Hamlet, sem aura e sem coroa

Hamlet, sem aura e sem coroa
Emanuel Aragão em cena do espetáculo "Hamlet: processo de revelação" (Foto: Bob Sousa)

 

“É com a peça que penetrarei o segredo mais íntimo do rei”.
Hamlet, ato II, última cena.

Afirma Harold Bloom em O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo que William Shakespeare (1564-1616) sabia alguma coisa de Michel de Montaigne (1533-1592), embora este nada soubesse daquele. Se uma das fontes de A tempestade (1611), espécie de peça-testamento do bardo inglês, é o ensaio “Os canibais”, um dos mais famosos escritos do filósofo francês, não menos acertada é a hipótese de que Shakespeare em Hamlet (1601) se valeu do mesmo movimento que o herdeiro do Seigneur de Montaigne imprimiu, pela primeira vez na história das humanidades, aos seus Ensaios (cuja publicação original data de 1580): o de um eu que busca o tempo todo a si mesmo. Assim, a declaração de Bloom a respeito de Montaigne pode aplicar-se, por extensão, ao entendimento da tragédia elisabetana mais conhecida do mundo: “Nenhum outro escritor se entreouviu de maneira tão penetrante quanto faz perpetuamente Montaigne; nenhum outro livro é tanto um processo em andamento”. Em ambos os casos, trata-se de dar plasticidade por meio da linguagem à solidão interior – atitude que para muitos estudiosos marca o surgimento da subjetividade moderna.

A começar pelo título – Hamlet: processo de revelação – o mais recente trabalho de direção do coletivo Guimarães, integrado pelos irmãos Adriano e Fernando, com dramaturgia em cena de Emanuel Aragão, da Companhia das Inutilezas, faz com que Montaigne seja uma espécie de integrante honorário da Lord Chamberlain’s Men. Sozinho em cena, o intérprete procura reconstruir a narrativa do príncipe da Dinamarca, dirigindo-se diretamente ao público, com quem conversa sobre os elementos dramatúrgicos da própria peça, sobre alguns dos pontos teóricos que intentam analisá-la e/ou interpretá-la e ainda sobre suas questões pessoais como indivíduo em relação à fábula e à forma estética que a sustenta. A conversa proposta com a plateia, a depender do nível de participação dos espectadores, pode inclusive influir no tempo de duração da experiência. Nada mais experimental, aliás – procedimento que remete à imagem presente no subtítulo do dossiê sobre Montaigne que o professor de filosofia Sérgio Cardoso, da Universidade de São Paulo, organizou para a revista Cult no mês de março corrente: ensaiar a própria vida.

Assim é que da relação de ambivalência que há entre tentativa e execução vive essa aula-performance-espetáculo, disposta mais a delinear a boa quantidade de virtualidades implícitas na obra-prima que é o Hamlet shakespeariano do que propriamente a desempenhar algumas das realidades sobre as quais ela é construída. O processo de revelação a que se alude é então anti-fotográfico: nele se adota um conjunto de operações que convertem uma imagem visível, estável, em uma série de imagens latentes. Hamlet, como o fantasma de seu próprio pai, aparece muito pouco em cena, mas é o espectro dele (ironia das ironias) que paira sobre o palco o tempo todo. O sinuoso jogo que se estabelece entre aparecer e desaparecer é assim o gatilho desse Hamlet, processo de revelação.

Emanuel Aragão em cena do espetáculo “Hamlet: processo de revelação” (Foto: Bob Sousa)

Em entrevista publicada no catálogo da 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), Rabih Mroué declara ser a ausência um tema fundamental em sua obra. “Quando alguém está interpretando Hamlet, o verdadeiro Hamlet está ausente e o ator está tentando substituí-lo”, afirma o diretor libanês, relacionando tal ideia ao fato de 17 mil pessoas terem desaparecido na guerra civil do Líbano e ninguém saber até hoje onde elas estão. “Então, para mim, tudo é ausência”, conclui Mroué, aliando uma questão essencialmente ética à expressão estética no trabalho que desenvolve. Tal característica, a rigor, está na base da arte contemporânea, de cujos signos emanam o tempo todo as marcas da falta e da carência. O ponto de maior interesse exercido pelo trabalho que os irmãos Guimarães desenvolveram em parceria com Emanuel Aragão é a exposição do mecanismo da ausência de Hamlet para nós, espectadores, mecanismo esse de grande complexidade simbólica, já que ao longo de toda a experiência somos impelidos em direção a um personagem cujo poder de atração é proporcional à força de sua ausência em cena.

A frase com que o fantasma do pai de Hamlet aparece e desaparece, quase simultaneamente – “Adeus! Adeus! Recorda-te de mim” – dispara a tragédia, afirma o escritor mexicano Carlos Fuentes, chamando a atenção para o fato de que Hamlet duvida porque recorda, age porque recorda e representa porque recorda: “Hamlet é o homem da memória. Onde todos esqueceram ou quiseram esquecer, ele se encarrega de recordar e de lembrar a todos o dever de ser ou não”. A experiência de Hamlet, processo de revelação guarda muitas analogias com tal situação básica, embora se distinga dela por um aspecto essencial. Emanuel Aragão é o intérprete que mora em um “palácio cheio de recordações dinásticas”, o teatro, arte que convida criadores e espectadores a um exercício dos mais ambíguos em relação ao repertório clássico. A cada nova encenação de Hamlet, por exemplo, o teatro rememora sua própria história, reafirmando sua legitimidade como guardião da memória cultural da humanidade. Entretanto, cada intérprete do príncipe da Dinamarca, à medida que invoca toda a dinastia dos grandes atores que o antecederam, insurge-se, precisamente, contra essa linhagem, desejando com ardor (eis a verdadeira situação trágica de quem se aventura a montar a peça) aniquilar esses espectros um a um e triunfar sobre todos eles. Memória, sucessão e legitimidade são o verdadeiro “punhal desnudo” que tanto o personagem ficcional shakespeariano como seus próprios intérpretes empregam, ao preço do “silêncio da morte”, podemos, então, afirmar em chave de alusão paródica ao que propõe Carlos Fuentes em “O teatro da ficção em Shakespeare e Cervantes”.

Emanuel Aragão em cena do espetáculo “Hamlet: processo de revelação” (Foto: Bob Sousa)

Hamlet, processo de revelação constitui um belo exercício sobre a limitação do teatro e, paradoxalmente, sobre a afirmação de sua potencialidade. Libertando-se dos dogmas que definem tanto quanto cerceiam a fruição de uma obra canônica, o coletivo Irmãos Guimarães e Emanuel Aragão fazem com que o velho Hamlet que Saxo Gramaticus recolheu das canções medievais dinamarquesas e que Shakespeare modernizou aos olhos da Renascença habite nosso próprio mundo contemporâneo, marcado pela atitude cética em relação a qualquer princípio universalizante. Os tijolos espalhados pelo palco talvez digam respeito a esse inacabamento da obra. E o efeito do pó extraído deles quando o intérprete os golpeia insistentemente pode evocar não somente a vulnerabilidade a que nos expõe a morte (quando “as nobres cinzas de Alexandre” podem estar tapando simplesmente “uma pipa”) como também o caráter evanescente do próprio teatro (“E tudo isso por nada! Só por Hécuba!”). É a partir do inacabamento também, isto é, do equilíbrio delicado que se instaura entre performer e personagem que Hamlet, processo de revelação converte a dimensão trágica da obra original na visão propriamente cômica (porque renuncia à gravidade e adere ao circunstancial, à banalidade da vida, enfim) que marca a releitura empreendida, operação para a qual o Montaigne de “Da experiência” soa profético: “Saber lealmente gozar do próprio ser, eis a perfeição absoluta e divina. Nós só desejamos condições diferentes das nossas porque não sabemos tirar partido daquelas em que nos achamos. Saímos de nós mesmos porque ignoramos o que nos compete fazer. Embora usemos pernas de pau, temos de mexer as do corpo para andar, e é com o traseiro que nos sentemos no mais alto trono do mundo”. Despretensão, humildade e modéstia parecem ser, assim, as marcas desse exercício de aprendizagem mútua que se dá entre intérprete e espectador.

Mas como Hamlet constitui também a primeira, talvez, grande mise en scène da hesitação e da incerteza no mundo da literatura e do teatro, a crítica não poderia se furtar a lançar, à guisa de conclusão, as dúvidas que seguem. Passar ou não passar do estágio do “espírito moderno” – que cunhou Hamlet como um espelho em que os homens, gregariamente, se refletem – ao nível do “extremo contemporâneo” (a expressão é do romancista e ensaísta francês Jean-Philippe Domecq) – cujo risco é adelgaçar uma matéria tão espessa por meio do exercício de exacerbação da singularidade tão comum nos dias de hoje? A um Hamlet sem coroa somente é possível corresponder neste início de século um Hamlet sem aura? Perguntas que se desdobram nesta outra: o que de fato significa criticar a arte contemporânea (evocando uma vez mais Domecq), pelo critério do contemporâneo? Eis as questões.

Hamlet: processo de revelação
Quando: até 26 de março; sex. e sáb. às 21h; dom. às 18h
Quanto: entre R$ 30,00 e R$ 9,00
Onde: Sesc Ipiranga – Rua Bom Pastor, 822

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