Genocídio e a enunciação da pandemia nas colunas sociais de política

Genocídio e a enunciação da pandemia nas colunas sociais de política
Cemitério público de Manaus Nossa Senhora Aparecida em março de 2020 (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

 

Madame diz que a raça não melhora
Que a vida piora por causa do samba
(Pra que discutir com madame? Haroldo Barbosa e Janet de Almeida)

Este texto é dedicado a Lia Vainer Schucman (UFSC) e Deivide Ribeiro (UFMG), pelo aprendizado na luta antirracista

 

A pandemia de covid-19 trouxe para a grande mídia brasileira noções como genocídio e necropolítica. Embora utilizadas como meros xingamentos ou adjetivos, os dois conceitos compõem elaborações sofisticadas de intelectuais e movimentos negros. Talvez por isso é somente de forma esvaziada e simplista que adentram os grandes jornais nos quais hoje quase tudo é coluna social – principalmente o que não é.

A ignorância a respeito destas elaborações é mais um capítulo da longa história do mito da democracia racial no Brasil e que eu jamais poderia tratar de maneira adequada neste espaço, de maneira que me limito a apontá-la. O que me move hoje são as reiteradas vezes em que vejo as autoridades locais anunciando toque de recolher nas cidades e rondas policiais para garantir a obediência a esta e outras medidas de isolamento social.

Não há um favelado neste país que não saiba o que significa toque de recolher. De tanto que se vive sob a terceirização da segurança pública exercida pelos comandos do tráfico e pelas milícias, e também sob o achaque de batidas policiais seletivamente voltadas sempre para as mesmas comunidades, essas medidas de combate à pandemia não trazem novidade.

O que há de novo neste momento é o que Achille Mbembe chamou de devir-negro do mundo, isto é, quando a condição da população negra se torna padrão de vida e se generaliza por toda a sociedade. Não à toa as polícias estão encontrando tanta dificuldade em desfazer aglomerações, afinal, não se chega em toda festa da maneira que se chega num baile funk, batendo, esculachando, prendendo e até matando, como nos lembra o massacre de Paraisópolis no já longínquo 2019.

A formulação jurídico-política de genocídio forjada no pós-Guerra nos ensinou pelo menos duas coisas. A primeira é que foi necessário nomear não apenas os eventos históricos, mas o funcionamento de uma política voltada para o extermínio de grupos nacionais, raciais, étnicos ou religiosos: o nome é genocídio. A segunda é que dar nome ao problema é uma operação que só se torna possível quando ele atinge quem é visto como humano.

Nesta pandemia, o que torna possível aos colunistas sociais da política nomearem o governo brasileiro como genocida é tanto o efetivo genocídio em curso quanto a ignorância (ou negação) sobre o genocídio do povo negro e indígena como política do Estado brasileiro.

Nas palavras de Florestan Fernandes, ainda na década de 1970, vivemos “um genocídio insidioso, que se processa dentro dos muros do mundo dos brancos e sob a completa insensibilidade das forças políticas que se mobilizaram para combater outras formas de genocídio”. Hoje o genocídio tornou-se nomeável para boa parte da imprensa porque chegou ao asfalto e entrou no condomínio fechado.

 

Há décadas existe produção
intelectual no Brasil sobre
genocídio e sobre como o
mito da democracia racial
é inseparável desta produção
de morte em grande escala,
porém reservada a determi-
nados grupos sociais.

 

 

Pela experiência ou pela dedicação intelectual aos problemas políticos deste país, todos e todas que ocupam algum lugar de destaque no debate público deveriam tomar como ponto de partida para a análise do genocídio da covid-19, a constatação de que o genocídio vem sendo a condição de imensos contingentes populacionais encarcerados, executados sumariamente pela polícia e pela segurança privada no campo e na cidade. Discutir genocídio no Brasil sem passar por Abdias Nascimento é transformar o conceito e sua carga histórica em xingamento histérico e estéril. E mais do que isso, é desprezar a memória sem a qual estamos fadados a jamais sair deste ciclo mortal, pois nada garante que logo depois não voltaremos a fazer de escolhas necessárias algo muito “difícil”.

Temos razões para sermos pessimistas quanto à condição de enunciação de quem há pouco mais de dois anos ignorou as advertências sobre o bolsonarismo vindas dos segmentos sociais que vivem o genocídio brasileiro sem pandemia e, pior ainda, na pandemia. Temos mais razões ainda para desconfiar de quem colocou movimentos como o #EleNão na narrativa da polarização, e de quem equivale movimentos sociais de minorias, como o feminismo de esquerda, à base social do bolsonarismo.

Sabemos que tão logo coloquem o pescoço para fora d’água não terão problemas em deixar que os de sempre continuem indo pro saco. Os discursos a favor do teto de gastos e da austeridade fiscal, assim como o do incremento do rigor punitivo, nunca dependeram de pandemia alguma. Que o próprio sistema de justiça criminal seja uma constante atualização de um regime escravagista baseado no sequestro, na tortura e na morte por doenças curáveis como a tuberculose, nunca impediu o profissional liberal da grande mídia de aderir ao lavajatismo que, sob a desculpa de pegar “peixe grande”, prendeu Rennan da Penha por condenação “em segunda instância”.

Afinal, todos esses discursos sempre abateram pessoas cujo extermínio é tão normalizado que as notícias sobre seus corpos, quando existem, aparecem nos cadernos jornalísticos sobre cotidiano, não sobre política. É preciso que se diga que a necropolítica de que fala Mbembe não é um problema conjuntural que emergiu da excepcionalidade da pandemia, mas a maneira pela qual as sociedades capitalistas descartam as vidas excedentes, indignas de luto, em seu funcionamento regular.

O fato de a discussão sobre genocídio e/ou necropolítica somente ser pautada pelos colunistas sociais da política a partir da pandemia, portanto, tem a ver com a indiscernibilidade dos alvos da mortalidade neste contexto. O vírus, de fato, pode atingir humanos, ou seja, os sujeitos cujas clivagens de raça, gênero, classe, sexualidade, idade correspondem a um padrão do colonizador: branco, homem, rico, heterossexual, cissexual, adulto, jovem. Como um médico do hospital sírio-libanês, por exemplo.

A denúncia de um genocídio em curso neste país existe há muito tempo e é sequencialmente desqualificada por uma suposta inadequação jurídica (argumento brilhantemente refutado por Rebeca Oliveira Duarte), ou porque há uma tentativa pouco honesta de esvaziar a dimensão estrutural do conceito de racismo, como nos mostrou Lia Vainer Schucman recentemente, ou ainda porque, noves fora a pandemia, o compromisso ético-político de muitas vozes no espaço público é com a manutenção da estrutura racial que lhes permite serem mais empoderadas quanto mais medíocres se mostrarem.

Aline Passos é doutoranda em Sociologia pela UFS, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, graduada em Direito também pela UFS. Professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia


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