Um pensador da razão pública

Um pensador da razão pública
O filósofo alemão Jürgen Habermas na Munich School of Philosophy (Foto: Wolfram Huke)

 

Habermas é um dos mais importantes e influentes pensadores da atualidade, tendo se notabilizado pela destreza em transitar por diversas áreas do conhecimento sem perder a visão de conjunto própria do saber filosófico. Trata-se de um teórico interdisciplinar, cujos trabalhos transcendem as rígidas fronteiras entre as disciplinas acadêmicas, e de um escritor prolífico, com mais de quarenta obras publicadas ao longo dos últimos cinquenta anos, além de um intelectual público que discute as principais controvérsias políticas, morais, científicas e culturais de nosso tempo, contribuindo inclusive com intervenções em revistas e jornais de prestígio, como a Der Spiegel e o Die Zeit de sua Alemanha natal.

Ele mesmo considera a ‘esfera pública’, entendida como espaço do trato comunicativo e racional entre as pessoas, o tema que o persegue a vida toda. Sua existência foi marcada, na infância, pela experiência traumática de intervenções cirúrgicas numa fissura labiopalatal; na adolescência, pelo nazismo e a Segunda Guerra Mundial – apesar da “sorte de ter nascido mais tarde”, já que, aos dezesseis anos, testemunhou a derrocada do regime nazista sem ter participado das atrocidades reveladas após 1945 nos processos contra criminosos de guerra –, e no decorrer de sua vida adulta pelas inquietações ligadas aos destinos da sociedade alemã do pós-guerra, tanto na abertura cultural para o Ocidente quanto na reeducação política sob impulso democrático. Habermas é um filósofo rigoroso e suas análises meticulosas requerem do leitor não apenas paciência conceitual, mas também vasto conhecimento da história das ideias.

Formação

Habermas fez seus estudos universitários em Zurich, Göttingen e Bonn. Do ponto de vista acadêmico, formou-se no contexto provinciano da filosofia alemã da época, sob a forma de um neokantismo declinante, da fenomenologia e também da antropologia filosófica, defendendo em 1954 uma tese de doutorado sobre Schelling. Dois anos depois, com apenas 27 anos, tornou-se assistente de Theodor W. Adorno na Universidade de Frankfurt, onde trabalhou até o final da década.

Neste período, demonstrou vários interesses, seja por pesquisas empíricas sobre comunicação de massa e sociologia política, seja por estudos acerca do marxismo, da Escola de Frankfurt e dos clássicos das ciências sociais. Os dois primeiros livros de Habermas – Mudança estrutural da esfera pública (1962) e Teoria e prática (1963) – cristalizam o que considera uma tentativa de prosseguir o marxismo hegeliano e weberiano dos anos 1920 com outros meios, tentativa que lhe rendeu abertura para horizontes de experiência diferentes e decididamente mais largos, ou seja, livres do provincianismo e do idealismo. O primeiro livro é resultado de uma tese de livre-docência em Sociologia defendida na Universidade de Marburgo.

De 1961 a 1964, Habermas trabalhou como professor de Filosofia em Heidelberg, regressando então a Frankfurt para ocupar a cadeira de Filosofia e Sociologia pertencente a Max Horkheimer. Naqueles anos 1960, as intervenções acadêmicas e políticas se multiplicaram. Ao lado de uma efetiva participação no nascente e acalorado movimento estudantil, Habermas reencontrou seu caminho filosófico pelas vias da hermenêutica, do pragmatismo e da filosofia da linguagem, o que demonstra sua dívida com a obra de Hans-Georg Gadamer e as sugestões de seu amigo Karl-Otto Apel.

Por outro lado, Habermas engajou-se na querela sobre o positivismo e concentrou boa parte de seus esforços teóricos em questões de ordem epistemológica, visando fornecer bases metodológicas mais sólidas para uma teoria crítica da sociedade. As obras de referência do período são as conhecidas Técnica e ciência como ‘ideologia’ e Conhecimento e interesse, ambas de 1968, bem como a menos comentada, mas não menos importante, Sobre a lógica das ciências sociais, de 1970. A distância de cerca de 15 anos permitirá a Habermas afirmar que desde o princípio seus interesses teóricos estiveram fundamentalmente determinados pelos problemas filosóficos e socioteóricos emergentes do movimento de pensamento que vai de Kant a Marx, contribuindo sobretudo para o projeto de renovação da teoria da sociedade fundada na tradição do marxismo ocidental.

“Giro linguístico”

Na década de 1970, que representou uma etapa de elaboração e sistematização de seu contributo teórico, culminando com a publicação de sua obra mais reputada – a volumosa Teoria do agir comunicativo (1981) –, Habermas trabalhou como diretor do Instituto Max Planck, em Starnberg, perto de Munique. Nessa obra fica patente o ‘giro linguístico’ produzido pelo autor na teoria crítica da sociedade, fruto da capacidade em adicionar e integrar novas perspectivas ao seu projeto teórico originário. Com efeito, os escritos dos anos 70, posteriormente reunidos em Estudos preliminares e complementos à teoria do agir comunicativo (1984), correspondem à montagem da teoria habermasiana da comunicação, da qual obras como A crise de legitimação no capitalismo tardio (1973) e Para a reconstrução do materialismo histórico (1976) fazem uso concreto de certos elementos.

A intuição central de que na comunicação linguística está implícita a busca pelo entendimento recíproco, ideia que conduziu Habermas aos princípios filosóficos que destacam a constituição intersubjetiva do espírito humano, é tratada à luz das teorias: (a) do agir comunicativo, tecendo um conceito constitutivo de ação social orientada à intercompreensão; (b) da racionalidade, elaborando uma noção mais englobante de razão com a consequente superação da perspectiva monológica da filosofia do sujeito; (c) da sociedade, desenvolvendo um conceito de sociedade que integra a teoria dos sistemas com a teoria da ação, de modo a distinguir e a conjugar as esferas do sistema e do mundo da vida; (d) da modernidade, propondo uma releitura da dialética da racionalização, pela qual se possa discernir seus fenômenos patológicos a fim de contribuir para um redirecionamento, ao invés do mero abandono, do projeto da modernidade. E tudo isto com base na tese fundamental segundo a qual nós nos encontramos preliminarmente no elemento da linguagem, que existe, antes e acima de tudo, para a comunicação entre as pessoas sobre algo no mundo, e em cujo processo cada um pode tomar posição pelo ‘sim’ ou pelo ‘não’ perante as pretensões de validade de um outro.

Escritor prolífico

Excluídos alguns cursos em universidades fora da Alemanha, Habermas manteve-se cerca de uma década afastado do meio acadêmico, integralmente dedicado às pesquisas, e retomando, a partir de inícios dos anos 1980, o magistério na Universidade de Frankfurt, de onde retirou-se em 1993, embora siga atuando como professor visitante em universidades americanas, tais como a Northwestern, em Chicago, e a New School, em Nova York. Tendo atingido a sua maturidade intelectual, Habermas passou a ampliar consideravelmente os campos de aplicação da teoria do agir comunicativo, quer na fundação da chamada Ética do Discurso – Consciência moral e agir comunicativo (1983) e Comentários à ética do discurso (1991) –, na explicitação das premissas filosóficas da modernidade (O discurso filosófico da modernidade: 1985), na compreensão do novo papel desempenhado pelo saber filosófico no contexto da guinada linguística – Pensamento pós-metafísico (1988) –, na elaboração da teoria discursiva do direito e da democracia – Direito e democracia (1992) – e do conteúdo universalista dos princípios republicanos – A inclusão do outro (1996) –, quer ainda nas intervenções sobre temáticas atuais, quase sempre reunidas sob a forma de escritos políticos sucessivos, que somam a impressionante marca de 11 volumes até o ano de 2008.

Habermas também tratou da relação entre teoria e prática a partir da questão ontológica do naturalismo e da questão epistemológica do realismo, ambas fundamentais no âmbito da filosofia teórica (Verdade e justificação: 1999), reatando com problemas deixados em segundo plano nas décadas de 1980 e 90, nas quais claramente predominaram os temas de filosofia prática. Recentemente envolveu-se na área da bioética, particularmente na discussão desencadeada pelas técnicas genéticas – O futuro da natureza humana (2001) –, e, para surpresa de muitos, interessa-se progressivamente pela questão da religião, seja em virtude do desafio cognitivo representado pela persistência desse fenômeno num ambiente secularizado – Fé e saber (2002) –, seja pelo significado e o papel da religião na esfera política pública – Entre naturalismo e religião (2005).

O mote habermasiano de que as questões práticas são passíveis de argumentação racional constitui — em minha opinião — o principal atrativo de seu pensamento. Numa época marcada por tendências favoráveis ao relativismo e ao perspectivismo, com a resultante celebração acrítica de tudo que é (ou parece) diferente, é notável o empenho do pensador alemão em esgaravatar, como ele diz, um pouco aqui, um pouco acolá, à procura dos vestígios de uma razão que reconduza, sem apagar as distâncias, que una, sem reduzir o que é distinto ao mesmo denominador, que entre estranhos torne reconhecível o que é comum, mas deixe ao outro a sua alteridade.

Esse traço de uma razão comunicativa cética, porém não derrotista, é encontrado nas diversas facetas do pensamento de Habermas, notadamente nas contribuições nos campos da moral, do direito e da política. Um ponto que ilustra sobremaneira tal perspectiva é a ideia discursiva segundo a qual o reconhecimento dos indivíduos como pessoas responsáveis consiste em tomá-las seriamente como agentes que podem e devem ter voz na validação de normas e leis às quais eles próprios estão sujeitos. Daí o princípio do discurso inerente ao uso da linguagem, cuja formulação é a seguinte: “São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”.

A introdução do princípio discursivo permite a Habermas defender a relação interna entre autonomia privada e autonomia pública, proporcionando uma justificação do Estado democrático de direito na qual os direitos humanos e a soberania popular desempenham papéis distintos, irredutíveis, porém complementares. E sua formulação torna evidente que a pedra de toque de toda justificação normativa reside num acordo fundado em razões publicamente acessíveis, de tal modo que os princípios políticos respeitosos da diversidade das opiniões filosóficas, morais e religiosas entre as pessoas devem ser sustentados mediante o critério da aceitabilidade racional. Habermas adota, pois, uma concepção procedimental de ‘justiça’, segundo a qual a validade das normas é estabelecida num procedimento argumentativo representativo da racionalidade prática dos próprios concernidos, e um modelo deliberativo de ‘democracia’, que se refere à ideia de que a normatização legítima procede da deliberação pública dos cidadãos. É como pensador da razão pública, original e fecundo, que Habermas ocupa posição de destaque na alvorada do século.


LUIZ BERNARDO LEITE ARAUJO é doutor em filosofia pela Université Catholique de Louvain. Atua na área de filosofia, com ênfase em Ética e Filosofia Política. É autor de Religião e modernidade em Habermas (1996)

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