Estante Cult | Entre o irônico e o angustiado, a prosa de Serguêi Dovlátov é amargamente hilariante

Estante Cult | Entre o irônico e o angustiado, a prosa de Serguêi Dovlátov é amargamente hilariante

 

Apesar do grande número de escritores russos emigrados que se estabeleceram nos Estados Unidos, entre os quais se destacam nomes como Vladimir Nabokov e Joseph Brodsky, coube ao jovem e pouco conhecido Serguêi Dovlátov (1941-1990), jornalista de profissão, filho de mãe armênia e de pai judeu, a honra de ter seu nome imortalizado em uma rua de Nova Iorque, a Dovlatov way, no bairro do Queens. O porquê disso o leitor brasileiro que já conhece O compromisso (1981), Parque cultural (1983) e O ofício (1985) irá descobrir no mais recente lançamento do escritor no mercado editorial brasileiro, que tem o sugestivo título de A mala, publicado originalmente em 1986 e lançado agora pela editora Kalinka.

A trama é simples e engenhosa, como todos os escritos do autor (só nos Estados ele publicou doze livros), mas o que importa mesmo é o tom. Entre o irônico e o angustiado, sem chegar ao absurdismo de Daniil Kharms, o tom é sempre engraçado, e sua auto-exposição, que lembra a do nosso Oswald de Andrade em Serafim Ponte Grande, é amargamente hilariante.

Ele mesmo nos conta no prefácio do livro que quando – diante das acusações e das consequências de mandar seus inéditos (na URSS) para serem publicados no estrangeiro (descoberto, chegou a ser preso) – resolveu emigrar em 1978 com a mãe e a cachorrinha para Nova York, onde já se encontravam a mulher e a filhinha, dirigiu-se ao Departamento de Vistos e Registros de Leningrado, onde a funcionária informou-o rispidamente: “Quem emigra tem direito a três malas”.

– Somente três malas?! O que fazer com as minhas coisas?

– Que coisas, por exemplo?

– Por exemplo, a minha coleção de carros de corrida.

– Venda – respondeu a funcionária, com pouco caso.

– Caso o senhor esteja insatisfeito com algo, escreva um requerimento.

– Estou plenamente satisfeito – digo eu.

(…)

… Uma semana depois, lá estava eu arrumando minhas coisas e, como se constatou, uma única mala foi o suficiente. Quase chorei de pena de mim mesmo. Estava com trinta e seis anos. Dezoito deles tinha passado trabalhando. Recebia algum dinheiro, comprava umas coisas. Eu achava que tinha bens. E, no fim, nada mais do que uma mala. E, ainda por cima, de tamanho bem modesto. Será que sou tão miserável assim? Como isso foi acontecer?

Chegado em Nova Iorque, a mala foi enfiada num cantinho do armário embutido e nem foi desamarrada a corda do varal que a reforçava. Quatro anos depois, com um novo filhinho que já começava a aprontar, a mãe, perdendo a paciência, gritou para ele:

– Vá agora mesmo para o armário! –

Meu filhinho passou uns três minutos dentro do armário e quando lhe perguntei:

– Deu medo? Você chorou?

– Não. Fiquei sentado numa mala, ele disse.

Foi só então que tirei a mala dali. E a abri.

Justamente o conteúdo dessa mala é que vai inspirar, peça por peça, os capítulos do livro que se seguirá, meio tristes, meio alegres, sempre engraçados, rememorando um passado numa terra que – como diz a epígrafe de Aleksandr Blok “… mesmo sendo assim / é para mim a terra mais querida…”, e vivendo um futuro em um país que ele passou a interpretar de forma tão original como redator-chefe de O novo americano, o jornal russo-judaico-americano que fundou junto com dois amigos e que, mesmo não durando muito, devido a um incêndio, não se sabe se acidental ou não (conforme é contado em detalhes em O ofício), deu aos próprios americanos uma visão diferente de si mesmos e permitiu-lhe ser conhecido e ser convidado a escrever para a prestigiosa revista The New Yorker.

Foi o início de seu sucesso no mundo inteiro – “eu devoro seus livros em três ou quatro horas de leitura ininterrupta, justamente porque é difícil escapar de seu tom despojado” – dizia seu amigo, o poeta Joseph Brodsky, e dizem hoje seus leitores, inclusive na Rússia, onde se tornou um dos autores mais queridos.


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