Experiência em palimpsesto
Foto: Helena Wolfenson
“Como o Sol, Senhor, a loucura tem sua órbita”.
(palavras do Bobo em Noite de reis, de William Shakespeare)
O experimento lenz, um outro, do recém-formado coletivo teatral 28 Patas Furiosas, baseado na novela Lenz, de Georg Büchner – em cartaz até o dia 4 de maio na sede do grupo, o Espaço 28 –, configura uma criação dramatúrgica e cênica sob a forma de um palimpsesto, nome pelo qual são chamados aqueles papiros ou pergaminhos cujos textos primitivos foram raspados para dar lugar a outros. Isto é, a fim de poder usufruir plenamente a fremente experiência sensorial e intelectual proposta pelo grupo, o espectador deverá estar atento às camadas sucessivas de significação sobre as quais o espetáculo está construído.
Com dramaturgia de Tadeu Renato e direção de Wagner Antônio, a peça trata da vida do poeta e dramaturgo alemão Jakob Lenz (1751-1792), um dos principais nomes do Sturm und Drang, o movimento pré-romântico de caráter revolucionário que tomou de assalto a Alemanha na segunda metade do século XVIII, do qual fizeram parte também Goethe e Schiller. Segundo Otto Maria Carpeaux em sua monumental História da literatura ocidental, a expressão Sturm und Drang (traduzida correntemente em português como “Tempestade e Ímpeto”) comporta igualmente as noções de “angústia e entusiasmo” e “ânsia e explosão”, conceitos esses bastante afinados com a experiência cênica criada pelo grupo. Batizado com o nome da peça de teatro homônima, escrita por Maximilian Klinger, o Sturm und Drang desenvolveu-se entre 1770 e 1785, tendo por base o culto da poesia popular e das ideias de revolução defendidas por Jean-Jacques Rousseau. Afirma Carpeaux que os sturmers tinham a pretensão de derrubar a literatura e a sociedade do ancien régime, utilizando-se do conceito do “gênio”: “Os jovens criaram uma ‘religião do gênio’. A identificação entre gênio poético e gênio popular foi interpretada de maneira revolucionária. ‘Gênio’ é consequência de uma inspiração, sem consideração das diferenças sociais; o gênio confere a nobreza a qualquer homem bem dotado, mesmo das classes médias ou baixas da sociedade. (…) Os conceitos de ‘gênio’ e ‘herói’ misturam-se, confundem-se: o herói é considerado como gênio das épocas e nações primitivas – e primitivismo é palavra de ordem do século – que reage contra os requintes da civilização aristocrática, assim como o plebeu Rousseau reagiu contra os salões de Paris”.
Pois bem, um dos gênios do Sturm und Drang foi Jakob Lenz. Um gênio malogrado, a bem da verdade, porque teria passado à história como um dos maiores escritores da língua alemã (rivalizando, segundo alguns críticos, com o próprio Goethe), não tivesse seu enorme talento sido encoberto pelo manto da loucura. Além de ter produzido uma contundente poesia lírica, Lenz escreveu dois dramas – O preceptor e Os soldados – cuja emoção exaltada, desdobrada em um enérgico ataque à política e à mentalidade do Setecentos, conferiu a ele a posição de um dos predecessores do moderno teatro alemão. (A obra de Bertolt Brecht, por exemplo, é claramente tributária dessa dramaturgia).
Cerca de quatro décadas depois de Lenz ter sido encontrado morto em uma rua de Moscou, vítima da doença psíquica que corroeu seus últimos quinze anos de vida, o jovem dramaturgo Georg Büchner – outro gênio inequívoco da cultura teutônica – dedicou-lhe uma belíssima novela, que alguns entendem como inacabada, em virtude de seu caráter fragmentário. Em Lenz, Büchner mimetiza o estilo de seu predecessor, a fim de, por meio da narrativa da vida do poeta infeliz, afirmar sua crença na essência da poesia genuína – a última das boias de sentido à qual o homem pode se apegar se quiser reencontrar sua verdadeira natureza humana.
Traduzida para o português com muito brio e sensibilidade por Jacob Guinsburg e Ingrid Dormien Koudela, a breve novela Lenz, de apenas vinte e três páginas (que integra o precioso volume Büchner, na pena e na cena, organizado por ambos os tradutores), concentra sua ação nas conversas do poeta com Oberlin, o pastor que lhe oferece uma calorosa acolhida no vilarejo de Waldbach, e com Christoph Kaufmann, um amigo que ali lhe faz companhia por algum tempo.
A primeira camada do experimento cênico repousa na figura atormentada de Lenz – um autêntico representante da ideia de alteridade, noção que adquire centralidade e relevância ontológica na filosofia moderna e, especialmente, na filosofia contemporânea. Aos integrantes do coletivo parece interessar discutir em que condições a experiência do “eu” converte-se na experiência do “outro”. Desse modo, a afecção nervosa que acomete Lenz (possivelmente, um surto esquizofrênico) não é lida como uma patologia e, sim, como a manifestação de um irracionalismo que leva o sujeito a querer ser “o outro” – isto é, uma diferença que se opõe a qualquer forma de identidade e evidência, segundo a gramatologia de Jacques Derrida.
Mas há uma segunda camada sobre a qual se assenta também a experiência do grupo 28 Patas Furiosas: a do discurso lírico-épico que o dramaturgo Georg Büchner concebeu sobre a figura de Lenz – discurso esse revolucionário à época (a obra do autor rompeu com a tradição clássica ao mesmo tempo em que recusava a idealização romântica) e ainda nosso contemporâneo: o vazio de sentido no mundo e o mergulho na alma de seres solitários são provas cabais da atualidade de Büchner.
Por fim, há uma terceira camada que essa autêntica experiência em palimpsesto propõe: a da dramaturgia aberta, que tende ao épico, intrínseca ao espetáculo. Se Heiner Müller vislumbrou na “novela inacabada” de Büchner a adoção consciente de uma perspectiva de espanto e não simplesmente a ocorrência de um problema estrutural, podemos afirmar que a mesma forma de percepção inovadora também é adotada por lenz, um outro. O experimento propõe ao espectador que a figura histórica do poeta infeliz, já de saída diluída pelas pinceladas que lhe conferem as tintas do ocaso da razão, seja também percebida de forma fragmentária e experimental, como é do desejo do teatro pós-dramático praticado nos dias de hoje. Assim, os personagens Lenz, Oberlin e Kaufmann da novela original convivem com tipos inominados e com um ator-narrador na articulada colagem de cenas e de linguagens que a dramaturgia e a encenação conceberam. (Cumpre notar que a imagem do palimpsesto me foi sugerida pela leitura do texto “A fricção do real”, no qual a pesquisadora Fátima Saadi analisou em 2003 o espetáculo Woyzeck, o brasileiro, que, dirigido por Cibele Forjaz, empreendia uma leitura assaz contemporânea do drama de Georg Büchner).
Os seis atores fixos em cena estão muito bem (além deles, a cada sessão um intérprete que não faz parte do grupo é especialmente convidado a, às cegas, participar de uma das cenas do espetáculo), conferindo a suas atuações a densidade e a expressividade necessárias a uma empreitada ousada como essa. A angústia e a ânsia vividas tanto por Lenz como por Oberlin (ele também em crise com suas próprias convicções religiosas) são constantemente temperadas pelo entusiasmo e pela explosão de energia criativa que irrompe aqui e ali. O coletivo 28 Patas Furiosas vive no espetáculo, como autorizam a juventude de seus integrantes e a particular condição de brasilidade que lhes é inerente, seu momento de tempestade e ímpeto, cultivando a emoção exacerbada e exaltando a passionalidade, a fantasia e a sensibilidade.
A arquitetura da casa onde ocorre o espetáculo (o Espaço 28, originalmente um bar na Vila Clementino, reformado e readaptado pelo grupo para servir de ateliê e espaço cultural de múltiplos usos) favorece bastante o clima intimista, de convocação à interioridade, que emana da experiência. Os materiais cenográficos contribuem por sua vez para a instauração de uma atmosfera de dissolução e o obsolescência – das coisas, dos homens e dos seres. O chão forrado de papelão, os carrinhos de supermercado, uma porta antiga que serve também como a borda do poço cujas águas, de tempos em tempos, devolvem a Lenz sua consciência e outros pequenos objetos prosaicos e caseiros sugerem, ora a banalidade da vida, ora a brutalidade da existência.
Após os cerca de noventa minutos que dura o espetáculo, o espectador pode sair da casa tocado pelas várias camadas incrustadas diligentemente nesse papiro cênico. A desrazão de Lenz talvez lhe sirva de antídoto ao culto exacerbado que o Ocidente presta ao ego, mascarado pelas insidiosas ideias de singularidade e satisfação. Quem sabe a visão de mundo de Büchner também não o contamine: a defesa da liberdade deve ser dirigida sempre contra a razão abstrata e a opressão social. Por fim, a inquietação e a energia irrefreável que esses criadores em início de carreira imprimem à aventura podem ainda fazer, porventura, o público usufruir de alguns belos momentos líricos – tributários daquela poesia do inefável que costuma tocar a fronte dos loucos, dos inconformados, dos desajustados e também de alguns jovens artistas.
Lenz, um outro
Onde: Espaço 28 – Rua Dr. Bacelar, 1219 – Vila Clementino
Quando: até 4 de maio – sábados e domingos às 19h
Quanto: R$30
Info.: (11) 94835-6395
welingtonandrade@revistacult.com.br