Drummond, o antibusto

Drummond, o antibusto
O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (Arte Revista CULT)

 

Carlos Drummond de Andrade nasceu em 31 de outubro de 1902, em Itabira do Mato Dentro, nono filho do fazendeiro Carlos de Paula Andrade e Julieta Augusta Drummond de Andrade. Foi jornalista, professor secundário, funcionário público, tradutor, usou óculos de aro de tartaruga, terno, gravata e uma pastinha preta que carregava na mão quando seguia, já morando no Rio de Janeiro, para seu trabalho no Ministério da Educação e Saúde Pública. Mas foi principalmente poeta e refinado prosador, publicando livros de poemas e crônicas diárias nos principais jornais do Brasil. Agora que se comemora o centenário de nascimento do poeta – uma das principais vozes da lírica brasileira – já se preparam festejos, haverá foguetório, o que é sempre bom e anima as crianças, como ele mesmo chegou a dizer em uma de suas crônicas;  já circula em papel-bíblia a sua poesia completa, que andava tão dispersa e há anos não se via novamente reunida; já se fala também em uma escultura de Drummond (o antibusto) a ser cravada na orla carioca, resvalando no exagero e no provincianismo que o próprio poeta tanto combateu.

Deixando os festejos de lado, com o que há de bom e de ruim, o que importa é a complexa obra de Drummond e sua atualidade, que se figura na pergunta: “Por que ler Drummond, nessas alturas dos acontecimentos?”. Um exemplo dos mais fáceis de se puxar pela memória é o poema “Elegia 1938”, de Sentimento do mundo, que poderia entrar na categoria de poema profético, se fosse o caso. Mas o que conta aqui é que Drummond, poeta dos mais inteligentes e ligados ao seu tempo, sabia o peso que a ilha de Manhattan ocupava e ocupa no concerto das nações do capitalismo moderno. O poema, que trata de certa forma da falta de sentido de nossa vida no mundo de hoje (mesmo se tratando de um poema dos anos 30, o assunto ainda é pertinente), no qual trabalhamos “sem alegria para um mundo caduco”, termina com os seguintes versos:

“Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota/ e adiar para outro século a felicidade coletiva./ Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição/ Porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.”

Não se pode chamar de profecia, pois quando o poema foi composto, as torres gêmeas nem mesmo existiam, mas já era nessa região do hoje chamado “Marco Zero” que o dinheiro, com pernas próprias, já se negociava e anulava – como anula – toda e qualquer possibilidade de existência do sujeito, aniquilando o sonho de uma vida plena. É como se diante das fortalezas do capital e desse parque de diversões do dinheiro nada mais restasse ao poema, a não ser o protesto seco e duro contra as regras áridas do “mundo caduco”.

Em Drummond, a vida sempre foi objeto de reflexão, de árdua reflexão do sujeito perante o mundo grande – desde o início, quando um anjo torto o expulsou do mundo ideal, já o despachou para a corrente da vida com um aviso: “Vai, Carlos, ser gauche na vida!” E lá seguiu o poeta desajeitado diante de tantos desejos, tantos sentimentos, tentando entender o enigma do mundo, desse mundo rebaixado, corriqueiro, desidealizado que é o nosso. Ou como ele mesmo dirá muitos e muitos anos mais tarde, num dos poemas de Corpo: “Stéphane Mallarmé esgotou a taça do incognoscível./ Nada sobrou para nós senão o cotidiano/ que avilta, deprime”.  Na busca de compreender os homens e o mundo presente, o poeta estará sempre topando com obstáculos que travam a caminhada e pedem compreensão, como a famosa “pedra no meio do caminho”.

E, em Drummond, este maldito “calhau”, como ele mesmo designou, em tom de troça, numa entrevista radiofônica a Lya Cavalcanti, gerou polêmicas que lhe renderam até mesmo a pecha de “maluco” ou de “débil mental”. Quando trabalhava no gabinete do ministro Gustavo Capanema, muitos se utilizaram do poema para criticar não o poeta, mas o próprio ministro que o convidou para ser seu secretário. Mas logo se assustavam ao encontrá-lo pessoalmente no ministério, um funcionário zeloso, organizadíssimo. “Mais de uma vez me disseram: ‘Engraçado, eu pensava que o senhor fosse débil mental, mas agora, vendo que providencia o andamento dos processos e faz as coisas normalmente, vejo que me enganei. Desculpe: foi por causa da pedra no caminho…’.”

O poema, quando publicado em 1928, na modernista Revista de Antropofagia, tornou-se um verdadeiro escândalo, a começar pelo uso do verbo “ter” no lugar do “haver”; depois, pela repetição do verso “Tinha uma pedra no meio do caminho”. Era a antipoesia que abria espaço num ambiente ainda marcado pelo parnasianismo e pelo simbolismo. Aquilo era mesmo uma pedrada no gosto bacharelesco dos leitores não afeitos à poesia moderna e abrigados nas chaves de ouro dos sonetos de Olavo Bilac e Alberto de Oliveira.

Porém, o poeminha é bastante complexo. Sua recepção escandalosa por muito tempo ocultou o que havia ali naqueles poucos versos repetitivos. Drummond chegou mesmo a organizar um volume com toda a crítica feita em torno de “No meio do caminho”. Uma desforra do poeta, que juntou nesse livro principalmente textos em que o atacavam abertamente, mas também aqueles que analisavam o poema, na tentativa árdua de compreendê-lo. Mas é sem dúvida um marco não só do modernismo como também da poesia de Drummond, já que esta pedra-obstáculo vai aparecer várias vezes em sua obra e tornar-se mesmo um símbolo da atitude reflexiva do poeta.

Drummond, diante da pedra que o marcaria para sempre, não foge ao enigma: “Nunca me esquecerei desse acontecimento/ na vida de minhas retinas tão fatigadas”. Parece que sempre haverá um obstáculo impedindo a compreensão mais ampla da “máquina do mundo”. O que logo chama a atenção, pensando na tradição da lírica posterior a Drummond, é a atitude reflexiva do poeta diante da pedra, e não mimética. Drummond não quis virar pedra, recusou-se insistentemente em petrificar-se. Estaca diante do obstáculo para compreendê-lo e não para se tornar o próprio obstáculo. Essa postura, pode-se assim dizer, o acompanhará até o final da vida, até os seus versos de despedida publicados no póstumo Farewell.

Não deixa de ser até um pouco grotesco imaginar que hoje alguém esteja fundindo uma estátua de Drummond. O poeta vai virar ferro, pedra, pasto de pombos, tudo que evitou liricamente durante 84 anos de vida. Além do mais, este cético e irônico mineiro de Itabira nunca teve o perfil necessário para virar algo parecido com um busto: era magro, esguio, lábios finos, até desajeitado, nada dos lábios grossos e dos contornos cheios dos heróis de praça pública. Era um antibusto, uma anti-estátua. Poderia no máximo resultar num Giacometti…

Boa parte da obra poética de Drummond é marcada pela reflexão do sujeito. E o ato reflexivo não aceita jamais transformar-se em pedra paralítica. Uma de suas definições de poesia e que exemplifica bem o caráter reflexivo de sua obra apareceu escondida na orelha de um livro. Antes, porém, cabe explicar: algumas orelhas de livros do poeta foram escritas pelo próprio, como contou seu editor Daniel Pereira ao jornalista e biógrafo Geneton Moraes Neto, no livro O dossiê Drummond. Ele, escritor já reconhecido, temia o elogio demasiado, exagerado. São de Drummond, mas sem assinatura, as orelhas dos livros Passeios na Ilha, Esquecer para Lembrar/Boitempo 3, Discurso de Primavera e Algumas Sombras e Lição de Coisas, segundo conta Geneton.

Ao escrever sobre Boitempo 3, Drummond citava os diversos assuntos enlaçados no livro e se perguntava: “Mas é possível fazer poesia com essas coisas?, perguntará talvez algum remanescente do convencionalismo literário que só admitia temas nobres. Não só é possível, mas Drummond comprova: nada é alheio à poesia quando ela, mediante recursos artísticos, vai ao fundo das coisas e dele extrai substância humana.” É assim o recurso reflexivo de Drummond, explicado por ele mesmo.

Apesar do “autoelogio”, mas de leve, de sua própria orelha, a marca de fábrica de Drummond fica aí registrada. Numa crônica, por exemplo, ele notava como a poesia de seu amigo e contemporâneo Emílio Moura vinha “colocada sob o signo da pergunta”: “Em Emílio Moura, profissional da interrogação, a poesia se elabora no eterno debruçar-se sobre as alheias e próprias superfícies”. Neste ponto, os dois se parecem, porém divergem quanto ao tipo de reflexão. Em Emílio, as perguntas são amplas, abertas, inscritas na própria natureza e versam sobre o destino do homem. Em Drummond, a carga de ceticismo e ironia, faz com que as mesmas perguntas sejam mais terra-a-terra, apoiadas, digamos, na condição moderna do homem.

A questão pode ser colocada da seguinte maneira: em Emílio, encontram-se o poeta e a dimensão do mundo natural; em Drummond, o poeta, a dimensão do mundo natural e o confronto com as exigências da vida moderna. É diante dessas questões que podemos acompanhá-lo, por exemplo, no “caminho sinuoso” (uma imagem labiríntica e recorrente em sua obra) para o Alto da Boa Vista, dividido entre dois mundos, como escreveu na crônica “Meditação no Alto da Boa Vista”: “Tenho altura para dominar a cidade, sem, contudo, afastamento que baste ao exílio. A breve distância da mata e dos episódios de rua, sinto-me concentrado, protegido, gratuito, manso, liberto. Como um pássaro de vôo baixo.” Reside nessas observações a complexidade que muitas vezes topamos em sua poesia e prosa. E essa complexidade é a mesma matéria do nosso tempo, da nossa época, por isso a atualidade de Drummond e a necessidade que temos hoje de ler e reler sua obra.

Mas como pensar o mundo poeticamente? A poesia não poderia se reduzir a um mero jorro da interioridade questionadora, pois assim se perderia o prazer literário que tiramos dela. Se fosse assim, seria um insuportável rio caudaloso de palavras de evasão. Em Drummond, a reflexão se confronta com as palavras. Num bonito ensaio sobre o poeta Américo Facó, Drummond definia o amigo de maneira precisa, precisão essa que também vale para ele mesmo: “O poeta não é o portador do fogo sagrado, mas o precavido possuidor de uma lanterna de bolso, que abre caminho entre as trevas do dicionário”. Eis, de forma sucinta, a maneira como o próprio Drummond via sua atividade, basta comparar essa frase com o famoso poema “Procura da poesia”.

Foi com essa espécie de lanterninha de bolso, procurando respostas sobre a sua época e mundo em que vivia, que o poeta enriqueceu sua lírica, sabendo que o instrumento de sua procura era a palavra. Encontrá-las foi o desafio a que se propôs desde Alguma poesia, seu primeiro livro, publicado em 1930, quando tinha 31 anos, sob a influência direta do anticonvencionalismo preconizado pelo modernismo.

Em Minas, Drummond participava de um grupo de jovens escritores e jornalistas que desde cedo aderiram às modificações trazidas pelo Movimento Modernista de São Paulo, principalmente a partir de 1924, quando a caravana paulista, formada por Mário de Andrade, Oswald de Andrade e filho, Dona Olívia Guedes Penteado e seu genro Gofredo Teles, a pintora Tarsila do Amaral e o poeta francês Blaise Cendrars, passou por Belo Horizonte.

Foi neste momento que Drummond estabeleceu com o poeta Mário de Andrade, dez anos mais velho que ele, uma amizade intelectual das mais importantes de sua vida. “Estabeleceu-se um vínculo afetivo que marcaria em profundidade a minha vida intelectual e moral”, escreveu Drummond, muitos anos mais tarde, quando reuniu em um livro a correspondência que trocou com Mário entre 10 de novembro de 1924 a 23 de fevereiro de 1945, portanto até dois dias antes da morte do poeta paulista.

Para Drummond, essa correspondência constituiu “o mais importante, generoso e fecundo estímulo à atividade literária, por mim recebido em toda a existência”. Até o momento, existe somente a edição organizada por Drummond com as cartas de Mário, chamada Lição do amigo. Mas o crítico Silviano Santiago prepara uma edição completa com as cartas dos dois que, como a correspondência de Mário e Manuel Bandeira, já editada, vai revelar a intensidade dessa rara amizade intelectual – aberta, livre, com discordâncias intelectuais e, antes de tudo, civilizada, algo hoje posto em desuso.

A “lição do amigo” chegava pelo correio, com notícias, reflexões sobre a nova poesia que se começava a fazer no país depois de 1922 e com sugestões ao “literatozinho mineiro, de tendência pessimista, que procurava resolver em verso moderno suas dúvidas e agitações íntimas”, como escreverá Drummond, no ensaio “Suas cartas”, de Confissões de Minas. Nessas remessas pode se encontrar um caderno recheado de poemas e com o título geral de “Minha terra tem palmeiras”. Era o embrião de Alguma poesia, que Mário recebeu e sugeriu preciosas modificações, ou, como ainda diria Drummond no mesmo artigo, “observações práticas se sucedem para proveito do pequeno versejador ignorante da disciplina poética (falou-se tanto em quebra de padrões clássicos!) e dos próprios característicos elementares da língua (é tão fácil escrever…)”.

Paralelamente a essa correspondência, Drummond e seus amigos de geração se lançam na dura empreitada de conceber uma revista modernista de cultura na então provinciana Belo Horizonte. A Revista, como se chamou, foi a primeira publicação modernista mineira, e trazia artigos de Drummond e de seus companheiros como João Alphonsus, Emílio Moura, Martins de Almeida, Pedro Nava e Abgar Renault, e colaborações como de Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Mas a revista durou somente três números, de junho de 1925 a janeiro de 1926.

Só alguns anos mais tarde é que saiu Alguma poesia. Seus livros seguintes – Brejo das almas, Sentimento do Mundo e José – trazem a consolidação das experiências modernistas, mas já ampliam seu leque de interesses do poeta, principalmente pela percepção aguda dos problemas sociais, como se vê em Sentimento do mundo. Porém, essa percepção explodirá num livro que marcou profundamente sua época e até hoje é visto como um clássico de Drummond, pela ampla matéria nele tratada, como pelo engajamento do poeta aos acontecimentos. Trata-se de A rosa do povo, de 1945, livro que surpreende pela alta qualidade lírica e pela quantidade de poemas que se tornaram rapidamente famosos.

Como diz Antonio Candido, no ensaio “Inquietudes na poesia de Drummond”, neste livro se fundem “as perspectivas mais sociais de Sentimento do Mundo e as perspectivas mais pessoais de José – que parecem duas séries convergentes, formando esta culminância lírica”. Vários poemas do livro foram publicados antes, em jornais e revistas. Há até mesmo o fato curioso, citado por Júlio Castañon Guimarães – que hoje coordena uma edição crítico-genética da poesia de Drummond (ou seja, comparando as modificações que o  poeta fez em cada poema até sua edição definitiva) –, de que o livro fora anunciado muito antes, em jornal, com o nome de “A flor e náusea”, que é título de um dos poemas centrais desse livro.

Como também lembra Antonio Candido, agora no texto memorialístico “Fazia frio em São Paulo”, o próprio poeta difundiu “seus poemas políticos impublicáveis por meio de cópias remetidas aos amigos; estes, por sua vez, as multiplicavam e elas corriam o país, dactilografadas e mimeografadas”. E continua: “Assim se espalharam ‘Depois de Barcelona cair”; ‘Carta a Stalingrado’; ‘Telegrama de Moscou’; ‘Com o russo em Berlim’; ‘Mas viveremos’; ‘Visão 1944’ – recolhidos mais tarde em Rosa do povo, menos o primeiro. Por este meio o chefe de gabinete exercia uma atividade constante e decidida, animando muita gente com o exemplo de uma participação tão alta, naquele momento que para muitos deveria levar ao ‘mundo novo’ que um dos poemas queria ajudar a nascer.”

A rosa do Povo colocou Drummond entre os maiores poetas do Brasil e mesmo do mundo. O jovem modernista de Itabira – que já era o famoso autor de “No meio do caminho” e de “José” (que também se tornou uma espécie de hit quando foi lançado) – , agora maduro, publica aquela que seria a sua obra central. Se a poética elaborada em Alguma poesia se desdobrou até José, A rosa do povo passa a ser a segunda pedra fundamental da poética de Drummond, ressaltando de um lado a sua necessidade de participação na vida social e do outro consolidando o caminho para uma poesia de cunho mais reflexivo e meditativo como a que se seguirá depois.

Quem esperava de Drummond uma continuidade da tônica participativa de Rosa do povo, acabou tendo uma surpresa nos poemas que se seguiram. Em 1951, depois de ter publicado uma reunião chamada Poesia até agora, na qual incluiu Novos poemas, com poemas importantes e lindos como “Desaparecimento de Luísa Porto”, “Canto esponjoso”, “Aliança”, “Estâncias” e “O enigma”, Drummond lança Claro enigma, outro livro que viria a fazer uma nova curva em sua obra.

Não que o poeta tivesse se desviado dos acontecimentos, como sugere muito maliciosamente no pórtico do livro com uma citação de Paul Valéry: Les événements m’ennuient [“Os acontecimentos me entediam”].  Eles continuam presentes, pois, como bem notou Sérgio Buarque de Holanda, no ensaio “Rebelião e convenção”, o impulso que leva Drummond a superar a poesia militante “não chegaria nele a abolir a preocupação constante do mundo finito e das coisas do tempo”.

O historiador e crítico, neste mesmo perspicaz e belo ensaio sobre o poeta mineiro, ainda ressalta que teria sido “mortalmente nefasto” para Drummond evitar o prosaísmo em sua poesia: “Na poesia, e muito particularmente na sua poesia, o ‘prosaico’ não é negação, é condição do ‘poético’ – admitindo que se possam separar os dois termos de forma tão caprichosa –, é um modo, em outras palavras, de intensificar-se o poético pela própria força de contraste.”

O poeta parece mesmo estar fatigado dos acontecimentos, mas sem descartá-los, pois são parte de sua vida e, principalmente, de sua obra. Esse cansaço que a epígrafe revela, mas com certa malícia e ironia, atitude tão típica de Drummond, pode ser constatado já nos primeiros versos que abrem o livro, no poema “Dissolução”:

“Escurece, e não me seduz/ tatear sequer uma lâmpada./ Pois que aprouve ao dia findar,/ aceito a noite.// E com ela aceito que brote/ uma ordem outra de seres/ e coisas figuradas./ Braços cruzados.// Vazio de quanto amávamos,/ mais vasto é o céu. Povoações/ surgem no vácuo./ Habito alguma?// E nem destaco minha pele/ da confluente escuridão./ Um fim unânime concentra-se/ e pousa no ar. Hesitando.// E aquele agressivo espírito/ que o dia carreia consigo,/ já não oprime. Assim a paz,/ destroçada.// Vai durar mil anos, ou/ extinguir-se na cor do galo?/ Esta rosa é definitiva/ ainda que pobre.// Imaginação, falsa demente,/ já te desprezo. E tu, palavra./ No mundo, perene trânsito,/ calamo-nos./ E sem alma, corpo, és suave.”

Talvez nem seja preciso dizer que se trata de um dos poemas mais bonitos da lírica drummondiana (mas sempre sabendo que escolhas assim são sempre perigosas, pois mais páginas para frente de sua obra completa, outras tantas para trás, toparemos com outro poema magnífico, outro que pode constar entre os mais bonitos). É um poema difícil, intrincado, cuja reflexão nos obriga, muitas vezes, a retomar toda sua trajetória poética, pois muitos são os ecos que os versos fazem soar aqui e ali. Por exemplo, apesar de apresentar uma preocupação diametralmente oposta a “Elegia 1938”, citado anteriormente, podemos ver aqui, por outro viés, a mesma aceitação dolorida das coisas do mundo. O ciclo natural da vida pode se completar, o poeta aceita que a noite chegue e faça brotar “uma ordem outra de seres/ e coisas não figuradas”, porém sem que isso signifique uma procura de pureza ou de contato amplo com as coisas naturais. O sentimento de que algo se perdeu, se quebrou, vem alguns versos adiante, quando o poeta diz: “E aquele agressivo espírito/ que o dia carreia consigo/ já não oprime. Assim a paz,/ destroçada”. A paz que se recolhe é “destroçada”.

Como no “Poema de sete faces”, este também é trabalhado em blocos que parecem fragmentos, mas que se unem num todo significativo. Como ainda diria Buarque de Holanda, sempre certeiro em suas apreciações, “a dúvida que pode surgir no caso de Drummond vem de que um mesmo motivo (mas este invariável e fixo) é abordado em várias formas distintas. Não raro (ia dizendo: em regra) o tema enuncia-se já nos dois ou três versos iniciais para ser iluminado de pontos divergentes. Não é, assim, uma indefinida procura a que eles nos oferecem mas um esforço de exaustiva elucidação.”

Entre tantos e outros temas (como o amoroso, na seção “Notícias amorosas”), este livro também prenuncia o que viria a se tornar uma temática cada vez maior em Drummond: o tema de Minas e da família. Este tema, na verdade, já era recorrente desde Alguma poesia. Itabira é uma presença fixa e obsessiva na vida do poeta, uma espécie de horizonte moral ao qual ele recorre, percorre e busca reconstituir para entender o presente, mas de forma que não seja apenas uma crônica pessoal e intransferível e, sim, algo que supere a mitologia pessoal e seja mais amplo e universal. Pode-se destacar ainda neste livro poemas fundamentais de sua trajetória, como “A mesa”, “A máquina do mundo” e “Relógio do Rosário”, poemas cuja análise nem sempre é fácil e que pedem leitura lenta e detida, cuidadosa e amorosa, como já o fizeram os críticos José Guilherme Merquior, Alfredo Bosi e Vagner Camilo.

A obra de Drummond é vasta, compreendendo mais de 20 livros de poesia, e nem sempre sua divisão em fases – ou momentos decisivos – é simples, pois cada livro acaba gerando sua própria força e grandeza dentro de uma constelação em que nenhum planeta poderia ser descartado. É até comum alguns críticos considerarem sua poesia até certo ponto, renegando obras posteriores, que seriam, dizem eles, de menor importância ou de menor fôlego inventivo. Mas esse tipo de abordagem torna a obra manquitola, estropiada e nada ajuda em iluminar uma trajetória rica do início ao fim, mesmo que o poeta, em um momento ou outro, tenha se deixado levar por alguma facilidade.

Depois de Claro enigma, que também se tornou obra marcante de Drummond, ele publicou Fazendeiro do ar, A vida passada a limpo e Lição de coisas. Sobre este último, publicado em 1962, sabe-se que o coube ao próprio poeta a tarefa um tanto quanto publicitária de escrever as orelhas (mas, como foi dito antes, sem contudo assiná-las). Sobre seu livro, ele mesmo disse (em terceira pessoa): “O autor participante de Rosa do povo, a quem os acontecimentos acabaram entediando, sente-se de novo ofendido por eles e, sem motivos para esperanças, usa, entretanto, essa extraordinária palavra, talvez para que ela não seja de toda abolida de um texto de nossa época”.

A observação vem bem a calhar com o comentário feito por Haroldo de Campos no ensaio “Drummond, mestre de coisas”, publicado em jornal quando do lançamento do livro. Haroldo notava que havia em Lição de coisas “a consideração do poema como objeto de palavras, a resolução última de tudo – emoção, paisagem, ser, revolta – na suprema instância da coisa-palavra”. “Aqui, o poema se abre a todas as pesquisas que constituem o inventário da nova poesia: ei-lo incorporando o visual, fragmentando a sintaxe, montando ou desarticulando vocábulos, praticando a linguagem reduzida”. E é mais ou menos isso, não sem alguma ironia, que Drummond fez questão de deixar claro na orelha de seu livro ao comentar a palavra “esperança”.

Quanto aos assuntos deste livro, mais uma vez o próprio poeta os traça, mas agora numa crônica em que ele, o cronista, comenta os livros do poeta Carlos Drummond de Andrade, com a humorada explicação: “A circunstância de tratar-se de homônimo deste cronista não inibe de lavrar o registro de tais obras” (Drummond falava de Lição da coisas e Antologia poética, que saiu no mesmo ano). E foi assim que definiu seu novo trabalho: “Não sei se o poeta perdeu a força de irritar, que o distinguia; sei que abre de novo o baú de lembranças, reage contra o excesso de bomba do nosso tempo, narra dramas amorosos e psicológicos do próximo, trata galantemente da cidade do Rio, ex-capital sempre capitalíssima, fala de pombos-correios, fazendas, mulandeiros, santas, rende preito a Portinari, a Chaplin, ao pintor colonial Ataíde e a Mário de Andrade, explora palavras como som e como signo, em aproximações, contrastes, esfoliações, distorções e interpenetrações endiabradas. Os senhores julgarão por si.”

Pode-se até pensar que Drummond só escreveu sobre seu próprio livro porque deve ter percebido a beleza e a força poéticas contidas aí e que foram muito bem observadas pelo concretista Haroldo de Campos, também ele um “mestre de coisas”.  Entre tantos poemas surpreendentes, há neste livro uma seção chamada “Memória” que certamente será matriz da série de livros Boitempo (série esta formada por três livros dedicados à memória do poeta) e que começaria a ser publicada em 1968. Um exemplo? “O sátiro”:

“Hildebrando insaciável comedor de galinha./ Não as comia propriamente – à mesa./ Possuía-as como se possuem/ e se matam mulheres.// Era mansueto e escrevente de cartório.”

Este poeminha, com sua pitada de malícia e humor, traz o tom de muitos outros que viriam nos três livros de Boitempo – ou seja, Boitempo (de 1968), Menino Antigo (Boitempo II) (de 1973) e Esquecer para lembrar (Boitempo III) (de 1980). Entre estes livros, Drummond ainda publicou A falta de que ama, Impurezas do branco, Discurso de primavera e algumas sombras e outros livros especiais com tiragens reduzidas. Todos eles com suas características próprias, porém marcados pelo prosaísmo de Drummond, principalmente por sua experiência de cronista diário em jornais (muitos poemas foram publicados inicialmente nas suas páginas de crônica). Desde Rosa do povo, o poeta veio esticando seu verso até que ele virasse quase prosa, num tom de crônica. Mas é mais para os anos 70 e 80 que esse tom dominaria grande parte de sua produção, sem contudo significar menos qualidade ou inventividade.

Sobre a série Boitempo, pode-se dizer que ela equivale ao que magistralmente Pedro Nava fez em prosa com seus volumes de memória. Drummond, veia lírica, preferiu filtrar seu passado por meio da poesia. Mas não se trata de um passado de tom marcadamente pessoal, como uma “crônica de saudades” em que o poeta ficaria se lembrando dele mesmo, no espelho do tempo. Drummond é objetivo, quase narrativo, destacando personagens e momentos que fizeram parte de sua formação e parte da nossa própria bagagem cultural e social. Como destacaria Antonio Candido, no ensaio “Poesia e ficção na autobiografia”, nestes livros “a experiência pessoal se confunde com a observação do mundo e a autobiografia se torna heterobiografia, história simultânea dos outros e da sociedade; sem sacrificar o cunho individual, filtro de tudo, o Narrador poético dá existência ao mundo de Minas no começo do século.”

Os três livros de Boitempo acabam, de certa forma, por inaugurar uma poesia memorialística, mas, como foi visto, ampla, uma espécie de testemunho participante da “história simultânea dos outros e da sociedade”. Não se trata mais de olhar para trás com saudosismo romântico, mas de relatar os fatos e o tempo passado com os olhos do presente. É como se Boitempo retratasse uma sociedade que veio desembocar na nossa, com todas as conquistas e, principalmente, mazelas históricas.

A inquitetude do poeta nunca o permitiu paralisar sua intensa procura. Não era pedra e jamais seria, por isso continuaria até o final da vida tentando desvendar os enigmas-obstáculos que o mundo lhe colocaria pela frente. Depois de Boitempo, Drummond ainda publicou A paixão medida, Corpo e Amar se aprende amando. Organizado que era, deixou mais alguns livros prontos em pastas e que foram publicados postumamente, como O amor natural e Farewell. Sobre este último, publicado em 1998, ou seja, onze anos depois de sua morte, em 17 de agosto de 1987, pode-se dizer que foi sua despedida pública e o final de uma obra que se fechou perfeitamente, como um estojo quando fecha, ou como um círculo quando se fecha e nos obriga a percorrê-lo continuamente.

O que ainda se pode dizer sobre o seu centenário de nascimento, que se comemora neste ano, é que deveríamos fazer como ele mesmo nos indicou numa crônica sobre o sesquicentenário de nascimento de Goethe, dizendo que o melhor a fazer era não comemorar e deixar de lado todas as discussões e elogios para que assim sobrasse tempo “para ler, aprofundar, sentir e amar Gorthe, senão na medida a que ele faz jus, pelo menos na medida de nossas modestas capacidades.” O mesmo vale para CDA – que não se torne pedra, nem ano 1 de uma grife comercial qualquer. É preciso ler Drummond para entendê-lo, não para petrificá-lo. E mais que isso para entender o tempo presente, a vida presente, o homem presente, pois sua poesia continua atual, mesmo que paire solitária no céu do Brasil como um astro sem atmosfera.

HEITOR FERRAZ MELLO é jornalista, mestre em literatura brasileira pela USP e autor dos livros de poesia Resumo do dia (Ateliê Editorial), A mesma noite e Hoje como ontem ao meio-dia (ambos pela 7Letras)

Deixe o seu comentário

TV Cult