Estante Cult | Dimitris Lyacos, profeta e passadista

Estante Cult | Dimitris Lyacos, profeta e passadista
(Foto: Divulgação)

 

É sem dúvida o mais conhecido escritor grego contemporâneo. Nascido em Atenas em 1966, é poeta, dramaturgo, Fellow no International writing program da Universidade do Iowa, e estudioso — entre outras — da História das Religiões e… super cotado para o Nobel de Literatura. O livro que o tornou internacionalmente famoso, Poena Damni, foi escrito originalmente em grego, apesar do título em latim (não confundir, não é Poema, mas Pena do Danado, o que já não tem mais a esperança de ver Deus).

Escrita durante 30 anos, com a primeira das 80 resenhas que recebeu datando de 2011, após a primeira edição inglesa, a obra sai agora em português (sua 13ª língua) pela editora Relicário de Belo Horizonte, na tradução do poeta português José Luís Costa, conhecedor do grego moderno, entre outros idiomas. A edição não é bilíngue, condição sine qua non para traduções (e resenhas) de poesia, mas é que as três partes que compõem a obra (Z213:Exit; Com as pessoas da ponte e A terceira morte) não são exatamente poesia, são um seu sucedâneo pós-moderno em que a poesia se desagrega na prosa, no dizer da crítica

Numa espécie da eliotiana The Waste Land [de 1922], espapaçada (spappolata) [durante esses anos todos.] (…) Mas sei que o caminho que Lyacos escolheu é o caminho certo da escritura que pede ao leitor que desperte, pois os milhões de páginas de entretenimento não passam de um fru-fru para que não pensemos, para que enterremos a cabeça debaixo da areia (Giuseppe Montesano – Il Mattino, 21 jan. 2023).

Que escritura é essa que nos desperta para a época pré-apocalíptica que estamos prestes a viver ou que já estamos vivendo: catástrofes naturais, desumanidades, violência biológica, guerra…? Vale a pena conferir.

A quarta capa da edição brasileira que começa logo in medias res, sem introdução ou prefácio, apresenta sim uma síntese do conteúdo das três partes, mas as informações fornecidas nada nos dizem sobre a escritura. (1ª parte: o protagonista, um Ulisses contemporâneo, lançado num mundo sem deuses, arrasado por uma catástrofe bélica, encontra no bolso de um casaco velho que pertenceu a um soldado uma Bíblia cheia de anotações e resolve escrever um diário de sua fuga de uma morte coletiva; 2ª parte: a jornada do fugitivo prossegue em um mundo em que a morte é uma experiência reversível. O homem chega a um lugar envolto em escuridão, pontilhado de figuras humanas jogadas numa esquina, cães vadios e prédios degradados; um ambiente que logo se transforma em uma cena teatral…; 3ª parte: parece que o fugitivo encontrou um livreto durante uma viagem de trem e o livreto fala de um homem engolfado pela morte (um avatar de Filoctetes), até que um clarão o afasta de seu destino:

não no mundo
nem fora dele, mas no insubstancial ponto de colisão e de decolagem do mundo lá onde o grito é concebido a manivela comunga
e as rodas
instintivamente impelem
a cadeia de rodas para o infinito.

Curiosamente et pour cause essa síntese é talvez ilusória frente à nota explicativa que o autor — que quer se considerar o tradutor do autor —colocou no fim do livro:

Seria como recolher os pedaços de um objeto e transportá-los para outro lugar, para um espaço só meu, um lugar onde meu pensamento se desdobraria e se uniria a eles. (…) Eu desenhei um rudimentar mapa de sentido, seguindo um itinerário cotidiano entre as palavras, recomeçando vezes sem conta, tomando diferentes caminhos, anotando à margem sinais por palavras minhas (…) palavras-rostos desconhecidos que você associa a outros que conhece, dos quais compreende o que fizeram, ganhando dentro de ti um sentido conferido pelos seus atos. (…) Comecei assim a ordenar as palavras, descobrindo o que faziam. E acabei por construir um palco só meu, para que as palavras contracenassem numa peça destinada apenas a mim próprio. (…) A princípio tudo me era totalmente estranho, uma matéria neutra sem formas ou regras, sobre a qual apareciam vestígios de imagens, como um televisor estragado, imagens ocultas pela espuma e pelo ruído, cheias de buracos (…) As palavras me pareciam rejeitadas, despejadas para dentro do dicionário. Eram inúteis (…) E por terem sido inúteis por tanto tempo, depositei-as debaixo do poema, e dentro do poema talvez pudessem voltar a dizer aquilo que em outros tempos costumavam dizer – em vez de funcionarem como pequenos gritos, quero dizer – como assinala algures o autor do poema.

Vemos aqui um caso exemplar de escrito em que a forma é conteúdo, mas resta a pergunta fundamental: como o autor/tradutor escolhe essas palavras?

Quem nos dá, quiçá, um a resposta em chave psicanalítica é o precursor de Freud, o filósofo Arthur Schopenhauer que nos seus Complementos a O mundo como vontade e representação (Tomo II, Ed. UFPR, 2014, p. 215) explica:

A busca por um fio de memória [Faden der Erinnerung] se mostra de um modo peculiar quando se trata de um sonho do qual esquecemos ao acordar. Nesse caso, nós procuramos em vão por aquilo que há alguns minutos atrás nos ocupou com a força da mais nítida e brilhante atualidade, mas que agora desapareceu completamente. No entanto, tentamos encontrar alguma impressão que possa ter sido deixada para trás e pela qual encontraríamos o fio da associação para, dessa maneira, trazermos novamente o sonho à nossa consciência.

Justamente. A busca de Lyacos é mais peculiar ainda. É como se acordasse de repente, no meio da noite, com o sonho impresso em sua consciência e, para lembrá-lo na manhã seguinte, quando iria reconstitui-lo (nas três partes de sua obra são frequentes as referências ao sono, ao sonho, ao dormir, ao acordar), ele anota num papel algumas palavras, esses “ fios de memória” de que fala o filósofo. Mas, helás, quando finalmente tenta desenvolvê-los na narrativa sonhada, a memória não o ajuda. O que faz então? Junta essas palavras esparsamente, em versos, em grumos de versos, e lá elas permanecem como um tipo desvairado de poesia, onde há sons (gritos…), elementos arquetípicos, obsessões. Os corpos que a corrente impele, os apátridas (Peregrini Dedicitii), a aranha (que vem do interior e sobe…), Deus (enovelou-se ali gelado), o corpo decepado, com seus membros autônomos (… os braços se erguem/ as pernas caminham vão e encontram/ as suas novas roupas,/ as veias, a barriga verde), as gaivotas (que por vezes ele via ele/ meio comido pela ferrugem, meio afogado:/ Ulisses)… A lista é longa.

Às vezes, porém, ele consegue recapturar o sonho, ou pesadelo que seja. Aí sim, escreve em prosa articulada, mas os sonhos e pesadelos se repetem obsessivamente. Giram em volta dos marginalizados do mundo numa no man’s land, um mundo em que não existe o Bem, em volta do Antigo e do Novo Testamento, da tradição ortodoxa, de siglas (LG, NCTV) só decifráveis por ele, em seu palco — não por nada sua obra foi várias vezes teatralizada —, das ciências e filosofias do universo inteiro.

“Nada nesse livro é original”, dizia dele a primeira resenha de sua obra, escrita em 2011, por Robert Zaller, e ele retrucava : “a não ser, quem sabe, por engano”, na entrevista que ele deu, em 2018, a Calliope Michail. E acrescentava:

A originalidade como medida de excelência é um conceito romântico, desenvolvido ao longo do Modernismo e invocado à vontade pela pós-modernidade. (…) Valha, como exemplo, a tipologia dos ícones bizantinos em que a assinatura do artista é precedida pela expressão “pela mão de…”, mostrando que o artista não passa de um humilde instrumento.

É isso que Dimitris Lyacos quer ser, autor-instrumento de uma obra aberta, fragmentada, em que autor/tradutor e leitor colaboram entre si, surfiction, como a definiu o Historical Dictionary of Postmodernist Literature and Theater, ou sistema onírico-realista de alertas e ecos que não cessam de mudar e de cristalizar-se graças à ambiguidade dessas palavras… poéticas.

Aurora Bernardini é professora, escritora e tradutora. É doutora pela USP com tese sobre o futurismo russo e italiano e fez livre-docência na mesma instituição sobre a poeta russa Marina Tsvetáieva. Já traduziu mais de cinquenta livros, além de ter organizado obras como O futurismo italiano: manifestos, Mitopoéticas: da Rússia às Américas e A estrutura do conto de magia.


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