Corpos marcados para morrer

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Corpos marcados para morrer
(Arte Andreia Freire/ Revista CULT)

 

Às execuções a céu aberto somam-se matanças invisíveis: essa constatação, um verdadeiro soco no estômago, situa a discussão proposta por Achille Mbembe, em Necropolítica, datado de 2003 e publicado no Brasil em 2016, na revista Arte & Ensaios (UFRJ). Ao reconhecer as premissas desse ensaio, defrontamo-nos com o dever ético de questionar quais as condições concretas em que se exerce o poder de fazer morrer, deixar viver ou expor à morte, bem como os modos de sua exequibilidade. No Brasil, o extermínio de pessoas mostra a sua face no discurso corrente da guerra às drogas, justificativa, por excelência, para o exercício do necropoder. A ideia da política como guerra articula necropolítica, estado de exceção e ficcionalização do inimigo, construindo as bases normativas para o direito de matar. Há um tempo e um espaço definidos para exercício do necropoder. Há vidas e corpos que são escolhidos e marcados para serem expostos à morte ou diretamente executados.

Fundamentada no slogan de guerra às drogas, uma autorização para eliminar o inimigo é dada de maneira tácita pelo Estado, que identifica o traficante de drogas, localiza-o nas favelas, comunidades e quebradas e expõe um corpo negro, submetido e algemado, nas diversas imagens da mídia. Gênero, raça e classe se entrelaçam na ficcionalização do inimigo, excluindo, por conseguinte, os corpos e espaços que escapam ao enquadramento já prescrito. O dano colateral, como em qualquer guerra, parece legitimado: todos os dias, alguns poucos inocentes morrem em função da finalidade maior de defender a segurança pública – afirmação irônica e perigosa. Como consequência, jovens negros são diariamente assassinados em uma exposição à morte – direta ou indireta – cujos agentes apenas informam que havia suspeita de envolvimento com o tráfico de drogas ou que as balas perdidas vinham das armas de bandidos. Nessas situações, o necropoder faz continuamente referência – e faz recurso sempre – à exceção do momento, à urgência da ação e à imagem do inimigo.

A necropolítica pode ser pensada como uma relação entre política e morte em sistemas sociais que não podem funcionar senão em estado de urgência e que discriminam as vidas que serão cuidadas, protegidas, multiplicadas, das vidas que serão expostas à morte, seja por serem identificadas com o inimigo que ameaça a coesão da sociedade, seja por fazerem parte do grupo que é eliminado em uma guerra que escolhe seus inimigos. Nessa economia, se faz a regulação e a distribuição da morte e do encarceramento. Uma necropolítica que é efetivada pelo Estado – mas não só –, que identifica e localiza, controla e destrói os corpos em que essa vida é exercida. Sob a justificativa da guerra às drogas, uma territorialização é efetivada, delimitando o espaço em que esses corpos circulam – favelas, comunidades e quebradas – e daí concluindo o desvalor dessa vida.

É nesse sentido que o pensamento de Judith Butler, com os corpos que importam e as vidas passíveis de luto, pode nos ajudar a refletir sobre o genocídio negro na guerra às drogas. É também aí, nesse ponto, que Jacques Lacan, ao apresentar a lógica intersubjetiva, permite pensar em uma teoria do reconhecimento do humano. Uma vida específica não pode ser considerada perdida se não for primeiramente considerada viva, nos diz Butler. Mas o que é uma vida humana? Como reconhecemos uma vida humana? Como ato ou prática, o reconhecimento necessita de ao menos um outro para se efetivar, em certa relação de reciprocidade, seguindo a tradição hegeliana. Mas o que justifica a distribuição diferenciada de reconhecimento? Como não há uma indignação geral diante do extermínio e morte diária de jovens negros? Como não há revolta social diante do genocídio da população negra por meio do assassinato de homens jovens negros e encarceramento de mulheres jovens negras, a cada dia, a cada ano? O tempo parece suspenso, passado e futuro se enlaçam na necropolítica cotidiana.

Histórica e politicamente é construída certa inteligibilidade, modos de reconhecer quais corpos e vidas são humanos. Ou seja, uma vida tem que ser inteligível como uma vida humana, tem de ser apreendida segundo certas regras ou normas que preparam o caminho para a aceitação de seu valor de vida a ser preservada. Retirados desse enquadramento, alguns corpos serão expostos à morte, conduzidos à morte, sem que sequer haja a admissão de que ali houve um assassinato, uma morte humana. Pura e simples eliminação do vivo. Para que uma vida seja deslegitimada como humana, diferentes procedimentos se articulam: a animalização, a objetalização, a abjeção, a construção de um inimigo mostram-se como recursos de grande impacto. Como bicho ou coisa se designa algo que já não mais se encontra sob o registro do humano, do semelhante. Não há qualquer vínculo comum entre o eu e o ele; ou entre o eu e o isso, que sequer pode ser claramente nomeado. Sem admissão da humanidade em jogo, abre-se o campo para a violência e o extermínio. Esses diferentes modos de exclusão do registro da humanidade inserem tais corpos e vidas em outra inteligibilidade, transformando-os discursivamente em vidas destrutíveis em potencial e corpos marcados para morrer. Essas vidas, diferentemente da vida nua – no diálogo de Mbembe com Giorgio Agamben –, não se encontram fora da pólis, em um estado de exposição radical. Elas estão colocadas, submetidas, constrangidas por relações de poder em uma situação de vulnerabilização específica e forçada: zona de anomia e territorialização da morte.

O impasse é que para essas pessoas e grupos populacionais o recurso ofertado é recorrer ao Estado que, por vezes e muito frequentemente, é o agente das violações de direito e das violências arbitrárias. Existem justificativas formais e por vezes legais para a realização dos atos de violência, que, segundo tais ideias, não se ampliarão. Nova falácia que permite que o estado de exceção se faça a cada dia – temporal e territorialmente construído – na aparente normalidade cotidiana. São modos e lugares de vida onde a opressão é exercida e a miséria vivenciada como uma diferença quase natural, biologizada, racializada, gentrificada nos piores moldes da eugenia social. Em tempos atuais, as comunidades, favelas e quebradas são o lugar por excelência da segregação e violação de direitos, lugar de extermínio e morte, seja a céu aberto, seja entre desaparecimentos que jamais são elucidados, em nome da guerra às drogas. Diariamente, nesses espaços, o Estado aparece em sua dupla face: de um lado, ausente e anônimo, não ofertando condições mínimas – sociais, políticas, de saúde, educação e cidadania – para afirmar e possibilitar que vidas humanas sejam ali reconhecidas, preservadas e protegidas; de outro lado, o Estado dá a ver a sua face mais violenta – escrutina e divide o espaço da comunidade em compartimentos, os quais são regulados pela força, pela presença constante e imediata de seu braço armado. A vida cotidiana é militarizada, as instituições civis locais são sistematicamente destruídas, a morte – sob a forma de combate, resistência à prisão, execução e desaparecimento – se faz a cada dia. E o mapa da violência revela: nas diversas comunidades pacificadas o número de mortes aumentou, tema da pesquisa de mestrado da vereadora Marielle Franco (“UPP – a redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro”, UFF, 2014).

Em nome do combate ao tráfico e da manutenção da ordem e da sociedade, afirma-se um estado de exceção no qual os controles e as garantias da ordem judiciária podem simplesmente ser suspensos e não mais se distingue norma e exceção. Espaços que passam a ser governados, na ausência absoluta de regulação legal, pelo exercício direto da força sobre essas vidas, não mais reconhecidas como humanas. A condição de aceitabilidade da morte, a recusa ao luto ou, em seu contrário, a comoção social do luto, articula-se com o reconhecimento ou não reconhecimento de uma vida como vida humana, de certa semelhança entre o outro e eu, de certa pertença a uma classe comum. É nesse aspecto que a lógica intersubjetiva, proposta por Lacan ao apresentar a antecipação temporal como constitutiva do que se reconhece como humano, permite levar adiante esse questionamento. 1º – Um homem sabe o que não é um homem; 2º – Os homens se reconhecem entre si como sendo homens; 3º – Eu afirmo ser homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem. É por uma afirmação subjetiva – que antecipa o risco de não reconhecimento por parte do outro – que o sujeito aí se faz incluir, em uma busca por aproximação ao humanamente reconhecido ou instituído por essa asserção. O humano, sem características que o definam precisamente e de uma vez por todas, é, por excelência, campo político de invenção: inventa-se a coletividade, a comunidade, mas também se inventa a exclusão. É necessário, seguindo a lógica lacaniana, que haja reconhecimento e reciprocidade nessa relação. Mas, e se não houver reconhecimento? Se, nessa lógica intersubjetiva, nas premissas que possibilitam saber o que é um homem, se eu, um outro ou um grupo for excluído do registro do humano, o que decorre? A barbárie; a retirada de direitos humanos, com o auxílio de dispositivos e procedimentos jurídicos e políticos que sustentam essa supressão e que implicam a exclusão dessas vidas e corpos do registro humano. A animalidade, o biologicismo colocam-se à espreita, dando base para a construção de um sistema político que faz da indefinição do humano, da necessidade de construção de um reconhecimento sobre o que é o humano, um campo de exclusão e de violências: não são pessoas, são presos, criminosos, traficantes; são animais, anormais, aberrações, equívocos genéticos. Não são humanos.

Um sistema político sustentado pelo necropoder reduplicará o corte no tecido social que definirá o humano pelo biológico: o racismo aí se apresenta como estratégia por excelência da distinção e hierarquização do humano. Por meio do racismo, no contínuo biológico da espécie humana, se produz uma fragmentação, uma distinção entre grupos e raças que permite e justifica um tratamento diferenciado e que, em última instância, possibilita decidir sobre quem deve morrer e quem deve viver. E, portanto, permite definir que vidas devem ser protegidas e que vidas serão expostas. Quais corpos são aceitáveis, quais corpos são descartáveis. Nas palavras de Mbembe, “a política da raça é, em última instância, ligada à política da morte”; um modo de regular e distribuir a morte entre pessoas e grupos populacionais específicos, o que torna possível – e, sob certo aspecto, deixa à mostra – as funções mortíferas do Estado.

Nesse contexto, é interessante retomar a argumentação de Mbembe no que diz respeito à identificação e localização do inimigo no tecido social. A raça, o recurso ao biológico, ao que se dá a ver, permite a identificação clara, visual e imediata do inimigo. Ainda que se confunda um guarda-chuva com um fuzil e um celular com uma pistola… A imagem do inimigo já havia sido construída: em local suspeito, com aparência duvidosa, o medo e a raiva transmutam-se em certeza. E mais uma vida negra é ceifada. No campo da percepção, a noção do humano reconhecível se forma e se reitera, em oposição àquilo que não pode ser nomeado ou encarado como humano: o inimigo. Nesse campo, o enquadramento do olhar produzido pelas diversas molduras sociais – na mídia, na fotografia, nos trajes característicos de uma dada cultura – estrutura uma interpretação. Raça, classe e gênero se entrecruzam, como modos de reconhecimento e exclusão do humano que se sustentam no corpo. Ao identificar o outro como perigo, como um atentado contra a vida, estabelece-se uma reação de defesa em que a eliminação do outro parece necessária, pois implica minha segurança e a manutenção de minha vida e da vida de meu grupo. E se conclui que os homens de bem devem sustentar a guerra às drogas, decidir pela eliminação disso que corrói a sociedade: não há, nem mesmo no horizonte, qualquer acordo de paz. É uma guerra que só acabará com a total eliminação do inimigo: genocídio. E, no Brasil, genocídio negro.

Em uma luta cotidiana, podemos extrair consequências políticas da articulação conceitual entre biopoder, necropoder e genocídio da população negra sob a bandeira da guerra às drogas. Há que se discutir seriamente a legalização e regulamentação do uso de drogas. Há que se combater a todo momento a criminalização da pobreza e sua segregação em territórios predeterminados. Há que se romper definitivamente a associação entre crime e cor. E talvez um efeito possível da constituição de uma política que não se afirme como política de guerra e de oposição seja o reconhecimento da alteridade e afirmação da singularidade por meio de uma necessária aproximação entre humanidade, subjetividade e cidadania.

Suely Aires é psicanalista, professora do Instituto de Psicologia da UFBA, autora de Sujeito, clínica e psicose: entrelaçamentos (Mercado de Letras)


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