Drible e flecha de fulni-ô
Procissão de Iemanjá, Ilha de Itaparica, Bahia (Foto: Christian Cravo)
Comecei a desenvolver o conceito de “culturas de síncope” a partir de uma psquisa para um livro sobre a Portela, que publiquei em 2012 (Tantas páginas belas: histórias da Portela). A necessidade de pensar o conceito surgiu de uma constatação: os estudos sobre o samba simplesmente não viam o próprio samba como manancial para a elaboração de conceitos capazes de dialogar com o complexo cultural que circula em torno do gênero que, saído dos batuques do Congo, espraiou-se na diáspora.
Mas que diabos é a síncope? Ela é uma alteração inesperada no ritmo, causada pelo prolongamento de uma nota emitida em tempo fraco sobre um tempo forte. Na prática, a síncope rompe com a constância, quebra a sequência previsível e proporciona uma sensação de vazio que logo é preenchida com fraseados inesperados. A síncope opera bordando de sutilezas o vazio entre as duas marcações do ritmo. É ali que ela mora.
A síncope subverte a normatização, busca caminhos que não são os do enfrentamento, joga com o tempo e o contratempo no deslocamento do jogo rítmico, traz o segredo da polirritmia típica da música africana: o bailado sonoro de padrões rítmicos complexos, geralmente envolvendo um ritmo tocado contra o outro, que na contraposição se complementam para dar conta das sutilezas, mais que do som, da vida.
As culturas de síncope, por sua vez, dialogam com o drible, já que são capazes de “garrinchar” tempo e espaço. E aí penso mesmo no futebol. O jogo inventado pelos britânicos consistia na tentativa de evitar o adversário por meio de lançamentos longos, bolas alçadas em direção ao arco inimigo – o famoso “chuveirinho”, na linguagem dos boleiros.
Em vez do chuveirinho, ou da troca de passes curtos ou longos, o futebol brasileiro se caracterizou pela estratégia do drible, aquela que foi corporificada em sua potência mais ampla por Mané Garrincha. O drible consiste na tentativa de burlar o inimigo pelo deslocamento do corpo/bola para o espaço vazio, aquele onde o oponente não está e não pode chegar.
Ao subverter a norma da marcação (como faz a síncope) e propor o ritmo quebrado, necessariamente inusitado, capaz de deslocar o jogo para a brecha, Garrincha abre o campo, amplia o horizonte de possibilidades que, em suma, podem levar ao gol.
Surpreendentemente, entretanto, era comum também que Garrincha interrompesse a marcha em direção ao gol para retornar ao ponto de origem da jogada: o drible. Exasperados com o que aparentemente seria falta de objetividade do craque, alguns técnicos e comentaristas acusavam Mané de preferir, ao gol, a finta. E era isso mesmo. Garrincha era senhor do tempo da partida.
Garrinchar o pensamento é subverter a lógica do jogo e entender que o processo – drible – pode ser mais importante que o objetivo final: o gol. Arriscar o deslocamento para o vazio, fugir da previsibilidade, chamar o marcador para a roda, entender o que o corpo pede, transitar entre o atleta e o dançarino, ver na bola – o objeto – a flecha fulni-ô acariciando o alvo, refazer a jogada, produzir o espanto, gargalhar na cara do zagueiro, sincopar o tempo para encontrar, no próprio tempo, o ritmo adequado: é do jogo.
Falo de Garrincha e lembro que o futebol se espalhou no Brasil com notável rapidez e se impôs como um elemento catalisador das paixões brasileiras. O jogo se consolidou, ao longo do século 20, como elemento protagonista na produção de certo imaginário da brasilidade.
Nesse sentido, o futebol representou para o imaginário de um Brasil possível, no campo do esporte, algo bastante parecido com aquilo que a umbanda representou no terreno dos ritos religiosos. A popularização e o abrasileiramento do esporte inglês e a formação da umbanda ocorrem no mesmo contexto: o das primeiras décadas do século 20. O futebol e a umbanda se encontram na encruzilhada em que o brasileiro, nas frestas de um sistema excludente, apropriou-se do jogo britânico e do kardecismo francês para construir seus modos de jogar bola e conversar com os mortos.
A versão mais famosa para a criação da umbanda do Rio de Janeiro – uma espécie de mito de origem que não exclui os sentidos de diversos outros – remete ao dia em que no distrito de Neves, na cidade de São Gonçalo, em 1908, o jovem Zélio Fernandino de Moraes sofreu uma paralisia inexplicável. Depois de certo tempo sem andar, Zélio teria se levantado e anunciado a própria cura. No dia seguinte, saiu andando como se nada tivesse acontecido. A mãe de Zélio, Leonor de Moraes, tomou um susto e levou o filho a uma rezadeira chamada Dona Cândida, conhecida na região, que incorporava o espírito do preto velho Tio Antônio.
Tio Antônio baixou em Dona Cândida e disse que Zélio era médium e deveria trabalhar com caridade. Em 15 de novembro, por sugestão de um amigo do pai, Zélio foi levado à Federação Espírita de Niterói, difusora do kardecismo francês no Brasil. Chegando lá, o rapaz e o pai sentaram-se à mesa. Subvertendo as normas do culto kardecista, Zélio levantou-se subitamente e disse que ali faltava uma flor, deixando a turma do centro espírita sem reação. Foi até o jardim, apanhou uma rosa branca e colocou-a, com um copo de água, no centro da mesa de trabalho.
Ainda segundo a versão mais famosa para o acontecido, Zélio incorporou um espírito que batia no peito e dava flechadas imaginárias. Simultaneamente diversos médiuns presentes receberam caboclos, índios e pretos velhos. Instaurou-se, na visão dos membros da Federação Espírita, um furdunço inadmissível. Advertido pelo dirigente da Federação, o espírito incorporado em Zélio perguntou por que os kardecistas evitavam a presença dos pretos e caboclos do Brasil, pois nem sequer se dignavam a ouvir suas mensagens.
Um membro da Federação argumentou com o espírito que Zélio recebia, dizendo que pretos velhos, índios e caboclos eram culturalmente atrasados e não podiam, dessa forma, ser espíritos de luz. E perguntou o nome da entidade. O espírito encarnado em Zélio respondeu que daria início a um culto em que os pretos, índios e caboclos do Brasil poderiam difundir suas mensagens e cumprir missões espirituais. Disse ser o Caboclo das Sete Encruzilhadas, aquele capaz de percorrer todos os caminhos.
Estudiosos da história da umbanda, ao destrinchar o mito centrado na figura de Zélio, destacam que o buraco é mais embaixo e vai além da anunciação do Caboclo das Sete Encruzilhadas, talvez seu mais famoso codificador. A umbanda é um sarapatel que mistura ritos de ancestralidade dos bantos, calundus, pajelanças indígenas, catimbós (o culto de origem tapuia fundamentado na bebida sagrada da Jurema), encantarias, elementos do cristianismo popular, do candomblé nagô, das magias e dos sortilégios de ciganos, mouros e judeus, e do espiritismo kardecista europeu.
No mito da anunciação, o Caboclo das Sete Encruzilhadas estava insatisfeito porque o centro espírita não permitia a chegada dos espíritos de índios, caboclos e pretos velhos; preferia dar passagem apenas aos espíritos já vistos como desenvolvidos ou em processo de desenvolvimento e doutrinação. Na religião que o Caboclo das Sete Encruzilhadas anunciou, os espíritos daqueles que formaram o Brasil aos trancos e barrancos seriam bem chegados para dar passes, consultas, curar, dançar etc.
O futebol brasileiro popularizado está para o futebol inglês como certa umbanda para o kardecismo e o cristianismo institucionalizado. O futebol praticado aqui começava a ser visto como um jogo inglês subvertido, reinventado e encantado pelos modos brasileiros de jogar bola. O gramado/terreiro em que só dançavam na gira do jogo os jovens das elites e os trabalhadores europeus residentes no Brasil começava também a ser ocupado pelos descendentes de escravizados e de índios, pelos subalternizados no violento processo de formação do país e por quem mais resolvesse baixar na gira.
Quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 1958, o rei da Suécia cumprimentou todos os jogadores brasileiros. Entre eles Pelé, um descendente de bantos escravizados, e Mané Garrincha, um índio fulni-ô. O gramado, afinal de contas, também é uma das sete encruzilhadas percorridas pelo caboclo macumbeiro, aquele que nunca encontra caminhos fechados e lança suas flechas por pernas tortas, capazes de curvar monarcas e alargar o mundo.
Em que medida está na umbanda a chave para entender nossos modos sincopados de pensar e de jogar bola?
Luiz Antonio Simas é escritor e professor, mestre em História pela UFRJ