Guerra colonial à moda brasileira

Guerra colonial à moda brasileira
(Arte Andreia Freire)

 

No seu curto Necropolítica, o filósofo Achille Mbembe parece descrever uma situação na qual podemos identificar a sociedade brasileira: a colônia, argumenta ele, representa o lugar em que a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei, um lugar no qual a paz tende a assumir o rosto de uma “guerra sem fim”. As colônias são zonas em que guerra e desordem se alternam a fim de fazer operar toda forma de violência do estado de exceção; a colonização, portanto, é o exercício do poder soberano em nome da suposta civilização contra a barbárie. No ensaio, Mbembe consegue articular colonialidade, racismo, violência de Estado e crítica ao capitalismo global, unindo pontas que apareciam até então dispersas em diferentes autores ou correntes de pensamento. É uma das características do pensamento em forma ensaística, caminhar pelas ideias de forma mais livre, menos colonizada pelo modo de saber do especialista. É, guardadas as imensas proporções, o gesto que vou tentar repetir aqui.

Para isso, será fundamental no meu argumento pensar como a ideia de racismo é fundante de um projeto colonial que está em vigor em diferentes partes do mundo e em inúmeras configurações coloniais, e assume no Brasil características muito particulares. No centro do racismo está a divisão entre brancos humanos e negros inumanos. A este traço perverso se soma a intersecção entre classe, gênero, origem, local de nascimento, renda, escolaridade, religião, lugar de moradia, fenótipos, transexualidade e formas de exercício da sexualidade, de tal modo que o racismo produz uma forma múltipla de fazer e refazer os cortes entre quem cabe e quem não cabe na categoria de humano.

Nas pesquisas da antropóloga Berenice Bento (UnB), essa forma de violência está sendo chamada de necrobiopoder, dispositivo do Estado para distribuir “de forma não igualitária o reconhecimento de humanidade”, como ela argumenta no artigo “Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação?”, publicado nos cadernos Pagu. No trabalho da antropóloga Adriana Vianna (UFRJ), o dispositivo é nomeado de necrobiogovernança: “uma prática tecida nas rotinas policiais, judiciárias, hospitalares e escolares capaz de deslocar morbidamente a conhecida fórmula foucaultiana do “fazer viver/deixar morrer” para um “fazer morrer alguns” e “deixar morrer outros (e outro(a)s) tanto(a)s”, como ela descreveu no dossiê da CULT “A violência como ordem”, publicado em março de 2018. Tentando encontrar meu próprio caminho de leitura de Mbembe e me mantendo numa interlocução com as duas antropólogas cujos trabalhos tanto prezo, convoco mais uma autora e dois autores. A filósofa Judith Butler, que recorre a Mbembe quando está discutindo o tema do poder colonial na guerra permanente entre Israel e Palestina e sua articulação com o racismo de Estado; o pensador peruano Anibal Quijano e seu conceito de colonialidade do poder, expressão criada por ele para propor que raça e racismo são o eixo de organização do capitalismo global e das relações de poder; e o filósofo italiano Giorgio Agamben com seu conceito de vida nua, aquela desde sempre exposta ao direito e, portanto, à morte. Quijano, Butler e Giorgio Agamben, nessa ordem, me ajudam a pensar as nuances do racismo à brasileira. Com a colonialidade do poder, posso pensar o problema da separação entre vidas vivíveis e vidas matáveis; já o aparato estatal-capital nos fornece diferentes escalas de vidas precárias vivíveis; e o aparato jurídico nos abandona à condição de vida nua.

Se aqui eu retomar a noção de “guerra sem fim” proposta por Mbembe, talvez possa me arriscar numa reflexão sobre como a metáfora da guerra define o Brasil desde o início da empresa colonial europeia e se perpetua em práticas cotidianas que produzem distinção entre aqueles que só podem viver à margem da lei e àqueles que instituem a lei a fim de instituir os que ficarão à margem. A permanente situação de “guerra ao tráfico”, que assola as grandes cidades brasileiras e produz mortos em combate, já está bem descrita no artigo de Suely Aires. Se a retomo, é apenas para articular a nossa guerra com outras tantas guerras sem fim que estabelecem o modo da política em que a soberania se exerce em nome de um certo povo, desde que contra outro povo.

Na experiência de colonialidade, não há aparato formal ao qual se possa recorrer porque o direito é – como na profética definição de Agamben – um brinquedo com o qual se brinca como “as crianças brincam com os objetos fora de uso, não para devolvê-los a seu uso canônico e, sim, para libertá-los definitivamente dele”. Proponho unir colonialidade do poder e necropolítica num processo permanente de modificar a lei para que esta nunca possa ser de fato estabelecida. Da anomia constante se alimenta o estado de guerra permanente, talvez mais agudo ou mais visível em periferias de grandes centros urbanos, mas nem por isso muito bem distribuído em território nacional, e que torna impossível chamar o regime vigente de Estado democrático de direito.

O que está em vigor pela via da guerra sem fim e da vida à margem da lei é uma foraclusão de todas as vidas que a qualquer momento podem ser marcadas para morrer. Nessa estrutura, a colonialidade do poder se funde à necropolítica a fim de reproduzir novos colonizadores e novos colonizados, numa constante relação entre promessa e adiamento. Se meu diagnóstico tiver valor de hipótese, então estaríamos aqui numa necessidade constante de renovação da lei e de seu imediato apagamento, uma volta a mais no conto de Kafka, cujo protagonista está diante da lei à espera da abertura da porta, que nunca se abre para ele. Na colonialidade, as portas da lei são abertas e reabertas para remarcar o lugar do fora da lei, da soberania cujo poder está em agir sempre à margem da lei, para repetir Mbembe. Na necropolítica à brasileira, trata-se de três movimentos. No primeiro, promete-se o acesso à lei; no segundo, adia-se; e no terceiro, impede-se não apenas por ser a lei inalcançável, mas para que se possa de novo prometer e assim alimentar a guerra sempre em nome de uma lei que só virá como violência.

Quando Foucault inverte o aforismo militar de Carl Von Clausewitz – “A guerra é a mera continuação da política por outros meios” – para dizer que a política é a guerra por outros meios, dá conta de pensar processos de constituição e manutenção dos Estados-nações na Europa, mas para enfrentar a condição colonial é preciso levar à última radicalidade a “guerra sem fim” nas colônias, tal qual propõe Mbembe, porque é dessa guerra que se alimenta uma divisão fundamental. O racismo se constitui na divisão entre os que são alvo da guerra e a polícia, aqui tomada no seu sentido mais amplo como dispositivo de gestão da vida pública. Ao pensar com Mbembe e com Butler, posso acrescentar um problema nessa concepção de guerra: o permanente processo de precarização da vida, capaz de empurrar enormes contingentes de população da política para a guerra, de tal modo que não seja possível existir nenhum lugar de amparo na situação colonial. Na instabilidade, cresce o poder de mover a linha imaginária do racismo para qualquer um, a qualquer tempo, e no limite está em jogo quem tem ou não o direito de permanecer como raça humana.

“Muitos Estados já não podem mais reivindicar o monopólio sobre a violência e sobre os meios de coerção dentro de seu território. Nem mesmo podem reivindicar monopólio sobre seus limites territoriais. A própria coerção tornou-se produto do mercado. (…) Milícias urbanas, exércitos privados, exércitos de senhores regionais, segurança privada e exércitos de Estado proclamam, todos, o direito de exercer violência ou matar.” A situação africana descrita por Mbembe cabe no contexto brasileiro: às Forças Armadas se somam forças policiais ligadas às três esferas de governo. No âmbito federal, a Força especial e a Polícia Federal; nos estados, atuam as Polícias Militares, cuja função é o chamado policiamento ostensivo; nas prefeituras, crescem as guardas municipais, cada vez mais dotadas de poder de polícia e reivindicando uso de armas. Tudo isso sem contabilizar o contingente de segurança privada que age oficialmente nos espaços ditos públicos e as milícias que atuam sob a lógica do mercado informal e paramilitar, e se aliam a organizações como PCC e Comando Vermelho. Tudo isso ecoa o diagnóstico de Mbembe: “Cada vez mais, a guerra não ocorre mais entre exércitos de dois Estados soberanos. Ela é travada por grupos armados que agem por trás da máscara do Estado contra os grupos armados que não têm Estado, ambos os lados têm como seus principais alvos as populações civis desarmadas ou organizadas como milícias”.

Restaria como questão tentar nomear essa violência cuja origem não se limita mais a uma única fonte – Estado, capital ou direito – nem à combinação dessas três fontes, mas pode emergir de qualquer lugar contra qualquer um. Por isso, gostaria de concluir lembrando que 2018 é o trágico ano do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, abatida a tiros também para anunciar que ninguém está a salvo. A perversidade da violência brasileira é querer nos fazer crer que a execução de Marielle se deu por não haver nada que uma mulher negra oriunda de uma favela possa fazer para vencer sua condição subalterna, vulnerável, mera vida descartável. Nessa guerra sem fim à moda colonial brasileira, a maior violência não está só em criar uma fronteira entre quem pode ou quem não pode viver, mas está sobretudo em manter borradas as fronteiras entre a vida vivível e a vida matável.

Carla Rodrigues é doutora em Filosofia pela PUC-Rio, professora do departamento de Filosofia da UFRJ.


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