Fome coletiva por nossa história escondida
(Arte Revista CULT)
Memórias da plantação, de Grada Kilomba, foi o livro mais vendido na livraria oficial da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, em 2019. Não é pouca coisa celebrar, pelo segundo ano consecutivo, uma mulher negra como autora mais vendida na festa literária mais importante do país. E, além da autoria, é importante atentar para o conteúdo da publicação.
Editado pela primeira vez na Alemanha, em 2008, o livro, escrito em inglês, é fruto da tese de doutorado em filosofia de Grada, defendida na Freie Universität Berlin. Nele, são apresentadas análises de episódios de racismo cotidiano, partindo da ideia de bell hooks de que a história pode “ser interrompida, apropriada e transformada através da prática artística e literária”.
Ao apresentar relatos de discriminação racial sofridos por Grada e mais duas mulheres negras que entrevistou, a autora propõe uma atualização do trauma do passado escravocrata. Assim, o racismo cotidiano teria cronologia atemporal: o presente estaria constantemente assombrado pelo passado invasivo da escravidão.
Na perspectiva de Grada, cada vez que uma vizinha ou um vizinho do prédio onde vivo faz questão de perguntar em que apartamento eu trabalho como empregada doméstica – já que não lhes parece possível que uma mulher negra seja moradora do mesmo prédio de apartamentos que eles –, atualiza-se o projeto colonial de que determinados lugares não são para determinadas pessoas.
Até pouco tempo atrás, era uníssona no Brasil a ideia de uma democracia racial. Um processo de negação, como Grada demonstra também na instalação The Dictionary, em exibição na Pinacoteca de São Paulo até 30 de setembro. Depois da negação, viriam culpa, vergonha e reconhecimento, para então ser possível a necessária reparação do que foi a escravização de pessoas negras.
Enquanto algumas pessoas, entre elas o presidente da República, seguem no processo de negação do que foi o regime escravocrata no Brasil e do racismo estruturante que vivemos, há muitas outras pessoas brancas em processo de culpa, vergonha ou reconhecimento da nossa tragédia. Não vejo a hora de falarmos seriamente sobre reparação.
Grada conta que inúmeras vezes é acusada de excesso de subjetividade, como se não produzisse teoria séria o bastante para os parâmetros da academia. Sobre isso, argumenta que qualquer forma de saber que não se enquadra na ordem eurocêntrica de conhecimento tem sido rejeitada, sob o argumento de não constituir ciência. Uma das facetas do epistemicídio de que trata Sueli Carneiro em sua tese de doutorado: “(…) o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva; pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhes a razão, a condição para alcançar o conhecimento ‘legítimo’ ou ‘legitimado’”.
Acessar educação de qualidade, firmar uma autoestima da própria capacidade intelectual, valorizar conhecimentos variados de pessoas negras seriam, portanto, passos importantes para barrar tal epistemicídio. Para Grada – e concordo totalmente –, a escrita de mulheres negras é uma estratégia potente de descolonização. Pela escrita em si: “(…) enquanto escrevo, e me torno a narradora e a escritora da minha própria realidade, a autora e a autoridade na minha própria história. Nesse sentido, eu me torno a oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou”. Mas também pela possibilidade de valorização e reconhecimento desta escrita, colocando as mulheres negras como sujeitos cognoscentes, produtoras de conhecimento legítimo e legitimado. Escrever possibilitou que Grada se opusesse ao projeto colonial: multiartista internacionalmente reconhecida, apesar de filha de trabalhadora doméstica.
Memórias da plantação ser o livro mais vendido da Flip coloca um tijolo importante na árdua construção de mulheres negras como produtoras de conhecimento.
Coletivo de vozes
Inspirada por Grada Kilomba, bell hooks, Sueli Carneiro e uma série de outras intelectuais negras que têm traçado um mesmo percurso coletivo de ampliação e disseminação de nossas vozes, organizei a antologia Vozes insurgentes de mulheres negras: do século XVII à primeira década do século XXI, publicada pela Mazza Edições e pela Fundação Rosa Luxemburgo e disponível de forma gratuita e aberta na internet. A obra inclui 24 textos de mulheres negras brasileiras: carta, trecho de romance, artigos de jornal, diários, letras de música, ensaios, artigos acadêmicos, conto, crônica, discurso, poema, entrevista.
A intenção foi reunir, em um único volume, vozes de mulheres que romperam com o silenciamento que lhes foi imposto, primeiro pela condição de escravizadas, depois pelo colonialismo, pelo racismo, pelo sexismo, pelas discriminações e pela desigualdade de classes. Acredito que publicar, ler e estudar a produção intelectual dessas mulheres crie novas epistemologias, valorizando o conhecimento produzido por elas e também as valorizando, individual e coletivamente, como sujeitos de conhecimento. Uma oportunidade de adensar raízes para nos fortalecer diante do trauma da escravidão, mas também para avançar da negação e da culpa rumo ao reconhecimento e à esperada reparação.
Esperança Garcia. Maria Firmina dos Reis. Antonieta de Barros. Eunice Cunha. Maria de Lurdes Vale Nascimento. Laudelina de Campos Mello. Carolina Maria de Jesus. Neusa Maria Pereira. Leci Brandão. Dona Ivone Lara. Lélia Gonzalez. Mãe Stella de Oxóssi. Jovelina Pérola Negra. Beatriz Nascimento. Benedita da Silva. Luiza Bairros. Elisa Lucinda. Nilma Bentes. Sueli Carneiro. Cida Bento. Jurema Werneck. Matilde Ribeiro. Cidinha da Silva. Conceição Evaristo. Mulheres que utilizaram, e utilizam, a escrita como possibilidade de serem autoras e autoridades de suas próprias vidas, mas também do pensamento social brasileiro. Oposições absolutas do que o projeto colonial predeterminou.
Mais que reconhecimento da importância desses escritos, vivemos um momento de fome coletiva por essas histórias. Que a fome crie cada vez mais oportunidades de publicação e coloque cada vez mais pessoas negras nas listas de autoras e autores mais vendidos.
Quantas mulheres negras você já leu?