Lidas em diálogo, obras de Ferrante e Starnone garantem terceira experiência ao leitor
Imagem usada na capa de ‘Laços’, de Domenico Starnone, publicado pela editora Todavia (Luigi Ghirri/Reprodução)
Domenico Starnone é um dos escritores italianos mais lidos da atualidade. Nascido em 1943 na região de Nápoles, Starnone recebeu o Strega, principal prêmio literário do país, por seu romance Via Gemito, em 2001. Mas, embora seja um autor bastante prestigiado em seu país, com mais de uma dezena de títulos publicados, atualmente, sua obra têm corrido à sombra da de Elena Ferrante, ou talvez de Anita Raja — nome que estaria por trás do famoso pseudônimo —, com quem é casado.
Raja é uma tradutora italiana de ascendência alemã responsável por traduções de Franz Kafka e Christa Wolf. Há cerca de um ano, uma investigação polêmica a conectou a Ferrante, autora que conquistou público e crítica com A amiga genial (2011-2014), conjunto de romances mais conhecido como tetralogia napolitana.
Laços (2014), romance de Starnone, foi lançado recentemente no Brasil pela editora Todavia, com tradução de Maurício Santana Dias, que também traduziu a tetralogia de Ferrante. A edição brasileira, assim como a americana, vem acompanhada de um entusiasmado prefácio da escritora Jhumpa Lahiri, vencedora do Pulitzer e tradutora da obra para o inglês. O texto de Lahiri talvez funcione melhor como posfácio: assim como esse artigo, recomendo guardá-lo para depois da leitura.
O enredo de Laços tem sido pensado em conjunto com o de Dias de abandono (2002), segundo romance de Ferrante, lançado no Brasil em 2016 pelo selo Biblioteca Azul (Globo Livros), com tradução de Francesca Cricelli. Na obra de Ferrante, acompanhamos a história de Olga, uma mulher de 38 anos deixada pelo marido, com quem tem dois filhos pequenos, que se apaixonou por uma moça muito mais jovem.
Já em Laços, a maior parte do romance é narrada por um homem que rememora o período em que deixou a esposa e os dois filhos para viver com outra mulher em condições semelhantes. O relato ocorre quando o casal de protagonistas, Aldo e Vanda, já está na velhice. Ao voltar de uma viagem de férias, encontram a casa virada do avesso. Todos os objetos que recontam a história do casal estão expostos, trazendo à tona uma série de rememorações.
Laços é um bom livro, mas ao emparelhá-lo com o romance de Ferrante, a leitura ganha nuances que talvez não alcançasse sozinha: são dois livros que, em poucas páginas, refletem sobre o casamento tanto a partir da esfera pública quanto a partir da vida privada. Lidas em diálogo, as obras garantem uma terceira experiência para os leitores.
Na antologia Como se fosse a casa: uma correspondência (2017, editora Relicário), a poeta Ana Martins Marques escreve: “Entre tantas coisas/ numa separação/ é também uma língua/ que se extingue”. Em Dias de abandono, quando o marido anuncia que quer se separar, a esposa recebe a notícia como se tivesse sido apunhalada pelas costas. Depois de quinze anos de casamento, é somente nessa ocasião que Olga entende que ela e Mario já não falam a mesma língua, embora, em retrospecto, possamos identificar muitas fissuras que antecipavam o acontecimento. Na tentativa de compreender o que os separou, Olga escreve. Escreve em seus cadernos, escreve cartas a Mario, escreve o livro que lemos.
Mas o tom civilizado e as palavras habituais parecem agora insuficientes para representar a dor que acomete a personagem: uma fúria atravessa o texto de Olga formalmente, lembrando a violência do dialeto napolitano de sua infância, um retorno que traz consigo uma porção de memórias difíceis. À medida que narra a perda e a elabora, Olga recupera o seu próprio idioma e parece encontrar uma maneira de construir um destino diferente das mulheres abandonadas que a assombravam, de Anna Kariênina a uma vizinha de infância. Literariamente, é uma experiência muito rica, um discurso cheio de ruídos e contradições de uma narradora que expõe suas fragilidades, seus atos e seus sentimentos mais obscuros.
Já em Laços, temos três pontos de vista narrativos. A primeira parte é epistolar: uma série de cartas de Vanda, escritas na década de 1970, quando Aldo saiu de casa para viver com Lídia, uma moça de dezenove anos. Quem leu Dias de abandono dificilmente passará por essas páginas sem pensar nas cartas de Olga. A segunda parte é o relato de Aldo e a terceira, dos filhos do casal.
Para Maurício Santana Dias, que traduziu ambos, de fato há temas e características formais que aproximam as obras de tal modo que fica difícil negar a presença de um na escrita do outro. Em um debate ocorrido em setembro deste ano em São Paulo, o tradutor explicou que pretendia enfatizar a troca, consciente ou não, que pode haver entre um casal de escritores que compartilha a vida há décadas, e refletir sobre como essa influência mútua — sem destacar hierarquias — também poderia ser pensada dentro de uma das questões mais interessantes levantadas pela obra Ferrante: a desmarginação da autoria, ou a perda dos contornos usuais desse conceito.
Quanto a isso, em uma das entrevistas que concedeu por escrito, Ferrante argumenta: “Escrever — e não apenas ficção — é sempre uma apropriação indevida. Nossa singularidade como autores é uma pequena nota à margem”.
Quando o que está em pauta é o casamento e as suas complexas teias, a discussão a respeito da autoria também se torna mais enredada. No filme Monsieur & Madame Adelman (2017), de Nicolas Bedos, assistimos à história de um casal que, entre idas e vindas, viveu mais de 40 anos juntos. Quando se conheceram, ele era um aspirante a escritor muito ambicioso e ela uma pesquisadora de literatura que se apaixona e se mantem à sombra, revisando e entrando no texto do marido de diversas maneiras. O fato é que, a certa altura, fica difícil defender a ideia de que o escritor é ele. O filme levanta outras questões interessantes, mas a que nos interessa aqui é pensar como a mistura intrínseca do casal, tão caótica, também adentra o texto literário.
De volta a Olga e a Dias de abandono, há um trechos que ajuda a pensar como a simbiose experimentada por um casal pode ser vivenciada de maneira extrema:
“Passei diversas noites olhando as fotografias da família. Procurava reconhecer sinais da minha autonomia no corpo que eu tinha antes de conhecer meu futuro marido. Comparei minhas imagens quando menina com aquelas dos anos seguintes. Quis descobrir quanto se modificara meu olhar a partir das minhas saídas com ele, quis ver se ao longo dos anos esse olhar terminara por parecer com o seu. A semente de sua carne entrou na minha, deformando-me, alargando-me, fazendo-me pesar, engravidei duas vezes. As fórmulas eram: carreguei no ventre filhos seus, dei a ele alguns filhos. Se até tentassem me dizer que não lhe havia dado nada, que os filhos eram sobretudo meus, que sempre estiveram dentro do raio do meu corpo, sujeitos aos meus cuidados, todavia, não podia evitar pensar o que da sua natureza, inevitavelmente, insistia nas crianças. Mario explodia por dentro dos ossos deles subitamente, agora, nos dias, nos anos, de um jeito sempre mais visível. Quanto dele eu teria que amar para sempre mesmo sem me dar conta, só por amá-los? Que mistura complicada e espumosa é um casal. Embora a relação quebre e se desfaça, ela continua agir por vias secretas, não morre, não quer morrer.” (Dias de abandono, p. 159-160)
Em Laços, essa mistura é enredada de tal modo que Aldo nunca consegue, de fato, ir embora. Diferentemente de Vanda, Olga tem a chance de se refazer da separação — a narrativa é interrompida no momento em que ela se distancia das histórias de “mulheres quebradas”, como nas páginas em que Anna Kariênina estava prestes a morrer. Nesse sentido, podemos pensar que a obra de Ferrante constrói um final mais interessante, um desfecho que, a um só tempo, é mais fechado (porque a narrativa é em primeira pessoa e é mais condensada, abarcando um período mais curto de tempo) e também mais aberto, pois deixa muitas perguntas sem resposta: o que terá sido dos filhos do casal, testemunhas precoces de dores tão adultas? Olga teria conseguido se manter no caminho da sanidade, depois da experiência devastadora de enlouquecimento?
Já em Laços, as questões são brutalmente respondidas. Vanda nunca teve oportunidade de se refazer porque, após quatro anos, Aldo voltou e ficou — ou foi ficando, sem muita convicção. Em uma entrevista sobre o romance, Starnone disse: “Ficar pode ser mais violento que partir”. As consequências daqueles dias de abandono jamais puderam ser remediadas. Se há um laço que os une no presente é apenas o fato de estarem juntos sob os escombros de uma imponente ruína.
FABIANE SECCHES é psicanalista e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Escreve sobre literatura, cinema e psicanálise.
(1) Comentário
Li dias de abandono a um ano , e acabei de ler laços , fiquei bastante impactada , incomodada mas não conseguia parar de ler , depois fiquei furiosa com Aldo representando toda nossa sociedade tão atual e cruel principalmente com as mulheres , pois todo o peso familiar e materno fica sob nossa responsabilidade . E o autor soube muito bem mostrar o estrago feito aos filhos com a relação dos pais . Fiquei muito incomodada mas adorei o livro , assim como amo todos da Elena Ferrante