A estética do liso e seu potencial patogênico: Pele, beleza e morte

A estética do liso e seu potencial patogênico: Pele, beleza e morte

.

Há uma escalada da morte. E o corpo, vivo, sente-se ameaçado. Pior: o corpo vivo encontra-se atualmente invisível. O diagnóstico é do escritor e pensador alemão Dietmar Kamper. Se cada época e cultura impõe ao corpo certas enfermidades fundamentais, eis um padecimento inerente aos nossos dias: a deslumbrada obsessão pelas imagens. E a imagem, continua Kamper em seu livro Mudança de horizonte (Editora Paulus, 2016), sedia a morte.

A paixão pelas imagens do corpo (ou pela própria imagem) alcançou proporções gigantescas. Na transmutação corpo-imagem, o criador (corpo real) não aceita que sua forma não se assemelhe à criatura (imagens midiáticas em circulação). Na tentativa de moldar a constituição física e transmutá-la em imagens de corpos perfeitamente delineados, a humanidade tem recorrido a todo tipo de procedimento. As possibilidades de remodelação são inúmeras: cosméticos, exercícios, dietas, procedimentos estéticos, cirurgias plásticas… Há, ainda, o uso deturpado de medicamentos que, destinados ao tratamento de doenças específicas, acabam por emagrecer o usuário. A morte do empresário Henrique Silva Chagas após ser submetido a um peeling de fenol, no último dia 3 de junho, reacende a discussão: quais aspectos estão subjacentes à busca cada vez mais incessante pelas metamorfoses corporais? Um fenômeno complexo não permite uma resposta única. Seria reducionista elencar um único cenário; tampouco esgotar o tema em um único momento ou escrita. Para investigar as motivações da “autotransfiguração”, mobilizo, aqui, dois conceitos estéticos. Vejamos.

Recentemente, o retorno de modas dos anos 2000, como calças com cintura baixa, tem estimulado o debate sobre a extrema magreza. As redes sociais estão repletas de celebridades desfilando silhuetas extremamente magras associadas à beleza, alegria, sucesso, felicidade, sensualidade e jovialidade. Outros formatos corporais parecem ser silenciados e, inclusive, ridicularizados. Para a nutricionista Sophie Deram, os critérios de beleza vigentes são muito diferentes dos de antigamente, quando um corpo feminino mais cheio era sinônimo de beleza, saúde e força, um sinal de que a mulher, notadamente a mais jovem, podia ter uma boa gravidez e filhos saudáveis. “Agora, a magreza é cada vez mais valorizada”, pondera ela em O peso das dietas (Editora Sensus, 2014).

Esse design corporal sem resquícios de gordura constitui o que os franceses Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (A estetização do mundo, Companhia das Letras, 2015) denominam “estética da magreza”. Fruto de um entrelaçamento entre o avanço do mercado de cosméticos a uma obsessão narcísica, a valorização da magreza é algo presente em todas as camadas sociais e em todas as idades. Para os franceses, a democratização da cirurgia estética e suas práticas para eliminar gordura pode ser vista como um novo Eldorado do capitalismo.

A estética da magreza já vem sendo discutida há algum tempo. Na atualidade, porém, há um outro componente tão almejado quanto a magreza e potencialmente (ou até mais) perigoso: a “estética do liso”. Conceito defendido por Byung-Chul Han em seu livro A salvação do belo (Editora Vozes, 2019), a estética do liso é composta por uma superfície otimizada, de pura positividade e que extingue os seus contrários. Não há, na sacralização do liso, espaço para a dobra, a gordura, a mancha, a cicatriz. O liso, argumenta Han, é a marca do presente. Um fenômeno genuinamente atual composto por um imperativo social universal que corporifica um estado de positividade. Na estética do liso, toda negatividade é posta de lado. A estética contemporânea do belo começa com a estética do liso. É um fenômeno presente tanto em aparelhos tecnológicos (como os smartphones) e nas artes (as esculturas de Jeff Koons), quanto no próprio conceito de beleza corporal.

É sobretudo a pele lisa o que torna as mulheres belas, diz Han, e qualquer aspereza rompe com a beleza. Não é à toa que inúmeros produtos cosméticos e cirurgias estéticas prometem disfarçar ou mesmo eliminar as imperfeições da pele. Rugas, manchas, flacidez, celulite, linhas de expressão, cicatrizes – tudo deve ser eliminado. O envelhecimento, interrompido. A celulite, aliás, é algo normal e presente em cerca de 95% das mulheres. Analisando há dez anos o que denomino “texto midiático das dietas, beleza, saúde e boa forma”, posso afirmar que a celulite foi praticamente extirpada das imagens dos corpos em circulação na ambiência midiática. Há ainda os chamados “filtros”, dispositivos virtuais a acessíveis capazes de eliminar qualquer vestígio tido como imperfeito. Assim, não basta ao corpo ser magro. É necessário, em igual medida, ser liso e uniforme.

Determinados tipos de cirurgia estética, ao removerem a gordura e afinarem o contorno do corpo, também promovem o seu alisamento. A gordura é a quintessência do desnivelado, irregular, áspero e enrugado. A lipoaspiração, por exemplo, extirpa a rugosidade e instala o liso, atributo de perfeição. A questão é que a imagem do corpo (especialmente o feminino) em curso nas redes sociais (com o uso dos filtros), publicidade, cinema ou mídia em geral apresenta um padrão aplainado. Sophie Deram pontua que os retoques feitos pela tecnologia deixam as modelos quase perfeitas, criando uma idealização de um corpo impossível de se atingir. É fácil notar como o imaginário de beleza atual é o de um corpo que não possui dobras, magro, sem marcas.

Um exemplo claro da estética do liso ocorreu quando a atriz Jennifer Lopez posou nua aos 53 anos para divulgar sua linha de produtos para o corpo. Não é necessário escrutinar a imagem da atriz para detectar alterações digitais abusivas, gerando um tom de pele e uma superfície lisa sem nenhuma analogia com um corpo vivo. A imagem remete a um outro ser, que parece não ser deste planeta, uma estrutura mais evoluída e revestida por um material que em nada se parece com a epiderme humana. Outro caso foi protagonizado pela modelo inglesa Melisa Raouf em 2022. Finalista do concurso Miss Inglaterra, ela se tornou a primeira modelo a competir sem usar maquiagem na história de quase um século do concurso. O efeito simbólico da atitude da modelo, no entanto, foi pífio. Mesmo sem maquiagem, Raouf ostenta padrões estéticos considerados belos para uma mulher contemporânea. A pele do seu rosto é lisa, sem rugas ou manchas; os olhos, grandes e azuis, e os lábios grossos e bem desenhados.

A coação em alterar o design corporal para alcançar a exatidão estética das imagens midiáticas não acontece de maneira igual entre os gêneros. O número de cirurgias plásticas reflete essa desigualdade. Pesquisa divulgada pela International Society of Aesthetic Plastic Surgery (Isaps) indica que, do total de pessoas que realizaram cirurgias plásticas no mundo em 2020, 86,3% são mulheres e apenas 13,7% são homens. As mulheres também são as principais vítimas de cirurgias plásticas malsucedidas. Estudo realizado pelo dermatologista e pesquisador Érico Pampado Di Santis sobre mortes relacionadas à lipoaspiração no Brasil entre 1987 e 2015 revela um dado assustador: de todos os óbitos, 98% eram mulheres, em sua maioria na faixa dos 21 aos 50 anos.

 

Escrita em cicatriz

Kamper batizou de “escrita em cicatriz” as marcas que o tempo imprime ao corpo. São feridas que, com o passar dos anos, podem ser lidas. Um dos efeitos da estética do liso é a homogeneização da textura da pele, sempre lisa e brilhante. Não há espaço para as emoções, a dor, o medo, a excitação. A epiderme dos protótipos midiáticos é manufaturada para promover uma condição existencial asséptica. Não basta alisar a pele: as linhas e proporções devem ser idênticas, seriadas (com o advento das harmonizações faciais, jogaremos fora nossas idiossincrasias?).

A capacidade de transmutar, ou seja, de mudar de uma condição a outra (do mundo real para o universo das imagens e vice-versa) é uma característica do terror da visibilidade atual. Daí reside a faculdade patogênica da relação “corpo versus imagem”. O ímpeto patógeno é insidioso, e parece confundir o seu próprio criador. A atual imagem do corpo nega seu caráter de imagem, diz Kamper, e a única coisa que se pode reclamar para o corpo vivo é sua invisibilidade. Na relação entre a imagem do corpo e o biótipo real, parece não haver limites entre imagem e realidade.

Ao alterar o formato da pele e do contorno corporal via dispositivos tecnológicos, as imagens (da publicidade, jornalismo ou redes sociais) promovem um apagamento da história do corpo. As celebridades que emprestam seus corpos a esse tipo de publicação e aceitam as alterações digitais têm, igualmente, suas histórias modificadas e recontadas, seja na perfeição da pele ou da silhueta. Ao ostentarem requintes de uma perfeição inabalável e inatingível, os arquétipos digitais passam a ser modelos copiados, desejados.

Se a pele que cada um habita é sui generis, a estética da magreza e do liso promovem imagens de corpos idênticos, homogêneos. Magros, lisos e de um brilho desproporcional. Em uma coletiva de imprensa durante o Festival de Cinema de Berlim de 2022, a atriz e roteirista Emma Thompson falou sobre a dificuldade em produzir cenas de nudez em seu primeiro nu frontal no filme Boa Sorte, Leo Grande (Good Luck to You, 2022). “As mulheres sofreram lavagem cerebral para odiar o próprio corpo. É um fato”, disse Thompson. E completa: “é horrível. Tudo ao nosso redor nos lembra quão imperfeita somos e que tudo está errado conosco”. A atriz reconhece a pressão estética da qual as mulheres são alvo ao longo de toda história, e como os efeitos dessa pressão induzem cada uma delas a odiar aquilo que é visto diante do espelho. A depender das estéticas da magreza e do liso, homens e mulheres continuarão a se deparar com imagens de corpos brilhantes, extremamente magros e alisados. É um paradoxo: o corpo real, com estrias, celulites, cicatrizes, manchas, dobras, pelos, é considerado feio. Já o formato liso, esticado e brilhante presente no ambiente midiático é tido referência de beleza. Até quando vamos dar preferência à lisura fictícia do virtual em detrimento da rugosidade natural da realidade?

 

Rodrigo Daniel Sanches é docente e publicitário. Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), Doutor em Psicologia (FFCLRP/USP) e Pós-Doutor em Comunicação (Faculdade Cásper Líbero), há dez anos pesquisa a imagem do corpo feminino na mídia e o texto midiático das dietas, beleza e boa forma.


> Assine a Cult, a mais longeva revista de cultura do Brasil. 

Deixe o seu comentário

TV Cult