A guerra de todas as mulheres: “A casa do pai”, de Karmele Jaio, e outros lançamentos
Tudo começa com um estupro. Não é o estupro de uma personagem, mas quase. Ou, mais precisamente: não é o estupro de uma personagem, mas poderia ter sido. No romance A casa do pai, de Karmele Jaio (ed. Instante, trad. Fabiane Secches), uma jovem mulher é estuprada por cinco homens em Pamplona em uma noite em que a filha do casal de protagonistas, Ismael e Jasone, também estava na cidade.
Para Ismael, embora a vítima não fosse sua filha, ela poderia ter sido por causa dessa coincidência de tempo e espaço: um grupo de homens estava em busca de uma mulher para violentar naquela noite específica, naquele lugar específico. A que encontraram foi uma outra jovem, uma jovem azarada.
Para Jasone, embora a vítima não fosse sua filha, ela poderia ter sido, porque sua filha é mulher. Como ela também é. Todos os dias, diversos homens estupram diversas mulheres em diversos lugares e escapam. Isso, sim, é um golpe de sorte.
Nessa diferença de perspectiva reside todos os conflitos do breve romance. Porque a maneira como Ismael olha para o ocorrido — como exceção — reflete a maneira como ele se coloca e experimenta o mundo: como homem. É um argumento comum do feminismo, mas não por isso menos eficiente, de que qualquer mulher conhece uma série de mulheres estupradas, mas nenhum homem nunca conhece nenhum estuprador.
O que essa analogia busca comunicar não é que existam duas realidades diferentes (uma em que há muitos estupros e outra em que não há), mas que o conhecimento e a experiência dessa realidade difere de acordo com o gênero de quem a observa. Que os homens talvez pensem que há menos a ser reformado na realidade que existe porque eles não podem observá-la da mesma maneira.
É uma premissa interessante para um romance, ainda mais um romance que, como esse, faz uso de narradores diferentes, espelhando na forma sua premissa básica de conteúdo. O estupro da jovem em Pamplona é o estopim inicial de uma investigação desse casal, já de meia idade, com as filhas fora de casa, que se afasta e se aproxima por conta da força do tempo, mas também das diferenças de gênero.
A terceira voz narrativa, além de Ismael e Jasone, ao mesmo tempo une as diferentes perspectivas do drama familiar e o puxa para o cenário externo. Mais ou menos no meio do livro, entra em cena a voz de Libe, irmã de Ismael e melhor amiga de Jasone, uma mulher lésbica que na juventude se envolveu com movimentos radicais.
Sua posição enquanto lésbica a coloca de forma interessante na disputa entre Jasone e Ismael: ela é uma mulher que é ao mesmo tempo mais ciente das fraturas de gênero que Jasone apenas começa a entender e uma mulher que não precisa viver esses descompassos em sua vida íntima. Livre em certa medida das contradições que confundem Jasone, um desejo simultâneo de rebelião e um de aprovação por parte dos homens.
No entanto, se Libe se liberta das contradições na arena dos relacionamentos românticos, seu histórico familiar está permeado delas: criada em uma família tradicional, sua relação com os pais é complicada por seu amor por eles e pela rejeição dos estereótipos de gênero estabelecidos. O pai, força motora do romance, como o título diz, é um homem conservador e violento, que despreza na filha as mesmas coisas que busca no filho, em vão. Ismael é um homem sensível, voltado para a leitura e para a escrita, avesso à brutalidade e à violência. Libe, por outro lado, envolve-se no que há de simbolicamente mais masculino no mundo: a fúria nacionalista. Está do lado basco de um conflito separatista contra a Espanha hegemônica.
O pano de fundo dos movimentos nacionalistas dos anos 1980 busca expandir as questões de gênero que o livro começa explorando no particular e as joga para o coletivo, ainda que essa passagem por vezes ocorra de maneira quase didática. Em certos momentos, a temática dos movimentos separatistas parece quase obrigatória, como se um livro basco só pudesse alcançar notoriedade ao tratar de tais assuntos. Acaba sendo menos interessante a relação de Libe e Ismael com os partidos radicais dos anos 1980 e mais a de Ismael e Jasone com a língua e a literatura.
Ismael tem o basco como primeira língua e é um escritor conhecido da região, porém é apenas com a tradução de seus romances para o castelhano que alcança notoriedade. Além disso, a consequência de seu atual confronto com a masculinidade e a violência de gênero é um bloqueio criativo. Ele quer se aproximar do mundo das mulheres, mas sente que há um abismo que os separa. Jasone, por outro lado, aprendeu o basco na adolescência e por isso revisa os livros do marido: “vocês ‘novos bascos’ conhecem melhor a gramática da língua”, ele diz. Nesse mundo marcado por uma confluência entre identidade, língua e masculinidade, resta a ela dar forma às palavras dos outros. Até que, de forma especular ao que acontece com Ismael, seu entendimento do feminismo a leva finalmente a escrever o seu próprio romance.
O livro de Karmele Jaio é abertamente feminista e, ainda que recaia no discurso panfletário em alguns momentos, esse posicionamento serve mais à movimentação da história do que como proposta de educação a leitores. Não é o objetivo de Jaio convencer ninguém da necessidade ou importância do feminismo, mas narrar o mundo que ela olha por suas lentes. É curioso que esse seja ainda um projeto tão raro. Embora diversas escritoras se declarem feministas, ainda são poucos os livros que tecem sua política na trama narrativa — Elena Ferrante é uma notável exceção. Apesar de curto, o livro, que venceu o prêmio mais importante de literatura basca, também consegue investigar seus temas de forma histórica, implicando gerações de homens na violência que diagnostica.
Curiosamente, o romance é menos interessante quando se obriga a colorir suas questões com as especificidades de seu território, mas muito forte quando olha para o que Libe e Jasone chamam de “a guerra de todas as mulheres”.
Isadora Sinay é escritora, tradutora, crítica literária, professora de literatura e doutora em Letras pela Universidade de São Paulo.
por Redação
Livro de estreia da poeta que, em 50 poemas, versa sobre os “dias em que a vida não fazia sentido nenhum, mas também sobre a intensidade e o amor”, nas palavras da própria escritora. É uma poética, como declara Lila Polese no prefácio, que atravessa as vastas emoções: “as paixões, os desejos, e os anseios da juventude. Mas também […] os medos, o vazio e as dúvidas”. Como escreve no poema que intitula a obra, “Nua,/ pelada,/ mas cheia de roupas,/ atolada de palavras,/ explodindo de sensações/ como um infinito de emoções/ é isso que eu sou,/ é isso que o amor é,/ é isso que tem aqui dentro,/ na alma,/ no corpo,/ na voz,/ na minha arte,/ no meu sentimento/ e na minha mente”.
O novo livro do economista Marcio Pochmann sonda o que o autor percebe como a “mudança de época” que ocorre no Brasil desde finais do século 20. Em sua análise, tal virada ocorreu entre as décadas de 1930 e 1980, com o esgotamento do modelo urbano e industrial de então e a transição para uma sociedade de serviços, marcada pelo enfraquecimento das organizações coletivas em concomitância com o fortalecimento de posições individualistas e reacionárias. Dividido em seis capítulos, o autor analisa diferentes aspectos do fenômeno: as transições estruturais, sociais e econômicas; a desigualdade territorial e os padrões de urbanização do capitalismo periférico; o neoliberalismo brasileiro, seu Estado patrimonialista e a forma de gerir a pobreza; as mutações no mundo do trabalho em cenário de precarização e acentuação das desigualdades.
Um panorama, a partir dos referenciais teóricos das Ciências Políticas, sobre a operação Lava Jato, os fatores que a tornaram possível e suas diferentes consequências para a vida política brasileira. Para formar esse panorama, os autores dividem a obra em três partes, referentes à origem, ao apogeu e à queda da Lava Jato. Como escreve Leonardo Avritzer, professor de Ciência Política da UFMG, podem ser percebidos três níveis na análise de Fábio Kerche e Marjorie Marona: o das mudanças institucionais, na Polícia Federal e no Ministério Público, que permitiram tal operação de forte caráter de antissistema político; a multifacetada construção da narrativa sobre a corrupção, sempre buscando demover a opinião pública; e a perda de apoio após a integração de Sergio Moro ao governo e a nomeação de Augusto Aras à Procuradoria-Geral da República.