Cancelamento: o punitivismo moral midiatizado

Cancelamento: o punitivismo moral midiatizado

 

Em Vigiar e punir (1976), Michel Foucault mostrou que novas práticas punitivas surgiram na passagem do Estado absolutista para o burguês. O suplício físico ou castigo exemplar que era aplicado na praça pública deu espaço a formas não menos violentas, mas mais eficientes de punição. A passagem da violência física para a moral levou a punir mais a alma do que o corpo. Todos começaram a se sentir sob vigilância contínua e o risco de se tornar o próximo alvo aderindo a um comportamento disciplinado. Vigiar, punir e disciplinar seriam etapas de um processo histórico de normalização que havia se generalizado e formado a sociedade contemporânea.

O filósofo francês teve como objeto de análise o sistema jurídico e penal nascente na então nova ordem burguesa europeia e, portanto, não deu atenção a dois aspectos que, a partir da realidade brasileira, também precisamos considerar. Aqui os castigos corporais se estenderam até o século 20 devido à escravidão. Basta lembrar do pelourinho nos centros das cidades assim como da Revolta da Chibata (1910), que denunciou os castigos aplicados aos marinheiros, em sua maioria negros, muito tempo depois da Abolição. Além disso, entre nós o aparato jurídico-penal contemporâneo nunca alcançou hegemonia similar à dos países centrais como provam as frequentes denúncias de torturas.

No Brasil, as punições sobreviveram às lógicas republicanas de todos iguais perante a lei em fenômenos como linchamentos, o apoio popular à violência policial e até às milícias. Em outros termos, entre nós, há feições locais e até mais apoio do que em outros países a práticas punitivas e violentas como o bullying, o assédio moral, o escracho e o cancelamento.

O bullying costuma designar a violência dirigida contra alguém mais fraco em um ambiente como o escolar ou outro em que há crianças e adolescentes. O assédio moral pode incorporar o bullying ou designar casos similares em contextos adultos. De forma geral, ambos são práticas violentas de perseguição, tentativa de controlar ou submeter colegas ou subordinados a hierarquias em locais como a escola ou o trabalho. Ainda que não se saiba de grupos que abertamente defendam tais práticas, é comum que aqueles que as adotam não as reconheçam como violências e sim como meios para convencer alguém a aceitar a ordem. Práticas punitivas, assim, são naturalizadas como “educativas”.

O escracho e o cancelamento costumam designar outro tipo de violência, direcionada a alguém identificado como mais forte. O escracho costumava se dar em ambientes offline enquanto o cancelamento refere-se mais ao on-line e, ainda que sem faixa etária definida, tendem a designar práticas em contextos adultos em que se busca perseguir, neutralizar e destruir reputações de quem foi convertido em suposto inimigo. Muitos defendem essas práticas como meios de “ensinar uma lição a alguém”, desqualificar uma pessoa expondo-a ao escrutínio público e ao vexame.

Em comum, algozes que fazem uso de bullying, assédio moral, escrachos e cancelamentos negam que eles sejam violências e fazem uso deles como formas de justiça(mento). Há certo pudor de defender bullying e assédio, pudor que não existe no caso de escrachos e cancelamentos. Por quê? Porque a despeito de serem todas práticas violentas, o bullying e o assédio tendem a reforçar hierarquias que premiam os mais fortes, e o escracho e o cancelamento, ao menos em tese, se voltariam contra elas em favor dos fracos e oprimidos. Todas essas práticas contam com o apoio ou consentimento daqueles para quem a punição se justificaria por um interesse comum.

Chegamos a um ponto importante, as punições em tela são violências supostamente justificáveis por impedir que valores comuns sejam questionados. O pensamento crítico, a divergência e a dissidência são tomadas como alvos indiscutíveis de punição e expurgo. Daí as formas astuciosas como a extrema-direita desconstrói alguns de seus membros ou a esquerda identitária purifica-se dos que expõem suas incongruências. O pensamento único e a coesão que a violência garante são o bem mais valioso nos extremos ideológicos.

Enquanto o bullying e o assedio costumam ser associados a uma relação individualizada entre algoz e vítima, o escracho e o cancelamento seriam práticas coletivas? Um olhar acurado permite reconhecer que, a despeito de operarem coletivamente, costumam ter líderes que organizam uma cruzada moral contra alguém que declaram ser uma ameaça ao grupo ou uma causa convertendo até um colega em inimigo. Acusar, condenar e, se possível, expulsar alguém é uma forma do algoz se engrandecer moralmente em seu meio. Organizar um escracho ou cancelamento garante visibilidade e angaria apoio, podendo até alçar um medíocre a líder de seu segmento.

Há uma economia moral que dá sustentação a essas práticas violentas e punitivas. A extrema-direita apresenta-se como a defensora da moral e, historicamente, sempre se aliou a vertentes religiosas ultraconservadoras. A esquerda identitária tem raízes no socialismo cristão, o que contribui para que veja a si mesma como detentora de superioridade moral nas disputas políticas. Entre a extrema-direita e a esquerda identitária há todo um espectro de posições políticas que tendem a ser ignoradas e até perseguidas porque seu reconhecimento implicaria a recusa da polarização e seus binarismos morais que se assentam na oposição do bem contra o mal.

A moralização da política e o sequestro da opinião pública

 

Se o poder disciplinar e as práticas de controle têm sua versão tropical, esta também se atualiza e não pode ser abordada sem fazer referência a ciclos políticos e mudanças tecnológicas. Na década de 2010, o Brasil entrou em um período moldado pela moralização da política indissociável do aprofundamento de sua midiatização. A emergência da esfera pública tecnomidiatizada, em que a agenda coletiva passou a ser pautada pelas redes sociais, fez com que lógicas morais ganhassem relevância.

Os protestos de junho de 2013 e a operação Lava Jato modificaram nossa gramática política favorecendo grupos políticos extremistas. As tretas de Internet e a lacração são parte desse contexto em que disputas políticas passaram a se dar predominantemente em termos midiáticos. On-line criaram-se condições privilegiadas para práticas off-line prévias como o bullying, o assédio moral e o escracho, por meio de ferramentas tecnológicas de vigilância e a exposição pública de adversários.

As redes sociais revelaram-se meios mais eficientes de vigilância, controle e punição porque não têm curadoria tampouco regulação legal como as mídias tradicionais. On-line, lideranças inescrupulosas passaram a organizar milícias digitais que as apoiam sem necessariamente se beneficiarem dos crimes dos quais são cúmplices. Engajadas em causas que supõem inquestionáveis, fazem o serviço sujo para empreendedores morais cujos interesses podem desconhecer. Assim, práticas de desqualificação pública foram turbinadas pelas redes sociais, pautando a grande mídia e sequestrando a opinião pública.

O sequestro se deu quando a disputa da opinião pública a partir de argumentos divergentes passou a se dar em lógicas binárias contra as quais tornou-se proibido se manifestar. Paira sobre a divergência a ameaça constante do cancelamento, de ataques orquestrados contra quem ousar divergir ou mesmo deslocar a discussão política para além das batalhas morais.

Historicamente, a extrema-direita defendeu hierarquias e tendeu a apoiar medidas punitivas que tornavam a violência justificável. Parte da esquerda volta-se contra o punitivismo e em favor de formas dialógicas de convencimento da sociedade, mesmo porque sua concepção de justiça social se baseia na luta contra a desigualdade econômica em favor da construção de uma sociedade igualitária. Em contraste com essa perspectiva, grupos identitários atuais fazem uso de táticas violentas e priorizam lutar contra hierarquias. Agem como se fosse possível defender justiça social apenas colocando os “oprimidos” no lugar dos “opressores”.

A política identitária tem afinidades com o neoliberalismo, pois suas práticas mantêm desigualdades cosmeticamente alocando alguns em postos de comando ou posições de visibilidade enquanto a maioria continua no andar de baixo. Quando lhe faltam argumentos, revela seu desprezo pelo diálogo e a democracia empunhando a arma dos cancelamentos, por meio dos quais redobra a aposta no conflito e nos julgamentos morais mostrando ser muito parecida com a extrema-direita à qual afirma se opor.

Uma forma renovada de autoritarismo viceja em contextos tecnomidiatizados afeitos a converter disputas políticas em batalhas morais. O que as práticas punitivas que as caracterizam revelam sobre as vertentes políticas em luta é a pretensão delas da posse de um juízo moral inconteste. O cancelamento é uma arma tecnológica e midiatizada de disciplinamento e eliminação de dissidentes, além de servir para ameaçar quem mais ousar desafiar suas convicções. Assim mantêm refém e empobrecida a opinião pública, definindo o que pode ser dito e pensado, mesmo porque seu poder e hegemonia só podem existir forcluindo qualquer pensamento crítico.

Richard Miskolci é professor titular de Sociologia da UNIFESP e autor de Batalhas morais: Política identitária na esfera pública técnico-midiatizada (Autêntica, 2021).


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