931), de Raul Bopp. Muitos trataram de ampliar retroativamente suas participações, desbancando amigos mortos. Embora de forma sutil, Oswald de Andrade atuou assim após a morte repentina de Mário de Andrade, em 1945; ele se apossou do cetro da liderança do movimento esgotado, ainda que nunca tenha esquecido de citar Mário como elemento central. Mas a atuação post festum de Oswald só colaborou para criar equívocos; ele costumava assumir uma postura ecumênica, dizendo que Ferreira Gullar, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e Clarice Lispector (sua autora favorita) haviam nascido dele, assim como ele havia saído de Paulicéia desvairada. Em segundo lugar, ocorreu a morte lenta de todos os participantes do movimento. Os que tiveram vida mais longa, como Menotti e Rubens Borba de Moraes, se deixaram trair pela memória ou, novamente, pela vaidade ou mesmo pudor, no caso de Tarsila do Amaral.

 

E houve o exemplo trágico
de Anita, cuja obra involuiu
do expressionismo para o
caipirismo.

 

 

Somente nos últimos anos têm vindo à tona documentos que podem esclarecer aspectos misteriosos que rondaram a Semana. É o caso do Projeto IEB/USP, que visa organizar e publicar a correspondência completa do escritor Mário de Andrade. No fim de 2001, saíram dois volumes da correspondência de Mário: com a principal pintora modernista – Mário de Andrade & Tarsila do Amaral (organização de Aracy Amaral) – e com o poeta recifense, radicado no Rio, Manuel Bandeira (organização de Marcos Antonio de Moraes). Estão previstas as edições de mais 16 volumes, formando, segundo previu o crítico Antonio Candido em 1946, um ano após a morte do escritor, um marco epistolográfico incomparável: “A sua correspondência encherá volumes e será porventura o maior monumento do gênero, em língua portuguesa: terá devotos fervorosos e apenas ela permitira uma vista completa da sua obra e do seu espírito”. Se o espírito da Semana de 22 dependeu da atuação de Mário, então sua compreensão também se liga às revelações da oceânica correspondência do escritor.

No que concerne à fatura e à realização, os modernistas do núcleo inicial deixaram monumentos incompletos, quando não frustrados. “Bruta sacudidela nas artes nacionais”, exclamava Mário. Ele dizia que Macunaíma (a mais importante obra do movimento) era “uma obra-prima que não ficou obra-prima”. O paradoxo se aplica a toda a produção modernista. “A Semana de Arte Morderna não representa nenhum triunfo, como também nenhuma derrota”, teorizou Mário na “Crônica de Malazarte” (América Brasileira, Rio, abril de 1924). “Foi uma demonstração que não foi. Realizou-se. Cada um seguiu para seu lado, depois.” O conceito superou a execução.

Ora, a regra vale para a arte contemporânea, que até hoje não saiu da crise. Como inseminadora de idéias e impulsos criativos, porém, a Semana até hoje exerce influência. Disparou a corrida pelos estudos do Brasil e praticamente consolidou o mercado literário, preparando o terreno para o ciclo nordestino e engajado, que tomaria de assalto o Brasil em 1930. Para não mencionar a década de 60, que assistiu ao revival de Oswald de Andrade com a montagem da peça O rei da vela, por José Celso Martinez Corrêa em 1967, e com a eclosão da Tropicália musical e nas artes plásticas, com os parangolés de Oiticica. Villa-Lobos virou inspiração pra o cinema modernista de Glauber Rocha. Voltou à tona o espírito de rebeldia do Modernismo.

De certo modo, vivemos ainda a Era da Máquina anunciada pelo oitocentista Thomas Carlyle. E hoje a São Paulo violenta, autômata e rica se parece mais com as visões que os poetas dos anos 20 criaram para a cidadezinha em que moravam. “O tempo encurtou depois da guerra de 1914”, escreveu Rubens Borba de Moraes. “Está encurtando cada vez mais.”

Se há alguma obra-prima do Modernismo, ela se encontra na nostalgia das velhas rebeldias, que os estudiosos conservam como espécimes extintos. Ou como jóias secretas para coroar teses. Vez por outra elas voltam na feição de estandartes.

Luís Antônio Giron é jornalista e escritor, autor de Ensaios de ponto (Editora 34), Mário Reis: O fino do samba e Minoridade crítica – Folhetinistas diletantes nos jornais da Corte (1826-1861).


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