Habermas e a educação

Habermas e a educação
O filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas (Foto Európai Bizottság/Dudás Szabolcs)

 

No início de sua obra principal, Teoria do agir comunicativo, Habermas afirma que “o pensamento filosófico se originou na reflexão sobre a razão encarnada na cognição, fala e ação; e a razão permanece sendo seu tema básico”. Não seria uma surpresa, então, descobrir que o conceito de racionalidade é o fio condutor para sua análise de processos de aprendizagem.

Outra característica marcante do pensamento de Habermas é sua defesa do “projeto da modernidade” diante das críticas feitas pelos pensadores pós-modernos. Por mais que a modernidade tenha trazido problemas para a humanidade, Habermas tenta analisar, no que ele chama (seguindo Weber) “o processo da racionalização da sociedade moderna”, um potencial para a emancipação humana. Enfatiza a necessidade de completar esse projeto sem abrir mão do que já se conseguiu, não somente em termos de conhecimento, mas também de liberdade subjetiva, da autonomia ética e da autorrealização, do direito igual de participação na formação de uma vontade política e do “processo formativo que se realiza através da apropriação de uma cultura que se tornou reflexiva”. É esse processo, compreendido como processos de aprendizagem desencadeados ao longo da História, mas especificamente na modernidade, que poderia ser considerado um dos fios condutores do pensamento desse filósofo e teórico social.

Por isso, a educação, no seu sentido mais amplo de processos de formação, é um tema central no pensamento habermasiano. Habermas busca compreender o processo de evolução social como um duplo processo da diferenciação e complexificação dos subsistemas econômico e administrativo e, ao mesmo tempo, potencialmente, também como uma expansão de processos de reflexão e aprendizagem e, portanto, de criação de uma cultura com um potencial para resolver problemas através de processos de aprendizagem.

No entanto, essa análise não está conduzida a partir de uma avaliação das instituições e práticas educacionais. Aliás, o pensamento de Habermas não pode ser utilizado para analisar a prática pedagógica na escola e somente indiretamente para analisar a estrutura da educação e as políticas públicas para a educação. Teorias de psicologia do desenvolvimento são tangenciadas, de forma breve, nas discussões das ideias de Piaget e Kohlberg, da “ontogênese da competência cognitiva” [ou seja, do processo de formação do conhecimento] e da consciência moral na criança, mas os únicos textos dele sobre instituições de ensino são análises das funções da universidade nas sociedades contemporâneas, onde poderia ser pressuposto que os sujeitos participantes dessas instituições já têm a competência comunicativa necessária para desenvolver processos de aprendizagem. Portanto, no pensamento de Habermas, a educação deveria ser compreendida no sentido mais abrangente possível, abrigando processos de formação social, cultural e científico, em todos os espaços onde acontecem. Em outras palavras, educação deveria ser entendida como Bildung [formação], um conceito central à educação moderna.

Identidade pós-convencional

O mecanismo central de aprendizagem é a forma reflexiva da ação comunicativa, ou seja, a racionalidade discursiva. É pelo exercício da racionalidade que será possível construir conhecimento confiável e normas morais universais. Aprendizagem também acontece no nível ético, ou seja, na deliberação sobre uma forma de vida específica e sua concepção de uma vida boa e seus padrões estéticos, bem como no nível pessoal, no sentido de uma reflexão sobre o projeto da vida do indivíduo. Processos de aprendizagem, nesse sentido, são concebidos como soluções de problemas nesses níveis da vida humana, portanto contribuindo para a racionalização do mundo da vida e, portanto, a autonomia individual e a emancipação social. Essa atitude reflexiva exige que a pessoa tome distância de si mesma e, nessa atitude, “reflete-se, de modo geral, a racionalidade inerente à estrutura e ao procedimento da argumentação”. Por isso, a racionalidade discursiva – “que se origina na racionalidade comunicativa” – é privilegiado na teoria habermasiana. É na análise da linguagem, especificamente na sua teoria da pragmática formal, que Habermas localiza a competência comunicativa necessária para a aprendizagem. Ou seja,  processos de aprendizagem dependem das “estruturas gerais da comunicação linguística”, que são universais e, sobretudo, são a condição da possibilidade de uma reflexão crítica e da construção do conhecimento.

Além disso, alcançar entendimento mútuo no agir comunicativo é, para Habermas, um mecanismo que socializa e, ao mesmo tempo, individua o sujeito. Essa ideia é a chave para explicar a formação da identidade do indivíduo. Esse processo é simultaneamente ontogenético [relacionado à formação do indivíduo] e filogenético [relacionado à formação dos homens ao longo da história]. Ou seja, a interação entre indivíduos constroi as estruturas intersubjetivas de uma sociedade, enquanto os recursos dessas estruturas são mobilizados no agir comunicativo para formar o indivíduo. Além disso, sociedades complexas, bem como indivíduos descentrados – a despeito das tendências atuais da fragmentação de ambos – podem, contra as formulações pós-modernas, formar uma identidade racional e autônoma.

Como vimos Habermas dá muita ênfase à argumentação como o mecanismo principal de aprendizagem, no entanto, o sujeito que participa em processos argumentativos tem que ser um sujeito autônomo e racional, ou seja, um Eu reflexivo. Aqui encontramos outro conceito importante no pensamento de Habermas: a identidade pós-convencional. Se a possibilidade de emancipação depende, para Habermas, da racionalização do mundo da vida que, por sua vez, depende do fortalecimento da ação comunicativa, especificamente de sua “forma reflexiva” – o que Habermas chama de Discurso –, a formação de um ego autônomo – compreendido como “um Ego não coagido que seja idêntico a ele mesmo” – que está organizado simbolicamente – tem que ser explicado como algo “gerado comunicativamente”.

Processos de ação comunicativa têm como uma de suas funções a construção recíproca da sociedade, da cultura e da personalidade (componentes estruturais do mundo da vida) pelas interações mediadas pela linguagem. O importante aqui é que esse espaço é pré-estruturado simbolicamente e linguisticamente constituído pela interação entre agentes capazes de falar e agir, interagindo um com o outro. É importante salientar que a sociedade e o indivíduo se constituem reciprocamente através do agir comunicativo. “A reprodução do mundo da vida é alimentada através das contribuições do agir comunicativo, enquanto a última é alimentada, simultaneamente, através dos recursos do mundo da vida”.

Tradições culturais, sociedade e o indivíduo

Em suma, há uma interação entre participantes no agir comunicativo, que é o mecanismo central não somente na socialização do indivíduo, mas também na (re)produção de tradições culturais e normas sociais. Tradições culturais, sociedade e o indivíduo são constituídos reciprocamente. Uma tradição cultural está mantida através da apropriação e desenvolvimento do conhecimento cultural por pessoas.

Assim, as pessoas (re)produzem a cultura. Mas, também, a cultura representa um recurso para as pessoas, porque “cada tradição cultural é um processo educativo (Bildung) para sujeitos capazes de fala e ação que são formadas dentro dela, na mesma maneira que pessoas, por sua vez, mantêm a cultura viva”. O mesmo processo recíproco acontece entre pessoas e a sociedade, concebida como ordens sociais normativas. Ou seja, tais ordens são sempre ordens de relações interpessoais, constituídas através dos mecanismos da coordenação de agentes, principalmente o agir comunicativo. Mais uma vez, a sociedade e o indivíduo constituem-se um ao outro reciprocamente. Cada processo de integração de contextos de ação é simultaneamente um processo de socialização de sujeitos, que são formados nesse processo e que, por sua parte e na mesma medida, renovam e estabelecem a sociedade como a totalidade de relações interpessoais ordenadas legitimamente.

No modelo de ação comunicativa, alcançar entendimento mútuo através da linguagem é também considerado um mecanismo para coordenar ação entre indivíduos e, portanto, para a integração social. O mecanismo de coordenação de ação é um processo discursivo de alcançar um entendimento mútuo. É através dessa forma reflexiva do agir comunicativo que se dá a racionalização da sociedade.

Aprendizagem, nessa teoria, é concebida como a resolução de problemas e conflitos, bem como a articulação de um projeto de vida pessoal. Conhecimento sobre o mundo empírico, por exemplo, por mais que não precise do uso comunicativo da linguagem para ser formulado em proposições, precisa da racionalidade discursiva para ser justificado. Quando um ator enfrenta uma realidade recalcitrante, suas crenças tidas-por-verdadeiras são sujeitas a um processo de justificação, que envolve o ator e pelo menos mais uma pessoa, no qual são ou resgatadas ou rejeitadas e, portanto, substituídas por outras.

Além disso, agimos no mundo social a partir de um conjunto de normas sociais consideradas legítimas. Aqui, nossa ação falha quando não está aceita por outro. Nesse caso, precisamos alinhar as normas que subjaza nossa ação às prescritas normativamente para todo mundo numa comunidade. Ou, num nível mais profundo, podemos problematizar as normas sociais, elas mesmas, para avaliar se expressam os interesses generalizáveis dos membros da comunidade e merecem aceitação, ou seja, se o contexto normativo pode ser justificado e, portanto, considerado legítimo. Por final, há a possibilidade de um descompasso entre a forma de expressar nossa subjetividade e as verdadeiras experiências que temos, bem como entre nossos desejos e sentimentos e nossas ações. Aprendizagem, nesse caso, se dá pelo ajuste de nossos desejos e sentimentos aos padrões de valor da nossa cultura; pelo ajuste entre as maneiras de expressar esses aspectos de nossa natureza interior e as experiências internas que temos, de fato; e pelo ajuste de nossas ações com os desejos e sentimentos que expressamos.

Talvez o maior desafio do pensamento habermasiano para a educação, hoje em dia, seja o de compreender o processo educativo como a formação simultânea do indivíduo como um indivíduo insubstituível, com sua identidade pessoal e projeto da vida, também como um membro de um grupo social e cultural qualquer, com sua identidade cultural, étnica, racial etc., bem como cidadão, ou seja, um membro de uma comunidade política maior, que abrange os grupos sociais diferenciados. Tal formação concentra no desenvolvimento da competência comunicativa, necessária para o agir comunicativo, o mecanismo responsável tanto para a reprodução de tradições culturais, formas de conhecimento e normas morais, bem como sua transformação.


RALPH INGS BANNEL é autor do livro Habermas e a educação (2006)

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