Estética e as Artes Plásticas

Estética e as Artes Plásticas

Belo e sublime: da representação ideal da natureza a uma arte que se realiza na recepção do espectador

Claudia Valladão de Mattos

Ainda que, hoje, o termo “estética” seja em geral aplicado para designar a sub-área da filosofia que se dedica ao estudo do fenômeno artístico e à formulação de uma teoria geral das artes, a Estética, em sentido estrito, é uma disciplina que nasceu no século 18, intimamente associada ao surgimento da concepção de indivíduo moderno. Seu campo de investigação constituiu-se a partir da consciência que se desenvolveu naquele período a respeito da posição singular ocupada por cada sujeito em relação ao mundo e, portanto, da necessidade de conhecer os caminhos que levariam da percepção individual e singular sobre o mundo sensível (seu aspecto harmonioso ou dissonante, por exemplo) à construção de conceitos universais, tais como os de belo, sublime, grotesco, entre outros, que formariam a base para um julgamento seguro sobre a arte. Nesse sentido, podemos dizer que a fundação da Estética, no século 18, significou uma virada da teoria da arte, do campo da investigação sobre a relação da obra com seu modelo, isto é, do campo da teoria da mímesis, para o campo da recepção da obra pelo espectador. 

Aqui analisarei as mudanças que a virada em direção às teorias da recepção, ocorrida no século 18, provocou no campo das artes visuais, tentando mostrar como ela contribuiu para a desconstrução do edifício conceitual que sustentava a produção artística, desde o Renascimento, abrindo caminho para os desenvolvimentos ocorridos no campo das artes plásticas nos séculos seguintes. Em seguida, farei algumas observações sobre a relação entre Estética, Crítica de Arte e História da Arte, do século 19 à contemporaneidade. 

A Teoria da Arte, tal como ela foi pensada desde o Renascimento, nasceu a partir da herança da retórica clássica. Seus principais pilares de sustentação eram: 1) a idéia de mímesis, ou o princípio de que as artes visavam à imitação do mundo natural; 2) a pressuposição de uma traduzibilidade entre as diferentes artes e 3) a exigência de idealização, o que de certa forma reorientava o preceito da mimesis em direção à imitação, não da natureza sensível, mas do seu ideal. Decorria daí uma hierarquia de gêneros, que situava a obra histórica como o mais elevado gênero da arte e uma prevalência do desenho (associado à razão) em oposição à cor (associada aos sentimentos). No século 17, momento de consolidação desse edifício teórico no contexto de fundação da Academia Francesa, o artista Nicolas Poussin tornou-se o grande modelo para a arte. 

De uma forma geral, a arte barroca seguiu esses mesmos princípios, porém sua insistência na arte como instrumento de conversão deslocou pela primeira vez o espectador (no caso, os fiéis) para o centro do discurso sobre arte. A cor, tradicionalmente associada aos sentimentos, ganhou novo valor nesse contexto. Na França a disputa entre Clássico e Barroco concretizou-se na famosa querelle, ou disputa, entre os defensores de Poussin, de um lado, e de Rubens, de outro. Um personagem de destaque nesse contexto, assíduo defensor da arte de Rubens, foi o teórico da arte Roger de Piles. Seu livro Cours de peinture par príncipes, publicado em 1708, pode ser visto como um marco importante no caminho que levou ao surgimento da Estética como campo autônomo do conhecimento. No livro, deixando qualquer função religiosa da arte de lado, Roger de Piles postulava que a qualidade de uma pintura não dependia do tema adotado, mas sim do efeito que produzia sobre o espectador. Em 1699, Roger de Piles foi nomeado conselheiro honorário da Academia, provocando uma importante mudança de rumos na instituição e contribuindo para o surgimento do estilo conhecido como rococó francês, representado por artistas como Boucher, Watteau e Fragonard. 

Roger de Piles é sem dúvida um precedente importante para os primeiros teóricos da Estética, porém falta em seus escritos uma teoria da percepção que se centre na relação do espectador com a obra. Essa mudança de perspectiva ocorreria apenas uns 50 anos mais tarde. 

Alexander Baumgarten pode ser considerado o fundador da Estética. Seu livro que traz esse título foi publicado em 1750 e dedica-se a desenvolver uma filosofia da faculdade de sentir, investigando como a sensibilidade pode levar à produção de conhecimento. Apesar da importância de Baumgarten como fundador de um novo campo de conhecimento, seu pensamento não teve um impacto direto sobre a produção artística. No entanto, ele preparou o terreno para uma série de outros filósofos que dialogaram de perto com as artes plásticas, impulsionando uma verdadeira “revolução” nesse campo. 

Na Inglaterra, Edmond Burke foi talvez o teórico dessa nova abordagem que maior influência teve sobre os rumos das artes plásticas na segunda metade do século 18. Em seu livro Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo, Burke propõe um modelo quantitativo para o funcionamento de nosso aparato psíquico, que lhe permite diferenciar duas formas de prazer estético: os sentimentos do belo e do sublime. Enquanto que o belo diria respeito a objetos passíveis de representação, o sublime estaria relacionado a objetos não-representáveis e que, portanto, sobrecarregariam o nosso aparato psíquico, ameaçando sua estrutura. As representações das idéias de Deus, de infinito, ou de morte, por exemplo, poderiam ser associadas a esta última categoria, sendo capazes de gerar um sentimento sublime. 

A idéia de que uma representação poderia servir de meio para gerar determinados sentimentos no espectador abriu novas portas para a arte. O pintor alemão Caspar David Friedrich, por exemplo, passou a usar a paisagem como veículo para transmissão de seus sentimentos religiosos e nacionalistas, deixando de ver a arte como imitação da natureza para fazer dela o veículo de transmissão de um sentimento interior. Da mesma forma, as últimas obras de William Turner são marcadas pela evocação de sentimentos sublimes, à maneira descrita por Burke. 

É importante notar o papel ativo que o espectador adquire no processo de construção da imagem, para essas novas teorias estéticas. De acordo com Burke, o efeito do sublime dependeria em grande parte da imaginação do espectador, de sua capacidade de se pôr no lugar do outro nesse jogo da arte. A imaginação se tornará ao longo da segunda metade do século 18 um campo importante de investigação estética, e estará no centro de várias teorias do período. Ela ocupa um papel fundamental também para Denis Diderot, considerado por muitos o pai da Crítica de Arte. Em suas críticas de salão, Diderot desenvolveu critérios para o julgamento da qualidade de uma obra de arte, calcados em sua própria experiência de espectador. A análise do efeito da obra sobre si mesmo tornou-se para ele a medida de sua qualidade. A função da arte deveria ser a de iludir completamente o espectador e fazer com que este, diante de um quadro, por exemplo, acredite se encontrar diante da própria natureza. 

A imaginação também foi colocada a serviço da recuperação da Antiguidade na obra do teórico alemão Winckelmann. Em seus escritos, ele pregava a imitação dos antigos como caminho para a renovação da arte no presente, e desenvolveu um método de descrição de obras de arte que visava à enargea, isto é, a tornar a obra viva diante dos olhos do observador. Nesse contexto, é interessante lembrar da grande popularidade do mito de Pigmalião e Galatéa naquele período. A teoria estética de Winckelmann teve uma importância enorme para a estruturação do ambiente neoclássico em toda Europa. Várias gerações de artistas, de Mengs a Jacques-Louis David e Ingres (passando inclusive por artistas de nossa Academia de Belas Artes no Rio de Janeiro), formaram-se sob a autoridade de suas idéias. 

O caráter sensualista que marcou a produção estética ao longo da segunda metade do século 18 encontrou uma reformulação no conceito de interessenlose Wohlgefallen (prazer desinteressado) de Immanuel Kant. Com seu formalismo, Kant tentou minimizar a importância das forças irracionais, antes tão valorizadas por teóricos como Burke. As idéias de Kant tiveram muita importância para teóricos e artistas neoclássicos do fim do século 18 e início do 19, especialmente na Alemanha. Os escritos de Kant levaram, por exemplo, a uma interpretação mais formal do ideal grego proposto por Winckelmann, desvalorizando seu conceito de graça a favor da idéia de uma beleza sublime, quase desmaterializada. Carl Ludwig Fernow, por exemplo, fará duras críticas ao escultor Antonio Canova, devido ao excesso de graça que ele impunha a seus trabalhos, valorizando, em contrapartida, as obras de Berthel Thorvaldsen. Tal tendência formalista será retomada no século 19 por teóricos como Conrad Fiedler e por artistas-teóricos como Adolf von Hildebrand e Hans von Marées. 

Nas últimas décadas do século 19 a História da Arte surge como um campo autônomo de conhecimento. Assim como a Crítica de Arte, a História da Arte possui muito em comum com a Estética, tornando fluidas as fronteiras entre essas disciplinas. Se no século 19 a História da Arte conseguiu afirmar-se por meio de seus métodos positivistas, provocando a crítica de teóricos da Estética como Benedetto Croce, que estava à busca da especificidade do artístico, o limite entre os três campos tornou-se, ao longo do tempo, cada vez mais tênue. Já no início do século 20 nos deparamos com historiadores da arte, como Aby Warburg, que almejavam construir uma teoria geral da imagem, postando-se entre as duas disciplinas. Hoje a situação não é diferente. Especialmente no campo da arte contemporânea, os papeis de crítico, historiador e teórico da Estética freqüentemente se confundem. Didi-Huberman e Arthur Danto são filósofos que se tornaram referência no campo da história da arte e da crítica, ao passo que um autor como Hans Belting faz o caminho inverso, partindo da história da arte em direção ao campo da Estética. Essas aproximações foram provavelmente também responsáveis pela ampliação do conceito de Estética, que hoje ultrapassa em muito o uso restrito que o termo possuía no século 18. 

Claudia Valladão de Mattos
é professora de História da Arte no Instituto de Artes da Unicamp

(1) Comentário

  1. Boa tarde.
    Parabéns!
    O seu texto está excelente Claudia Valladão de Mattos.
    No entanto, teria um valor acrescido e um incremento de credibilidade se fossem indicadas as imensas fontes que foram certamente consultadas e muito bem enquadradas.
    Bem haja!
    Rute Vaz

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