A era do descompasso
O escritor Cristovao Tezza (Foto: Guilherme Pupo)
A política é o assunto quase exclusivo entre os professores do curso pré-vestibular em que Cândido Lorpak ensina química – como seria, aliás, na maioria das rodas de conversa do Brasil em 2019. O próprio Cândido, porém, se mantém à parte das discussões sobre o primeiro ano do governo Bolsonaro. “Eu não tenho vida intelectual; eu só tenho vida afetiva”, define-se Cândido, nas páginas finais de A tensão superficial do tempo (todavia, 2020). A tal vida afetiva é assombrada por uma permanente carência, que terá desdobramentos autodestrutivos quando Cândido é abandonado por Antônia, mulher casada com quem teve um caso breve mas intenso (ou, pelo menos, que ele considerou intenso). Tal como os protagonistas de dois romances anteriores de Cristovão Tezza, O professor (Record, 2014) e A tirania do amor (todavia, 2018), Cândido, homem inteligente mas assombrado por inadequações sociais e existenciais, vê-se obrigado a resolver as mais profundas frustrações amorosas em meio às pressões da tumultuada realidade política brasileira – e Beatriz, a protagonista feminina de A tradutora (Record, 2016), reaparece aqui em papel secundário.
Catarinense desde a infância radicado na capital paranaense, Tezza encontrou em Curitiba o principal cenário para sua obra ficcional, uma das mais consistentes da literatura brasileira contemporânea. No novo romance, o autor tira excelente proveito da circunstância de sua cidade ser a sede original da operação Lava Jato. Antônia, a fugaz amante de Cândido, é casada com Dario, um procurador federal que é convidado para compor, em Brasília, a equipe do novo ministro da Justiça (o nome do hoje ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro não é citado). Dario hesita em aceitar a empreitada: tem grandes reservas em relação aos colegas que se empenham no combate à corrupção com espírito missionário, e considera o presidente um “débil mental”. O procurador entra na narrativa com o copo de uísque Jura na mão, e sai de cena completamente bêbado. É um homem patético, mas um personagem forte, representante exemplar de tantas respeitáveis figuras públicas que, entre o oportunismo e a covardia, embarcaram no descalabro bolsonarista. Dario afinal aceitará o cargo no governo, e o leitor atento às nervosas idas e voltas da narrativa já sabe disso quando ele aparece na história colocando três pedras de gelo no uísque (beber single malt com gelo, aliás, já é indicador de grave falha de caráter): pouco mais de quinze páginas antes, antecipava-se que Antônia deixaria o amante e iria para Brasília – acompanhando o marido, depreende-se.
Em uma ironia malandra, Cândido só ganha entrada no círculo social do procurador por causa de uma pequena ilegalidade: hábil pirata da internet, ele fornece filmes para sua aluna Líria, filha de Dario. Para fazer um agrado à madrasta, que gosta de “filmes antigos”, Líria pede ao professor de química que baixe Elevador para o cadafalso, de Louis Malle. Antônia, claro, encomendará mais filmes, já sem a intermediação da enteada, e então começa o caso entre ela e Cândido. O primeiro encontro dos amantes se dá na noite em que o marido embriagado desanca o governo para o qual irá trabalhar. Nessa ocasião, reúnem-se no amplo apartamento do procurador amigos de Líria, quase todos filhos de figurões do judiciário, e muitos deles entusiastas do governo. A reunião é uma peça acurada de observação social, com alguns dos melhores diálogos do romance. “Um vagabundo entra na tua casa, estupra a tua mulher, mata a tua filha, e você faz o quê? Chama os direitos humanos? Você tem mais é que descarregar o trinta e oito na cabeça desse filho da puta”, diz um rapaz. “Meu Deus, que horror!”, reage uma jovem carola, e Cândido não consegue decifrar se ela se horroriza com o estupro ou com a vingança armada.
O professor de química só se converteu em ás da pirataria digital para atender à compulsão cinéfila de sua mãe, Lurdes, reclusa octagenária cujo único prazer na vida são os filmes. Os palpites críticos ao mesmo tempo sensíveis e simplórios de dona Lurdes, as inflamadas discussões entre um desencantado professor veterano e sua colega bolsonarista, as divagações dos amantes na cama do motel, as notas técnicas de Cândido sobre a sincronização de som, imagem e legenda em filmes pirateados – Tezza conjuga esses elementos heterogêneos com impecável habilidade narrativa, alternando dinamicamente diferentes perspectivas e planos temporais. No entanto, a articulação entre o drama pessoal do protagonista e o cenário histórico em que ele está imerso, muito bem construída em romances anteriores, aqui se revela frágil. Tão ingênuo quanto o personagem de Voltaire de quem herda o nome, Cândido, como um inseto sobre a água, não consegue romper a tensão superficial que o aliena de seu próprio tempo (daí o título do romance). Por contraste, Heliseu, de O professor, era um homem em permanente choque com o sua época – o que tornava sua figura áspera estranhamente mais cativante do que o dócil Cândido. Ainda que o professor de química também tenha seu lado sombrio, permanece um descompasso estrutural entre herói tão delicado e tempo tão violento. Talvez por isso se encontre, nas frases finais de A tensão superficial do tempo, um tênue aceno de esperança para o personagem – mas não para o seu país.
A tensão superficial do tempo
Cristovão Tezza
Todavia
272 páginas – R$ 51,92
Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor, autor de Os dias da crise (Companhia das Letras, 2019)