Gramsci na América
O americanismo, para Gramsci, apareceu como resposta ao ciclo revolucionário europeu
Ruy Braga
O nome de Antonio Gramsci está indelevelmente associado à luta contra o fascismo na Itália. Refinado intérprete da cultura italiana, além de arguto analista da história e da vida política da “Bota”, poucos se lembram que Gramsci foi também um influente estudioso dos Estados Unidos e da crise de 1929. Em seus Cadernos do Cárcere, conjunto de 29 cadernos de tipo escolar escritos por Gramsci entre 1929 e 1935, em uma prisão fascista, o filósofo marxista refletiu de forma pioneira, especialmente no Caderno 22, acerca do modo de vida estadunidense e sua nova condição operária engendrada pela organização fordista do trabalho e da produção. Sem dúvida, a atualidade do pensamento gramsciano encontra-se associada aos dilemas estadunidenses de ontem e de hoje.
E o que diria o marxista sardo a respeito da atual crise dos Estados Unidos? Afinal, apesar dos sinais de relativa recuperação econômica emitidos pelos países em desenvolvimento – a China anunciou recentemente um crescimento da ordem de 7% neste ano, enquanto o governo brasileiro já celebra um possível aumento de 1% do PIB para 2009 –, a principal economia do globo segue enredada em profunda crise. Em agosto deste ano, a taxa de desemprego estadunidense atingiu 9,7%, a mais alta desde 1983, e o déficit orçamentário passou de 8,6 para 10,3% do PIB. Após nove meses à frente do governo, Barack Obama vê sua popularidade, em meio à desgastante batalha pela aprovação da reforma do sistema de saúde, despencar quase 20 pontos: passou de 70% para cerca de 51%.
De realidade marcadamente econômica, a crise estadunidense já ameaça a saída política encontrada para dirimi-la: numa semana, Obama é obrigado a reconhecer em Pittsburgh a proeminência do G20 sobre o G8 para, na semana seguinte, assistir à derrota da candidatura olímpica de sua cidade natal, Chicago, para o Rio de Janeiro. Diante da ofensiva dos setores conservadores contra sua proposta de reforma do sistema de saúde, o anúncio da láurea do Nobel da Paz soa como um inusual prêmio de consolação. Sabemos que não se trata da primeira vez que o poderio estadunidense claudica perante o mundo. Lembremos da derrota no Vietnã seguida pela recessão econômica de meados dos anos 1970 e pela emergência do Japão como potência industrial e financeira.
Americanismo
Contudo, uma crise dessa envergadura só encontra paralelo no ano de 1929. O início dos anos de 1930 também foi marcado por uma inédita crise econômica, a “Grande Depressão”, que se transformou em uma exuberante crise política. A combinação de crise econômica com crise política plasmou a sociedade estadunidense por meio de um novo modo de vida: o americanismo. Em oposição ao movimento comunista da época que, com exceção de Leon Trotski, reiteradamente subestimou a importância do novo poder estadunidense, Gramsci produziu uma renovada separação temporal do capitalismo, sustentada pelo diagnóstico segundo o qual desde o fim do século 19 o desenvolvimento da grande indústria deslocara o eixo dinâmico da economia mundial da Europa para os Estados Unidos.
Fenômeno a um só tempo cultural, político e econômico, o americanismo surgiu aos olhos de Gramsci como um modo de vida imbricado, na esfera produtiva, com o taylorismo – como modelo de organização do trabalho – e com o fordismo – como mecanismo global de acumulação de capital. Não deixa de surpreender que, mesmo encarcerado, Gramsci tenha apreendido algo que não era de forma alguma consensual na Internacional Comunista. A primeira observação que chama atenção na série de notas acerca dos Estados Unidos, e que foram reagrupadas tematicamente em 1934, é a presença de uma marcante intuição da força do capitalismo estadunidense, o único capitalismo histórico que não se encontraria limitado pelos resíduos sociais dos modos de produção anteriores.
Uma segunda e decisiva observação repousa na constatação de que o fordismo – como mecanismo de acumulação e base para o American way of life –, longe de criar pura e simplesmente o “gorila amestrado” pretendido pelo sistema Taylor, isto é, pelo modelo de organização do trabalho baseado na desqualificação do produtor direto e no rígido controle sobre o trabalhador, carregava consigo os fundamentos de um ulterior desenvolvimento da luta operária. Isso, de fato, ocorreu a partir de 1934, com a greve geral em São Francisco e a formação, em 1935, do Congresso de Organizações Industriais. O advento de um renovado ciclo de lutas operárias nos Estados Unidos foi antecipado pelas sistemáticas tentativas, por parte das gerências, de refrear a combatividade classista por meio da estratégia dos altos salários e da difusão de ideologias proibicionistas por entre as famílias operárias.
Na verdade, da combinação do proibicionismo, associado, especialmente, com a vigência da chamada “Lei Seca” nos Estados Unidos (1919-1933), com a regulação puritana dos hábitos sexuais e de consumo emergirá uma poderosa arma cultural voltada contra a combatividade da classe operária estadunidense: a ideologia do progresso individual, coração do American way of life. Esse modo de vida nascente representou uma vitória cultural e política construída, por meio de uma peculiar combinação de força (a derrota do sindicalismo de ofício) e persuasão (os chamados altos salários, os benefícios sociais, a propaganda moral e a instrução), pelo capitalismo estadunidense sobre o poder das antigas formas de ação coletiva.
Assim, o americanismo logrou estruturar um modo de consumo intimamente associado à ideologia do progresso individual. Gramsci foi pioneiro em observar a importância da elevação dos salários, o five dollars day introduzido por Henry Ford, para a pacificação dos conflitos operários provenientes da linha de montagem. O marxista sardo identificou na nova norma salarial o principal instrumento de estruturação do “mercado determinado” organizado pela transferência de parte dos ganhos de produtividade para os salários. Anteviu aí aquilo que foi batizado de “compromisso fordista”, isto é, a tentativa de estabilizar a relação capital-trabalho por meio, sobretudo, do consumo conspícuo de bens duráveis pela classe trabalhadora estadunidense.
Estratégia de pacificação social
No plano político, cabe destacar que Gramsci se debruçou sobre a hegemonia estadunidense no intuito de testar a hipótese de uma “evolução” da revolução passiva como estratégia burguesa de pacificação social, alternativa ao fascismo. Nesse sentido, o americanismo apareceu como uma resposta capitalista ao ciclo revolucionário europeu. Aos olhos de Gramsci, o advento do American way of life representou um projeto hegemônico afinado com o objetivo “progressista”, para as classes dominantes tradicionais, de superar tanto a crise econômica quanto a ameaça do “espectro” comunista na Europa, partindo do aumento regulado do investimento produtivo.
Num certo sentido, Gramsci estava convencido do caráter “progressivo” do capitalismo estadunidense. Mas a concepção de “progresso” em Gramsci decorre de uma interpretação não linear da história. Assim, deveria ser considerado como “progressiva” toda transformação social capaz de promover o desenvolvimento das forças produtivas. Isso supunha valorizar positivamente a “dimensão objetiva” do americanismo, isto é, o fordismo, ao mesmo tempo em que se criticava a “irracionalidade” da utilização do taylorismo pelos industriais norte-americanos. E foi por intermédio dessa interpretação dialética do americanismo que Gramsci apreendeu o novo equilíbrio de forças políticas instaurado em pleno período de crise orgânica, conforme vivia o mundo capitalista da época.
Perante a necessidade de interpretarmos a realidade estadunidense contemporânea para melhor apreen-dermos os lineamentos da crise atual, as reflexões de Gramsci contidas nos Cadernos são decisivas. A dialética relacional do americanismo não nos permite esquecer que, quando feridos mortalmente em 1929, os Estados Unidos emergiram como um hegemon belicoso no pós-Segunda Guerra Mundial, o “cárcere dos povos” que nós, latino-americanos, bem conhecemos. O novo sistema cultural, político e econômico, antevisto por Gramsci em seu Caderno 22, nos auxilia a compreender esse processo de uma perspectiva globalizante. A mesma perspectiva que deve continuar balizando a análise dos dilemas atuais vividos pela pátria da ideologia do progresso individual.