As perversidades do Estado penal

As perversidades do Estado penal
Homenagem à socióloga e vereadora Marielle Franco na escadaria da rua Cristiano Viana, em São Paulo (Foto: Claudia Barbosa/Pexels)

 

A execução da vereadora Marielle Franco do PSOL, na noite de 14 de março de 2018, no bairro do Estácio, a cerca de 300 metros do prédio da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, nos leva a algumas reflexões. Em primeiro lugar, os diferentes papéis que ela ocupava por ser mulher, mãe, negra, ex-moradora da favela da Maré, lésbica, assessora parlamentar por mais de uma década e a 5ª vereadora carioca mais votada nas eleições municipais de 2016.

Em 2014, Marielle defendeu sua dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal Fluminense (UFF), com bolsa da Capes. A hipótese central do trabalho é a de que as Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), que se definem como uma política pública, reforçam o “Estado penal” integrado ao projeto neoliberal. Criado pelo sociólogo francês Loïc Wacquant, o conceito demonstra como, no regime capitalista, o Estado está a serviço do poder econômico, “garantindo” a segurança dos chamados “cidadãos de bem” ao atuar no sentido de exterminar os que estão à sua margem, ou seja, os pobres, os favelados e os negros.

A dissertação UPP – A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, de Marielle Franco, foi transformada em livro, publicado em novembro de 2018 pela n-1 edições. Todo o dinheiro obtido com a venda dos exemplares foi revertido à família da vereadora.

Marielle analisou os documentos de criação das UPPs e os discursos motivadores de sua implantação. A primeira parte da ocupação militar federal na favela da Maré ocorrera em 2008, ainda de modo informal. Se não fosse pelo gigantismo da força policial dentro da comunidade, a população acharia que era mais uma das tantas intervenções que já haviam acontecido por lá. O projeto não contou com a participação dos moradores em sua elaboração, tampouco em sua execução. Na prática, não havia diferença entre aquela ação oficiosa e a das outras invasões policiais no local. Quando Marielle escreveu sua dissertação, a presença da UPP na Maré já estava oficializada, mas os resultados dessa política não foram objeto de sua análise.

O projeto de UPP Social, feito para atuar paralelamente à política de intervenção militar, entrou na favela somente em 2011, evidenciando um vácuo de três anos. Interrompendo suas atividades entre o final de 2012 e o início de 2013, a UPP Social não apresentou nenhuma política cultural para a localidade nem coibiu a atuação repressora da UPP, que proibiu atividades culturais como os bailes funk, o forró e o pagode nas praças. Em momento algum a UPP rompeu com a política hegemônica em curso, optando por apresentar-se como um modelo não somente higienista, que “limparia” a cidade para a Copa e os Jogos Olímpicos, como também mercantilista (tarifas da Light, da NET e de outras prestadoras de serviço passaram a ser cobradas e até mesmo o McDonaldʹs entrou nas favelas) – o que prejudicou os empreendimentos locais, como os serviços de transporte e alimentação.

O discurso largamente difundido pela mídia hegemônica, de que com a UPP não haveria mais violência, elevou sobremaneira os preços dos imóveis nas favelas – o que levou à remoção das populações com menor poder aquisitivo, que venderam seus imóveis e se mudaram para áreas mais distantes de seus trabalhos. A sensação de segurança produzida pelos meios de comunicação proporcionou o investimento de conglomerados estrangeiros necessários para megaeventos.

Em sua dissertação de mestrado, Marielle demonstra que a ação das UPPs ocasionou o aumento da violência em suas áreas de atuação, resultando em um número grandes de mortes e de desaparecimentos: “Ao comparar os índices de desaparecidos no ano anterior à instalação da UPP no território, no ano de inauguração e no ano subsequente, os números chamam atenção. A soma de casos de desaparecimento no ano anterior à instauração da UPP é de 85. No ano de instauração, cai para 77. No ano subsequente, se eleva para 133. Dessa forma, entre o ano de instauração e o seguinte, há um crescimento na ordem de 72,7%”. Além de denunciar as ações violentas, Marielle apresenta algumas propostas de intervenção, a fim de construir mecanismos possíveis para o acesso da população à segurança pública, como a retirada do poder bélico dos grupos criminosos; a ampliação do associativismo e da cidadania ativa nestas áreas; a desmilitarização da PM; a extinção dos aparelhos bélicos, como os helicópteros, drones ou armas de guerra; o planejamento de ações voltadas para a cultura, educação e saúde; a instituição de procuradorias e defensorias públicas dentro das favelas; e a legalização dos espaços comerciais na localidade.

A execução de Marielle foi um espetáculo de horror. No dia anterior, todas as câmeras do bairro do Estácio, onde ela foi executada, pararam de funcionar. O atirador profissional com uma submetralhadora, calibre 9mm – de que somente as forças de segurança (policiais militares e federais) dispõem –, disparou sete tiros em um segundo, com o carro em movimento. Uma cena cinematográfica. Marielle foi atingida quatro vezes entre o olho direito e o pescoço. No carro – no qual estava o  motorista Anderson Gomes – havia a marca de mais três disparos, que o mataram também.

A investigação da execução de Marielle está sob a responsabilidade do governo Temer, uma vez que o estado do Rio de Janeiro vive, desde fevereiro de 2018, uma intervenção militar federal. Até agora não há pista dos assassinos. Talvez, no lugar de querer saber quem foi a pessoa que a executou, seria possível fazer outra pergunta: a quem interessa sua morte? Enfim, o projeto das UPPs  não mudou a ação do crime. Em qualquer favela carioca, é possível ver o tráfico atuando ao lado dos policiais militares, quando não em conjunto. As UPPs objetivam ocupar as favelas, mas não eliminar o tráfico de drogas. Trata-se de uma megaempresa que beneficia vários segmentos da sociedade, inclusive o aparato policial e setores do governo. A repressão ocorre somente nas favelas e periferias.

A proposta de Marielle era produzir mecanismos de pressão social para superar o modelo do Estado neoliberal, denunciado como assassino. Marielle morreu na luta contra o seu maior inimigo desde que nasceu. No entanto, as forças não atuam somente no sentido repressor. As forças de resistência também nos constituem. O legado de Marielle como vereadora foi marcante e seus reflexos ainda se fazem presentes. A equipe de gestão da vereadora criou um site para que a população possa pressionar os outros vereadores a aprovar os projetos apresentados por ela em 2017. (Leia mais na página 15).

Finalizo citando excerto extraído do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos do Brasil: “Há várias maneiras de narrar a história de um país. Uma visão sempre esquecida, conhecida como a ‘óptica dos vencidos’, é aquela forjada pelas práticas dos movimentos sociais populares, nas suas lutas, no seu cotidiano, nas suas resistências e na sua teimosia em produzir outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outras percepções. Práticas que recusam as normas preestabelecidas e instituídas e que procuram de certa forma construir outros modos de subjetividades, outros modos de relação com o outro, outros modos de produção, outros modos de criatividade”.

A potência de vida que Marielle afirmava não morreu – é nossa!

*Texto atualizado em 7/11/2018


Joana Ferraz é doutora em Ciências Sociais pela UERJ e professora adjunta da UFF


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