Há homossexuais
Joy Hester, Love Series, 1949 (Foto: Reprodução)
Vladimir Safatle, alguém a quem certamente admiro, usou recentemente sua coluna nesta revista para nos dizer, de forma peremptória, que não há heterossexuais.
Gostaria inicialmente de lembrar aos leitores e ao meu querido Vladimir que os problemas com esta afirmação começam no fato de que podem não existir heterossexuais, mas, curiosamente há, sim, homossexuais. Situação que intrigou bastante o velho Freud.
Depois disso, preciso reconhecer certa dificuldade em responder a seus argumentos, dado que concordo com muitos deles.
O problema é que não se trata apenas de argumentos, e muito menos da afirmação d’A Verdade, que uma vez aceita nos curará de todas as nossas feridas. Não estamos em um debate ascético de ideias. Estamos em um campo onde as palavras são encarnadas, têm corpo, e alguns destes corpos são discriminados ou, ao contrário, gozam de privilégios.
Pode ser que heterossexuais não existam, nem brancos. Mas certamente homossexuais existem, como negros e mulheres. Existem e são discriminados desde cedo na escola, no trabalho e nas sociedades de formação em psicanálise, e não me refiro apenas à tradicional e sabidamente conservadora Associação Psicanalítica Internacional.
Por isso me pergunto se o raciocínio de Vladimir em seu artigo não é muito próximo daquele que já fez tantos psicanalistas afirmarem, repetidas vezes, que não há brancos nem pretos, mas sim sujeitos. Talvez tenham razão, não exista mesmo relação sexual e sejamos todos sujeitos, de modo que a cor da nossa pele não importa muito. Mas em que espaço isso acontece? Certamente não nas calçadas das ruas ou nas filas de emprego e talvez nem mesmo na maioria dos consultórios de psicanálise.
Penso aqui em outro amigo querido que, como bom lacaniano, não se cansa de repetir que a relação sexual não existe, mas que por alguma razão é incapaz de enunciar outras verdades, que para mim talvez sejam circunstancialmente mais importantes. Por exemplo, ele nunca se refere a meu namorado (ou marido, já que oficializamos uma união estável) ou mesmo a meu companheiro. É sempre: como vai seu amigo?
Em outro artigo, também recente, Vladimir admitiu que finalmente se convencera de que a filosofia é branca e eurocêntrica. Para muitos, se trata de um reconhecimento excessivamente tardio e que se fez sem a necessária referência a toda uma vasta literatura – artística e reflexiva – que tenta nos dizer isso há pelos menos cinquenta anos, na qual se inclui, por exemplo, Frantz Fanon, só recentemente descoberto pelos psicanalistas brasileiros. Para mim, aquele artigo foi, de qualquer modo, um gesto político e intelectual importante.
Por isso, gostaria que, num segundo movimento, o filósofo pudesse entender que, à despeito do seu desejo e das pulsões que o ligam a objetos contingentes, no mundo em que vivemos, Vladimir é sim heterossexual e mais uma prova viva de que eles existem. O que, aliás, é testemunhado por muitos, já que os supostamente não existentes heterossexuais podem sair nas ruas de mãos dadas com seus objetos parciais, sem o risco de sofrer algum tipo de violência. Eu não.
E não se trata, melhor ressaltar, de uma questão política, que possa ser pensada em separado dos processos de construção subjetiva, pois a deslegitimação das experiências homoeróticas, que marca nossa socialização, claramente incide sobre os processos de subjetivação e os modos possíveis de existir e de se relacionar consigo com o outro. Por isso, um autor como Didier Eribon é levado a afirmar que o mundo homossexual é constituído pela injúria.
Evidente que, como qualquer identidade, a homo e a heterossexualidade nos aprisionam e limitam nossas possibilidades de existência. Evidente que é necessário e urgente, nos liberarmos desse modelo binário como, aliás, de qualquer identidade, mas a emancipação não se fará pela afirmação de uma verdade última que se imporá como revelação aos ignorantes. Nos tempos de hoje, aliás, não fica bem acreditar que “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.”
Assim, parece-me que seu
argumento, embora possa
ser tomado como verdadeiro,
é insuficiente, pois lhe falta
dizer que os heterossexuais
não existem e, no entanto,
eles existem.
Ocupam posições de poder, figuram a norma e em sua grande maioria, ainda hoje, em boa medida, discriminam aqueles com os quais não podem se identificar, os ditos homossexuais. Este é o X da questão. É preciso enfrentar esse duplo estatuto, em lugar de negá-lo, afirmando uma verdade maior, situando-a como, esta sim, a vivência concreta do sexual.
Por outro lado, Vladimir parece esquecer que quando falamos de homo ou heterossexuais não é exatamente de práticas sexuais que estamos tratando, do contrário ainda falaríamos de sodomia e coisas tais. Assim, não dá para reconhecer a força da heteronormatividade e ao mesmo tempo supor que heterossexuais não existem. Essas duas existências se determinam e se produzem mutuamente e um dos seus efeitos está no fato de que se desejamos “objetos que circulam ou se fixam entre os corpos, em corpos”, esses corpos são situados hierarquicamente em relação à heteronorma, e assim acabam por definir limites para os sujeitos que os habitam.
Mais ainda, para afirmar que heterossexuais não existem, nem tampouco a relação sexual, talvez seja necessário colocar também em questão o binarismo de gênero, o que não poderia ser feito sem interrogar minimamente a diferença sexual e seu estatuto de invariante antropológico, até porque no Édipo, tal como lido em Lacan – ao menos em grande parte da sua obra e segundo muitos dos seus comentadores –, elementos como sexuação, identidade de gênero e escolha de objeto se entrelaçam em um modelo de constituição subjetiva que arrisca se referir a um ideal e supor um desenvolvimento necessário, naquilo que Judith Butler denomina produção de gêneros inteligíveis.
Estamos dispostos a tanto? Nossa crítica da heterossexualidade pode nos conduzir à interrogação do Édipo, do diagnóstico estrutural e de uma antropogênese que vincula diferença sexual e entrada na ordem simbólica?
Em sua conclusão, o artigo enuncia um desejo de emancipação, mas creio que as estratégias para tal emancipação não podem ser generosamente decididas pelos heterossexuais (sobretudo se eles sequer existirem), afinal toda a desordem no gênero que registramos nos últimos anos foi obra de pessoas engajadas em práticas sexuais e performances de gênero dissidentes. O que nos leva a pensar que se há algo na norma cisgênera-heterossexual-patriarco-colonial que oprime aqueles identificados como heterossexuais (e homens, brancos, europeus etc.), estes ou não o percebiam ou estavam relativamente bem acomodados, pois a violência da norma parece que só passou a perturbá-los depois que “as gay, as bi, as trava, e as sapatão”, junto com as feministas, começaram a tramar sua revolta e a interrogar a psicanálise e seus enunciados cabais.
Eduardo Leal Cunha é psicanalista, doutor em Saúde Coletiva (IMS), professor do Departamento de Psicologia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe e Pesquisador Associado do Departamento de Estudos Psicanalíticos da Universidade de Paris.