Godot e a pandemia

Godot e a pandemia
Cacilda Becker como Estragon em "Esperando Godot", 1969 (Foto: Alexandre Luís De Angeli)

 

Escrita em Paris, após a Segunda Guerra – ao longo de quatro meses, em 1949, sendo levada aos palcos do pequeno Théâtre de Babylone em janeiro de 1953 –, Esperando Godot, uma das mais desconcertantes obras literárias do século 20, aponta, de maneira incontornável, o paroxismo da modernidade: nessa peça de Samuel Beckett podem ser lidos os sintomas de uma cultura que manifesta, do modo mais agudo, a sua crise, o seu limite.

Muitos aspectos dessa “comitragédia” fazem referência ou respondem a questões que tensionaram a dramaturgia ao longo dos séculos. Nesse sentido, imediatamente se nota a impossibilidade de uma precisa definição a respeito do seu gênero. Mas esse ponto indeciso ou hesitante, que, como crise do aristotelismo e crítica da cultura, já vinha sendo elaborado ao menos desde Hamlet, passando pela “harmonia dos contrários” de Victor Hugo e pela veleidade dramática de Baudelaire, além de outras experiências teatrais de ruptura, como as de Alfred Jarry, Antonin Artaud, Erik Satie, Bertolt Brecht e, logo, Eugéne Ionesco (etc.) – enfim, esse ponto indeciso ou hesitante é só o começo dos nossos desafios diante dessa obra, eu diria.

Isso porque, no momento em que a civilização ocidental revela como nunca a sua indissociável face de barbárie (com a destruição de cidades inteiras, os exílios forçados, os campos de concentração, o extermínio em massa, a Guerra Fria que se arma etc.), Beckett parece nos apresentar com sua peça – a sina de um presente vazio a que parecem estar fadados Vladimir e Estragon – uma situação em que a própria possibilidade de representação está suspensa. Com Beckett, absurda parece ser a própria crença na representação ou comunicação de um sentido, um problema que a rigor é estruturante do seu teatro e da sua literatura.

Afinal, a validade da representação repousa numa premissa fundamental: seja a ação dos homens, seja a natureza/o mundo, há sempre uma realidade extralinguística que funcionaria como referente e assim garantiria a priori o entendimento do que é referido ou representado pelas linguagens das artes. Ou ainda: há sempre a confiança – reforçada pelo humanismo iluminista e pela ciência positivista – numa linguagem instrumental que operaria como veículo de comunicação e esclarecimento.

Mas o que acontece quando nossas linguagens parecem já não dar conta de um mundo tão fragmentado, convulsionado e caótico? Quando as palavras e as imagens já não conseguem apaziguar nossa insegurança nem remediar uma realidade desprovida de sentido? Quando, em suma, também a linguagem é abalada e não há palavra capaz de traduzir o real ou de apontar o sentido de um tempo cuja natureza é maquínica?

É como se Beckett ainda nos questionasse: como representar o irrepresentável? Como dar uma cena, um quadro simbólico para aquilo que foge aos marcos da razão? Como explicar o inexplicável de um cotidiano insensato e amnésico, repetitivo e ausente? Se de acordo com os princípios do teatro clássico um drama trágico deveria apresentar indivíduos em ação, sendo que essas ações, comprometendo-os por inteiro, definiriam os caracteres dos heróis, assim como as peripécias e a catarse, em Esperando Godot escutamos já na primeira linha de Estragon: “Nada a fazer”.

Como sintetizou Vivian Mercier em 1956, trata-se de uma peça de dois atos em que “nada acontece, duas vezes”. O que significa que (no texto, em cena) algo, sim, acontece: o nada. Daí o silêncio ostensivo, que pontua a peça do início ao fim (se é que podemos, de fato, falar em fim…). Daí, ainda, que o próprio sentido do pensar seja drenado e passe a girar em falso, fora dos gonzos, como vemos notadamente no monólogo de Lucky, quase ao final do primeiro ato (na tradução de Fábio de Souza Andrade):

“LUCKY (exposição monótona): Dada a existência tal como se depreende dos recentes trabalhos públicos de Poinçon e Wattmann de um Deus pessoal quáquáquáquá de barba branca quáqua fora do tempo e do espaço que do alto de sua divina apatia sua divina atambia sua divina afasia nos ama a todos com algumas poucas exceções não se sabe por quê mas o tempo dirá e sofre a exemplo da divina Miranda com aqueles que estão não se sabe por quê mas o tempo dirá atormentados atirados ao fogo às flamas às labaredas que por menos que isto perdure ainda e quem duvida acabarão incendiando o firmamento a saber levarão o inferno às nuvens tão azuis às vezes e ainda hoje calmas tão calmas de uma calma que nem por ser intermitente é menos desejada mas não nos precipitemos e considerando por outro lado os resultados da investigação interrompida não nos precipitemos a investigação interrompida mas consagrada pela Acacacacademia de Antropopopometria de Berna-sobre-Bresse de Testu e Conard ficou estabelecido sem a menor margem de erro tirante a intrínseca a todo e qualquer cálculo humano que considerando os resultados da investigação interrompida interrompida de Testu e Conard ficou evidente dente dente […]”

A peça fez-se conhecida, também, por suas montagens em situações-limite. Como nos lembra Rónán McDonald, em 1957 Esperando Godot foi produzida por Herbert Blau e levada para a penitenciária de segurança máxima San Quentin, “dando início a um longo e produtivo relacionamento entre Beckett e a St. Quentin Drama Workshop”. Mas “a afinidade da obra com condições extremas também se manifestou em diversas produções célebres realizadas em períodos de crise política e social, quando parecia que a espera, a confusão, a incerteza e a esperança espreitavam com uma urgência material e particular”.

Nessas condições extremas estão montagens como a de Donald Howarth, em 1980, na Cidade do Cabo, em pleno apartheid sul-africano, com atores negros interpretando Estragon e Vladimir, enquanto atores brancos encenavam Pozzo e Lucky; a versão árabe-israelense de Ilan Ronen, apresentada em 1984, em Haifa, com marcadores linguísticos de classe e poder social tensionados entre o árabe coloquial, o hebraico e o árabe acadêmico; a de Susan Sontag, em 1993, em Sarajevo, durante a Guerra da Bósnia, com diversos pares de Vladimir e Estragon, inclusive com duplas mistas e duas mulheres; e finalmente a de Paul Chan e Christopher McElroen, em 2007, em New Orleans, encenada ao ar livre em bairros que foram devastados pelo Furacão Katrina, “quando muitos moradores ficaram presos na cidade à espera de um socorro que nunca chegou”, como escreve Rónán McDonald.

cacilda becker e walmor chagas em em Esperando Godot foto Alexandre Luís De Angeli
Cacilda Becker e Walmor Chagas em em Esperando Godot, 1969, dir. Flávio Rangel (Foto Alexandre Luís De Angeli)

No Brasil, Beckett foi aclimatado, ao longo das décadas, por diferentes escolas. Fábio de Souza Andrade traçou parte desse percurso, que vai desde a recepção de Esperando Godot feita por Alfredo Mesquita, em 1955, com um elenco de estudantes de artes cênicas da USP; passando pela direção e tradução de Flávio Rangel, em 1969, com Cacilda Becker e Walmor Chagas nos papeis de Estragon e Vladimir; pela montagem de Antunes Filho, numa peça encenada apenas por mulheres, em 1977; pela apropriação antinaturalista de Zé Celso, escrita em 1990, que dá início à peça biográfica Cacilda!; pelas diferentes adaptações do autor feitas por Gerald Thomas; pela recriação de Fim de jogo feita por Isabel Teixeira; pela atenção de Adriano e Fernando Guimarães à intermidialidade dos textos de Beckett etc. Enfim, após sua recepção, e entre os longos anos da ditadura militar e o período de transição para a democracia, “pode-se dizer que diferentes escolas de interpretação, famílias de atores e diretores beckettianos, muito diversos entre si, ganharam corpo”, escreve Fábio de Souza Andrade.

Ora, se retomo aqui essas considerações sobre a peça de Beckett é porque algo se desdobra desde a sua resistente, sua tensa opacidade. Ou seja, nesse remoto sentido que ela mobiliza, eu diria que algo pode ser endereçado ao sentido deste nosso presente remoto – um presente que, como Godot, parece ausente.

A seu modo, Esperando Godot chama atenção para a exigência de um trabalho rigoroso com a linguagem, para que possamos ser capazes de, com ela – isto é, com as técnicas, com as artes –, não meramente representar as coisas já postas ou impostas no mundo, em direção a um fim previsto; mas sim, e principalmente, para que sejamos capazes de apresentar pensamentos, alternativas, saídas imprevistas. Ou seja, a espera nos interroga a respeito das nossas possibilidades de fazer sentido, de criar sentido para a existência em comum, diante da ausência de um sentido primeiro ou último. De outro modo, naturalizando o que está posto ou delegando a saída desta crise ao futuro, a qualquer líder ou poder transcendente, nada alcançaremos – a não ser o papel de sujeitos repetidores de palavras e gestos maquínicos, no limite, sujeitos assujeitados pela violência da história num presente sem devir.

Como um chamado, a espera – a ausência nos interroga. Como elaboraremos coletivamente este nosso agora a rigor tão precário e absurdo; este hoje tão atomizado e esgarçado, padronizado por rotinas maquínicas, algoritmos e o infinito dos dados; este presente coberto de luto e de incontáveis vidas pauperizadas; enfim, este mundo quase desértico, de incessantes riscos para a construção de uma existência em comum? Que linguagem dará conta desse trabalho? Quais palavras, quais imagens e cenas serão exigentes o bastante para a criação de uma experiência tão próxima do grau zero em que parecemos viver? Muitas vezes interpretada como pessimista, a peça nos mostra, a seu modo, que sair de cena não é a solução, já que, se nada acontece, ainda assim há a cena, uma e outra vez; vale dizer, há o endereçamento, a reivindicação insistente do outro:

“VLADIMIR: Então, vamos embora.
ESTRAGON: Vamos lá.

Não se mexem
Cortina.

Artur de Vargas Giorgi é professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)


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