A criminalização da homofobia

A criminalização da homofobia
O que motiva a busca da proteção da Lei é o desespero ante uma humanidade que demora a se tornar melhor (Arte Andreia Freire/Revista CULT)

 

O tema político de fevereiro, noves fora as histórias picantes do cabaré político nacional que não fecha nunca, foi a “criminalização da homofobia”. Este, que à primeira vista é mais uma pauta do âmbito dos costumes e não da política em sentido estrito, tem sido na verdade um tema-chave da política nacional. Afinal, quem ganhou a última eleição não foi a direita convencional, antiestatista e pró-negócios, mas os conservadores de direita, para os quais os temas morais no âmbito dos costumes são o principal problema do país, quiçá da humanidade. Pelo modo como se comportam desde a implantação do governo Bolsonaro, parece mesmo que essa gente entende o êxito eleitoral como a aquisição inquestionável de uma prerrogativa civilizacional, o direito de converter para as suas crenças e convicções toda a nação.

De fato, para um Vélez Rodrigues, uma Damares Alves, um Ernesto Araújo, um Ricardo Salles, um general Heleno, não foi apenas uma vitória em uma eleição democrática que dá ao vencedor, no máximo, o direito de governar, porém dentro dos limites constitucionais e de um sistema de pesos e contrapesos, mas uma conquista, que concede ao vitorioso o direito de impor a sua fé e o seu modo de vida aos conquistados. Ou a proceder expurgos de outras visões de mundo ou marginalização de outros estilos de vida.

A questão homossexual está para a reinante direita conservadora brasileira como, dadas as devidas proporções, a questão judaica esteve para a vencedora direita europeia da primeira metade do século passado, ou como a questão dos migrantes está para a hegemonia da direita nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Itália, por exemplo. Trata-se do Grande Pretexto Moral, usado para exemplificar o que há de errado com a sociedade que se pretende reedificar em outras bases morais e políticas. Um universo sem o custo econômico e social da migração e sem o controle dos europeus sobre a vida britânica foi a narrativa vitoriosa no Brexit. Uma Alemanha fora do domínio pervasivo dos judeus na economia e na vida nacional foi a narrativa vitoriosa na ascensão nazista.

Já no Brasil tivemos a impressionante vitória de uma paradoxal narrativa em que maiorias reais se vendem como minorias e minorias reais são vendidas como maiorias assustadoras que as sitiam. Assim, as mulheres de família se viram, de repente, lutando por sua própria sobrevivência ante o cerco de uma superpotência política e moral denominada “feminismo”, que impõe a ferro e a fogo a sua doutrina e modo de vida conhecida como “ideologia de gênero”. Que não apenas quer embaralhar todo o conhecimento da ordem natural das coisas na relação entre os gêneros e papéis sexuais, como também quer induzir as crianças a se tornarem, imaginem só, feministas. Do mesmo modo, os poucos e resilientes heterossexuais foram, durante as trevas infernais dos governos comunistas, acuados por hordas poderosíssimas de homossexuais, praticamente forçados à conversão, e, horror dos horrores, impedidos até mesmo de os ofender e humilhar publicamente. Assim se montou a paradoxal dramaturgia em que gayzistas e feminazis – ou a ditadura gay e a ideologia de gênero – praticamente dizimaram os heterossexuais, a família no modelo bíblico e as mulheres cristãs que depilam as pernas e só querem cuidar das suas famílias.

Além disso, a fantasia do “avanço da homossexualidade” vem servindo, pelo menos desde 2011, como agregador e mobilizador para a formação de uma militância contra os direitos dos homossexuais e contra o reconhecimento social dos LGBTs. Um curioso ativismo, de ideias velhas, baseadas principalmente no fundamentalismo evangélico, e práticas novas, uma vez que é basicamente digital. Claro, a recente mobilização política dos conservadores depende também de outras quimeras convenientes, tais como “a opressão do politicamente correto”, a “conspiração e cerco comunistas”, “a intentona feminista”, “a doutrinação ideológica dos professores de esquerda”, “a pedofilia e erotização das crianças” e outras que agitam o imaginário da direita. Lembremo-nos, contudo, que na cronologia das forças que se aglutinaram no bolsonarismo, por volta de 2016, o ativismo anti-gay é um dos núcleos militantes mais antigos e mais bem articulados. E que, portanto, a reação contra os homossexuais é parte fundamental do DNA do bolsonarismo.

Nessa circunstância, é natural, portanto, que o tema da “criminalização da homofobia” funcione como pedregulhos lançados no telhado de zinco do galinheiro dos conservadores de direita. A cada rajada de pedras segue-se um alarido dos infernos, que cessa apenas quando as pedras deixam de explodir no zinco acima das cabeças dos galináceos. No momento em que escrevo esta coluna, as pedras ainda estrondam e a cacofonia, testemunhada sobretudo nos ambientes digitais, é extrema, enquanto no STF o jogo que realmente conta ainda está sendo jogado. Os meus eventuais leitores é que terão o privilégio de saber como terminou essa rodada, e por quanto tempo o histérico alarido se propagou. De toda sorte, a enunciação da “criminalização” da homofobia, considerando os nervos expostos da interminável campanha política brasileira, é ferro em brasa.

Paradoxalmente, mesmo da perspectiva da esquerda, que por suposto detesta a homofobia, a ideia de “criminalização” em geral é desconfortável. A criminalização é um tema e um desejo da direita, que acredita piamente ser este um fármaco universal, receitado para todo problema social, inclusive para os problemas resultantes dos irresolúveis desacordos morais da sociedade brasileira. Querem criminalizar o ensino de valores liberais, humanistas e iluministas nas escolas, querem criminalizar o aborto em quaisquer circunstâncias, querem criminalizar tudo de que não gostam. A Constituição pode, em muitos casos, ser um estorvo; bastava-lhes o Código de Direito Penal.

A ideia, portanto, não é fácil nem simples, e as divergências podem ser muitas. Ainda mais que o mandado de injunção – MI 4733 – e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão – ADO 26 –, que o STF está julgando, demandam explicitamente “a criminalização de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas, das agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima”.

Fiquemos, entretanto, com o que nos une, nós os liberais de esquerda. Se a discriminação, o insulto e a ofensa raciais não fossem tão disseminados neste país, os negros e afrodescendentes não precisaríamos da Afonso Arinos (1951), da Lei Caó (1985), da 7.716/89, do § 3º do art. 140 do Código Penal e, principalmente, dos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição Federal. Notem a pilha de normas de que precisamos, e que foram providenciadas ao longo do tempo, para fazer uma barricada contra o racismo e ganhar um espaço de respiro para os não brancos neste país. Da mesma forma, se qualquer um não se sentisse no direito de insultar e humilhar homossexuais, de discriminá-los e segregá-los, contando com isso com grande complacência social, e se tantos não se sentissem autorizados a atacá-los e matá-los, eles também não precisariam tão desesperadamente do amparo da lei.

Está certo, a criminalização da homofobia (por analogia ao inc. XLII do art. 5º da CF), per se, não resolve o problema social da homofobia. Quem odeia, despreza ou tem repulsa por homossexuais, pela homossexualidade ou por transgêneros não mudará de sentimento ou atitude simplesmente por força de lei. Mas, pense um pouco. Você acha que transformar a segregação racial em contravenção (Afonso Arinos) ou criminalizar a prática do racismo (Constituição de 88) são ou não importantes para evitar que racistas saiam por aí ofendendo, humilhando e atacando explicitamente negros, como se isso nada fosse?

Quando dos debates sobre a Afonso Arinos, no início dos anos 1950, o deputado Plínio Barreto, relator na CCJ, disse sobre os preconceitos de raça ou de cor: “Nunca haverá leis que os destruam. Nunca houve lei alguma que pudesse desarraigar sentimentos profundos e trocar a mentalidade de um povo. Mas não impede que, por meio de leis adequadas, se eliminem algumas das manifestações públicas desse preconceito”. Pois é.

Portanto, que ninguém venha com “essas coisas não se mudam com lei”, “criminalizar a homofobia é um passo além da necessidade”, “não é com direito penal que se resolvem as coisas”. O que motiva a busca da proteção da Lei é o desespero ante uma humanidade que demora a se tornar melhor. Assim como a pilha de leis citadas contra o segregacionismo e o racismo pelo menos civilizou as relações raciais públicas e garantiu aos negros pelo menos uma esfera protegida da ofensa e do desrespeito – imperfeita, sim, mas efetiva –, é justo que a sociedade brasileira dê às pessoas LGBTs uma lei que lhes assegure o direito de não serem insultados, ofendidos, agredidos, discriminados e mortos apenas por serem quem são. Independentemente de como o STF ou o Congresso resolvam a questão, o chocante não é que se reivindique que os direitos fundamentais dos homossexuais sejam respeitados. Espantoso é que em pleno século 21 ainda se precise, desesperadamente, reivindicar o amparo da lei para assegurar uma vida digna e, mais que isso, uma vida segura, para uma parte importante da sociedade.


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