Governando de quatro
(Arte Revista CULT)
A maior parte do que Bolsonaro faz ou deixa de fazer agora na presidência já era cristalino no segundo semestre de 2018, quando os eleitores deste país decidiram fazer dele o 38º presidente do Brasil. Neste sentido, há bem pouca razão para recriminação por surpresa ou incoerência. Bolsonaro disse que iria fazer uma revolução reacionária nos costumes e nos valores e tem devotado a isso praticamente todas as forças, desde a escolha e a defesa de ministros imprestáveis para qualquer outro fim até na adoção de uma retórica ultraconservador americano. Bolsonaro disse que não entendia nada de economia, reforma da providência, tributação, essas coisas, e que terceirizaria tudo o que tivesse a ver com a crise econômica (ajuste das contas públicas, desemprego, crescimento econômico, inflação etc.) e, de fato, não só não entende disso como demonstra que esses temas estão longe de constituir o centro da sua atenção e a prioridade do seu governo.
Bolsonaro disse que não iria fazer política, a política partidária tradicional de mobilização e articulação de parlamentares, orientação de bancadas e estabelecimento negociada de agenda de prioridades. Efetivamente, foi eleito com uma retórica antissistema e antipolítica segundo a qual a política partidária é atividade vil, nefanda e infame, com a qual quem governa não deveria, em hipótese alguma, sujar as mãos. Agora Bolsonaro se mostra incapaz de fazer andar no Congresso a reforma da Previdência de Guedes ou o projeto de “criminalização do crime” de Sérgio Moro por absoluta incapacidade de fazer… política. E isso não deveria surpreender qualquer pessoa, vez que havia deixado claro que fazer política não era exatamente a dele.
Por fim, só para parar em algum ponto esta lista infinda, Bolsonaro nunca prometeu se comportar presidencialmente, a assumir um perfil mais conciliador, a ser mais pragmático e menos retórico para tocar a agenda liberal dos seus fiadores do mercado financeiro, a deixar o palanque e a agir responsavelmente, a desinflamar os ânimos e começar a entregar resultados e, sobretudo, a deixar a narrativa alucinada e paranoica de quem vê comunistas em todos os lados. Na verdade, Bolsonaro disse que seria exatamente o contrário disso, e assim está sendo. Nem mesmo pode ser acusado de, em algum momento, ter dado sinais de ser uma pessoa inteligente. Dizer-se surpreso agora com o seu baixo rendimento intelectual é injusto, para dizer o mínimo.
De fato, a única coisa que realmente não sabíamos nem poderíamos supor sobre o que resultaria da eleição de Bolsonaro nada tem a ver com o elenco que acabei de fazer. E se resume ao fato de que não elegemos um, mas quatro Bolsonaros, papai e três dos seus “garotos”, todos presidindo esta república (assim mesmo, minúscula). Ficaram de fora da presidência apenas um dos “garotos”, por esquisito, e a filha, a resultante da fraquejada, que mulheres não são talhadas para o poder como se sabe. Assim, pela primeira vez na nossa breve e confusa história republicana, elegemos uma espécie de matrioska, aquela bonequinha russa na qual estão embutidas outras bonequinhas idênticas. Você comprou um Bolsonaro e levou quatro pelo mesmo preço, embora apenas um tenha aparecido como candidato à presidência na urna eletrônica.
Bolsonaro não disse que governaria de quatro, mas é exatamente isso o que está acontecendo. A eleição dos quatro presidentes Bolsonaros é um caso republicano raro de uma espécie de “família real”. Mas com uma peculiaridade que nem a monarquia comporta, de que todos os quatro governem ao mesmo tempo. Está mais para um quadrunvirato, um governo de quatro cabeças e oito mãos, com o adicional de um guru, uma espécie de preceptor moral e orientador político dos filhinhos-presidenciais, na figura de Olavo de Carvalho, o nosso Rasputim. E com isso, já são quatro presidentes e um semipresidente. É gente demais para um governo de menos.
Não surpreende, portanto, que como a presidência já está lotada, 100 dias depois de iniciado o governo a prioridade seja espaço. É assim que Carlos Bolsonaro, dublê de vereador da Câmara Municipal do Rio de Janeiro e co-presidente da República, declarou guerra esta semana ao vice-presidente eleito do país, Hamilton Mourão. O pretexto foi uma declaração de Mourão contra o mentor da família, o guru chamado Olavo. Este que, a despeito de ser versado apenas em astrologia e autocomplacência, é líder de uma facção política das mais importantes que disputa influência dentro do governo em rota de colisão com a facção das forças armadas, que também se aboletou em posições-chave na administração pública federal. Para resumir a tragicomédia, o chefe da facção olavista atacou publicamente (que tudo nesse governo é barraco e precisa ser à vista de todos) a facção militar, que foi defendida pelo representante do partido fardado, justamente o vice-presidente.
Tal ato foi o bastante para que o co-presidente 02, Carlos, passasse a acusar Mourão de estar pondo demais as asinhas de fora. Em ordem cronológica, o general foi acusado de estar no governo, mas não ter se convertido com sinceridade ao bolsonarismo, de não ter se tornado um Jair Bolsonaro em opiniões e devaneios, de estar adorando e desfrutando da reputação de última ilha de sanidade no sanatório geral do bolsonarismo reinante, em suma, de estar de olho gordo em cima da presidência.
Não dá para negar que vice-presidentes, depois do exemplo de Temer, a traíra, se tornaram ameaças à sobrevivência de presidentes, sobretudo de presidentes com baixo apoio político no Congresso e com popularidade despencando. Parece razoável, até certo ponto, que se desconfie de que Mourão possa ter sido acometido da Síndrome do Vice Que Não Queria Ser Decorativo. O fato, porém, é que Mourão não chegou a esta posição por ter “o sangue” de Bolsonaro, mas porque estava na chapa ao lado dele e foi eleito por voto popular. Mourão não pode ser “deseleito”, nem a acusação de falta de crença bolsonarista está prevista na Constituição como crime de responsabilidade e como condição suficiente para o impeachment, como aventam os adeptos hardcore do Mito. Para completar, há o detalhe não insignificante de que Hamilton Mourão é um general em um governo cheio de generais e em um momento em que grande parte dos brasileiros, inclusive por causa do bolsonarismo, escolheu as forças armadas como sua instituição de fé. Carluxo escolheu um alvo bem grande desta vez, temos que admitir. Precisamos ver se tem dentes para destroçá-lo.
Como o quadrunvirato de Jair Bolsonaro & filhos vai lidar com tanta gente para tão pouco espaço, não se sabe ainda. Mas que o general eleito vice-presidente não pode ser apagado ou escondido, isso já se sabe que não poderá ser feito. Como dizia o meu pai, nunca contrate alguém que você não pode demitir. Por enquanto, não nos resta que assistir, espantados, à colisão das placas tectônicas de que se compõe o bolsonarismo. E a um estranho governo de quatro.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)
(1) Comentário
Parabéns por tanta clareza e assertividade!