Do fuzilamento do companheiro Danilo Gentili, o infame apologista da pedofilia

Do fuzilamento do companheiro Danilo Gentili, o infame apologista da pedofilia

 

Essa não é a primeira vez que falo sobre Danilo Gentili. Quando comecei a acompanhar sistematicamente a direita conservadora brasileira em ambientes digitais, por volta de 2012, ele já era um sucesso. Tanto no mundo do espetáculo como na televisão e nos ambientes digitais.

O seu público gostava da figura irreverente da comédia stand-up que ficou famosa por entrevistar celebridades, inclusive políticas, com aquela intimidade sem cerimônia nem limites, com perguntas que quanto mais embaraçosas e constrangedoras fossem mais sucesso faziam.

Danilo era um dos talentos emergentes de uma estética da irreverência grosseira e de uma atitude iconoclasta e afrontosa, típica de uma geração que se formou no dialeto do ambiente digital, e que, em outro artigo publicado na Cult em 2018, eu descrevia assim:

Esta é a geração que busca diversão, como qualquer outra, mas por meio de um tipo mais duro e competitivo de graça, baseada em escárnio, derrisão, zombaria. É a geração da troça, da zoeira, em que ser um bem-sucedido zoeiro é praticamente uma distinção social, sinal de rapidez de raciocínio e de irreverência. O herói dessa geração é o sujeito de raciocínio afiado, de irreverência pungente e de respostas desarmantes, que consegue deixar sem palavras os outros com que interage em uma espécie de competição permanente de espirituosidade. O herói da zoeira é o mito; a fala irresistível e fatal é a lacração, a humilhação, a mitada; o competidor que ficou desarmado e sem reação sofreu uma fatality. É lixo! O universo narrativo nerd, geek que explica essas coisas vem do mundo dos vídeos e dos games e se imortalizam em memes, esses conteúdos em que se fixam e condensam ideias e eventos da torrente das mídias sociais.

Danilo se destaca em um momento em que o culto da irreverência e do desrespeito como forma calculada de desafio ao que denominavam “politicamente correto”, às convenções da política identitária e ao bom-mocismo progressista, estava se transformando fortemente no Brasil em atitude política. Afinal, como a nova esquerda havia ensinado, tudo é política, inclusive a atitude afrontosa que se adotava.

Em 2014, na primeira vez em que tabulei os perfis da nova direita, lá estava, à frente de todos, um comediante, o próprio Danilo. Naquele momento, era seguido no Twitter por 9,8 milhões de pessoas, Jair Bolsonaro, por 67,7 mil. Foi Danilo quem fez a ponte entre os fãs do CQC, do universo geek digital da thug life e o mundo da política que luta por mandatos. Ele foi de fato o João Batista que preparou os caminhos de Bolsonaro para esse público.

Entre 2014 e 2018, assistimos à convergência de quatro grupos que vão constituir a direita radical e conservadora e desaguar em Bolsonaro, depois que as alternativas representadas por Marco Feliciano e Eduardo Cunha se revelaram impraticáveis:

  1. A turma contra políticas sociais, direitos humanos, ações afirmativas e, principalmente, contra a ameaça comunista;
  2. Um conjunto de grupos contra reivindicações de direitos e de reconhecimento de minorias, contra o aborto, pela criminalização das drogas, em defesa de um modelo de família e/ou com simpatias pela teocracia e pelo fundamentalismo;
  3. Um pessoal que considerava que a sua missão política era varrer o PT da face da Terra;
  4. Os que consideram que os militares deveriam reassumir o poder no país.

Gentili era da turma do antipetismo radical, mas também frequentava, no segundo grupo, a galera contra o politicamente correto e pelo direito de atacar minorias e de afrontar a autocontenção dos progressistas. E essa foi uma porta de entrada importante que despejou um grande volume de público no bolsonarismo, parte da sua força de trabalho nos ambientes digitais e certamente uma contribuição decisiva para a vitória nas urnas em 2018.

Na primeira vez em que escrevi sobre Danilo Gentili, em abril de 2019, ele acabara de receber uma condenação na Justiça por suas inúmeras ofensas à deputada Maria do Rosário, escolhida pelo bolsonarismo e pela tribo dos lacradores do humor ogro como vítima preferida, desde o episódio grotesco de ofensa de Jair Bolsonaro à sua colega da Câmara dos Deputados em 2003. Na ocasião da condenação de Danilo, um solícito Bolsonaro fez questão de publicar:

Me solidarizo com o apresentador e comediante @DaniloGentili ao exercer seu direito de livre expressão e sua profissão, da qual, por vezes, eu mesmo sou alvo, mas compreendo que são piadas e faz parte do jogo, algo que infelizmente vale para uns e não para outros.

Por anos, Danilo e o bolsonarismo viveram em simbiose. Danilo era o herói da irreverência que investia contra o politicamente correto; Bolsonaro o mito afrontoso que atacava todas as convenções progressistas, e tanto arremetia contra o politicamente correto que lavrou o propósito de desacatá-lo na terceira sentença do seu discurso de posse. Quando contestado por sua atitude e o seu humor grosso, Danilo se tornava o arauto da liberdade de expressão, da liberdade artística e dos direitos de incorreção que cabem ao humorista em uma sociedade liberal. O mesmo valhacouto a que recorria Bolsonaro quando era repreendido por suas grosserias e desrespeitos.

Até maio de 2019, tudo andava bem. O humorista recebeu Bolsonaro no The Noite, o seu talk show, e ronronou acolhedor e amigável. No máximo rolou uma “zoeira bróder”, coisa de quem se quer bem. Um ano depois, as coisas haviam azedado. Em julho de 2020, Danilo publicou que Bolsonaro teria ido à SBT pedir a sua cabeça quando ele criticou o fundão eleitoral. Chamou-o de psicopata. No ano seguinte, Danilo já devia estar em outra canoa, pois em abril de 2021 o MBL chegou a discutir a sua candidatura à presidência da República. Moro aplaudiu.

Esta semana tivemos um lance derradeiro dessa ruptura, a conversão do amigo em inimigo. Um deputado estadual do Ceará, orgulhoso jovem “conservador, bolsonarista e armamentista”, como se define, eleito com apenas 20 anos em 2018, e que também emergiu para a fama com vídeos humorísticos publicados em mídias digitais pelo impeachment e a favor de Bolsonaro, abriu fogo pesado contra Danilo Gentili. A acusação, vejam só, é dirigida a um filme de Danilo Gentili de 2017, baseado em livro publicado em 2009. O livro é da época em que Danilo era adorado pelo protobolsonarismo da geração lacradora e politicamente incorreta e não foi criticado. O filme foi lançado quando Danilo conduzia multidões da sua fanbase para o bolsonarismo e muito bolsonarista graúdo o elogiou com entusiasmo. O bolsonarismo precisou de 13 anos do livro e 5 anos do filme para descobrir que a história que adoraram era perversa e reprovável, vejam só.

Reprovável é pouco. André Fernandes, o Danilo cearense, acusa o filme de nada menos que fazer apologia à pedofilia. No campo ultraconservador, a acusação de pedofilia é a condenação final e mais eficiente. Não há recursos nem alegações, o pedófilo e o apologista precisam ser punido com urgência. No caso da alegação de pedofilia, a censura é a primeira providência a ser tomada.

O filme é ruim para o meu gosto, como a maioria das coisas dessa estética da grossura, mas não há nele o menor sinal de defesa da pedofilia ou de incentivo a ela. Isso não importa, porém, considerando que os bolsonaristas em geral não entendem a diferença entre mostrar algo e induzir as pessoas a praticá-lo. O importante, para eles, é correr rapidamente para proibir, punir, censurar. A defesa da liberdade da expressão, ainda há pouco um bastião inviolável, a pedra fundamental do edifício politicamente incorreto, agora pode ser removida sem o menor perigo. Pois, afinal, a proteção das criancinhas inocentes é o valor supremo.

Foi assim que o bróder da estética da irreverência é agora um apologista da pedofilia, o parceiro da luta contra a política e os governos autoritários, agora terá contra si a mão pesada do Estado. Bolsonaro determinou que o Ministério da Justiça censure o filme. Imediatamente, o ministro comandado mudou a classificação indicativa da obra e tentou fazer com a que a Netflix e a GloboPlay o retirassem do seu catálogo. Outros bolsonaristas, como Marco Feliciano, correram para apagar posts em que elogiaram o filme do amigão em 2017, agora que ele entrou na lista negra da seita.

Além do padrão da acusação, há também a repetição da fórmula para a destruição dos ex-parceiros e dissidentes. Como Hitler e Stálin o fizeram, o dissidente precisa ser destruído antes de tudo moralmente para que uma autorização ao ódio eticamente motivado seja emitida. Sim, o companheiro Danilo deve ser punido, não porque não gosta mais de nós, mas porque descobrimos coisas horríveis no seu passado: convivíamos com alguém que incentivava o abuso sexual de crianças e a sexualização precoce dos infantes e nem nos demos conta. Agora que descobrimos a abominação, que seja excomungado e punido.

Moro, tratado como traidor e aproveitador, embora tenha sido uma peça fundamental da vitória de Bolsonaro, é um desses casos. O MBL atacado pelo bolsonarismo, por, vejam só, apologia ao nazismo e por desrespeito às mulheres, é outro. O bolsonarismo se desfaz dos dissidentes que foram fundamentais para a sua vitória revolucionária, transformando-os em inimigos, tratando-os como uma espécie de monturo moral para, enfim, colocá-los no paredão a fim de que sejam fuzilados pelos seus Guerreiros da Justiça. Um roteiro muito conhecido.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes


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