Corpos, fliperama e perplexidade

Corpos, fliperama e perplexidade
O poeta Arthur Lungov, autor de 'Corpos', lançado pela Quelônio (Foto: DIvulgação)

 

 

“Real ou imperial, quem detém o poder só encontra de fato, no espaço, obediência à sua potência, portanto à sua lei: o poder não se desloca. E, quando o faz, avança sobre um tapete vermelho. Assim, a razão só encontra a sua regra debaixo dos seus pés.”
Michel Serres, em Filosofia Mestiça: Le tiers – instruit

 

María Zambrano, exilada em Porto Rico, em 1958, escreve entre as noções de “pessoa” e de “democracia”, que o decisivo de nossa época é, sem dúvida, a consciência histórica que, por sua vez, nos lança a esta dimensão irremediável: a história. E isto sem a banal fatalidade produzida por uma ideia de destino ou de deuses que, de todos os modos, facilitam a explicação do que nos acontece conformando-nos num sentido amorfo, logo sem revolta. Conformação que nos retira, também, qualquer desenho, rosto ou figura do tempo que construímos e vivemos; e conclui que, assim, “não há lugar para perplexidade”. Um impasse que projeta pensar, por exemplo, sobre algum “vagido indomável” que o poema possa cumprir, como coragem e tarefa política. Maria Filomena Molder lembra que “o poema não tem mão no imediato, […], mas na desmedida das mãos que se apresentam fortes e hábeis, há uma nudez que tende para a dissolução da figura poética.” E, mais ainda, entende o poema, leitora exímia e inventiva de Walter Benjamin que é, como “uma unidade forjada pela violência de seus elementos”, sem guarida, catarse ou libertação do poeta, mas sim diante de um abismo – do mundo, da vida, da linguagem – como se continuasse a nadar apenas para não morrer.

A imagem é linda: nadar com a cabeça fora da água, costume dos povos arcaicos, solitariamente, em rios largos e impetuosos ou mar agitado, e assim recusar a piscina porque é apenas nela que existe chão para o nadador, ou seja, a piscina não passa de “um território para pedestres em massa”, o que não é, nem de longe, o caso do poema e nem muito menos caberia ao poeta. Repare-se, numa dimensão às avessas, que mesmo naquilo que se toma como “popular”, a letra da canção de Leo Masliah, Birromes y servilletas, traduzida literalmente por Carlos Sandroni, Guardanapos de papel, gravada por Milton Nascimento em Nascimento [1997], tem-se um pequeno e singular dilema a este “vagido indomável”: “Na minha cidade tem poetas, poetas / Que chegam sem tambores nem trombetas. / […] / Não desejam glórias nem medalhas, medalhas / Medalhas, se contentam / Com migalhas, migalhas, migalhas / De canções e brincadeiras com seus / Versos dispersos, dispersos / Obcecados pela busca de tesouros submersos / Fazem quatrocentos mil projetos / Projetos, projetos, que jamais são / Alcançados, cansados, cansados nada disso / Importa enquanto eles escrevem, escrevem / […]”.

Isso, lentamente, deixa em pasmo e assolamento, porém com muito ânimo, a circunstância pânica do trabalho com a linha errada do poema de quem terrivelmente a suporta com força e sentido, porque sabe, que antes e depois do “golpe decisivo”, o que vem – como demora ou morada, numa hospitalidade radical – é o contorno de uma solidão insuperável entre liberdade de invenção e pensamento: fazer o impossível [tendo em vista, sempre, que fazer o possível e não fazer nada dá no mesmo e apenas mantém um programa de possíveis, cartografia de um sistema de possíveis etc.]. No meio disso, a sobra é o frangalho de quem arma um corre-corre diante do óbvio, das falas e do vocabulário dos dias, propaganda e consumo, truque e o mapa do mundo [controle e poder] com palavras-chavão e frases-feitas que são registradas como desobediência, mas simploriamente para ajustar-se àquilo que se presta como obediência, tal como indica Pasolini: “é o signo dominante desse modelo de falsa ‘desobediência’ em que consiste hoje a velha ‘obediência’.”

Agora, diante desses “dias fatais”, quando as multiplicidades estão mais ajeitadas  em suas conformações reificadas, tome-se a dilação do monstro (da esfinge ao centauro, do animal a donzela, da besta ao anjo, do inerte ao vivo, do miserável ao louco, do rei ao palhaço etc.), numa retratação, para que se possa tocar alguma neutralidade indulgente diante das pequenas coisas e algum milagre laico. Os livros de poemas de Arthur Lungov, Corpos (Quelônio), e de Fabiano Calixto, Fliperama (Satã Corsário), recém publicados, por exemplo, podem fazer parte de uma disposição à alegoria do pessimismo histórico, porque são tomadas de posição e consciência sem olhos limpos ou inocentes frente à mentira que paira sobre nós como modelo de vida. Esta recusa que armam – sem perder de vista a perplexidade nem muito menos a violência dos elementos que estalam e se reviram a cada poema –, lança-se a uma disparidade que, por sua vez, se projeta como tarefa política exatamente quando imaginam, convictos de toda incerteza, os poetas que são.

O poeta Fabiano Calixto, autor de ‘Fliperamas’ (Foto: Reprodução)

Fabiano Calixto (1973) tem um percurso que beira a respiração da land art de Richard Long, linha marcada para o apagamento num litoral do tempo: vincar com os pés, carne e sangue, a impossibilidade do deserto. Algo que tanto se enuncia como paciência quanto como laceração. Importante ler esse movimento desde o livrinho rebobinado em espiral de fotocópia rápida, algum [1998] – “levar consigo um pouco / do mar, ainda vivo, nas unhas” –, ou de Fábrica [2000], uma potência – “existir / : etapa / devorada pelo pó” –, entre outros, até Nominata morfina [2014]. Partindo da imagem da máquina devorada pela reconfiguração do espaço e do jogo, a de fliperama, que instalada muitas vezes em lugares públicos resiste entre fichas falseadas e chutes de joelho e coxa, porradas desferidas com a mão errante, reúne um conjunto de textos publicados em periódicos e afins para montar um livro amplo, de respiração longa e, ao mesmo tempo, sem fôlego, uma espécie de roquenrou feito de maneira amalgamada entre a postura “beat” e “punk rock” que desemboca numa procura por liberdade e independe das feridas produzidas em todo o corpo. Fliperama é um livro impressionante, livre e aberto por uma temporalidade de juventude e frescor – “há muito pouco humor no mundo para / triângulos amorosos / escargots e rãs” –, primeiro porque persegue uma maneira de dizer sem meia-palavra, uma tentativa vigorosa para, politicamente, desfazer a desconversa, o relato de superfície e destruir a destruição; depois, porque o enfrentamento do real é nele mesmo, num corpo a corpo perplexo e díspar, e com uma certa calma para inscrever a raiva: “nossa esperança de jovens / não aconteceu” e “deus não morreu / virou dinheiro”.

Arthur Lungov (1996) junta em Corpos uma ideia de suspensão extensiva, quase uma disjunção, que passo a passo remenda-se em poemas curtos e, sobremaneira, muito lentos. Importante perceber que, tão menino, desloque com tanta agudeza seus textos de uma situação meramente retiniana, a do olhar, para provocar alguma esperança no gesto ambivalente da palavra que existe como rarefação e também como um corpo. O procedimento, se é uma composição perto de Godard, mais como leitura do que como montagem, é o que torna seu livro mais interessante. Pode-se ler no poema Perplexo uma tentativa de restituição da perplexidade: “voltado para si / esperando rugir // a explosão surge / repentina // : as paredes do tórax / continuam / em pé // o próximo movimento / igual ao último / apenas mais / distante // o tempo da ação / acabou // o romper vem do centro / ou se cala”. É aí, por exemplo, que podemos encontrar a proposição de Zambrano que se engendra entre a perseguição de uma ética da história ou de uma história num modo ético. Talvez não ainda como saída, mas já sem nenhuma moral, este princípio que muitas vezes é apropriado por um tempo ressentido que não suporta qualquer “movimento mais quieto / equilibrado”. A aporia recorrente, como diferimento, do livro de Arthur, é a de apresentar um corpo que sobrevive insistentemente sempre abaixo e contra a “idolatria pelo factual”, esta que a dimensão mais cretina do progresso e da civilização assumem, banalizando qualquer atrocidade. O que Benjamin aponta, seguindo essa direção contrária à catástrofe dos dias fatais, como uma “consciência do corpo”, solta e dispersa, “tal como a de uma criança”. Ou pode-se pensar no gesto de André Lepecki quando começa a ler a dança de Trisha Brown ou Jèrôme Bel como “exaustão” e “política do movimento”.

Os livros de Fabiano Calixto e de Arthur Lungov lançam, cada um a seu modo, em seus gestos singulares, uma potência ao ilegível e impossível do poema. Por exemplo, imaginar que ainda existe um traço mínimo para esticar o conflito até a proporção de problema ou que não se pode sair de uma permanência à margem apenas através da vivência isolada do idêntico. É praticamente uma aprendizagem, uma lição, frente a uma lengalenga repetidora da lei; sem imaginação, resta a uma humanidade mímica e unânime a violência da esterilidade ou a do direito. Perceba-se, assim, o que anota Benjamin: “atual não é aquilo que acontece no presente e que muitos veem e vivem à superfície, mas aquilo que atua e promete. Não há atualidade sem consciência da dimensão histórica do presente.” Daí que Fabiano anote no final do forte e espantando poema, Bob Dylan nos iluminará para sempre: “as mãos pequenas da chuva / nos tocam com imensa delicadeza / e violência / logo ali, / onde o impossível também respira”.

Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou, entre outros, Geografia Aérea (7Letras, 2014), Jogo de Varetas (7Letras, 2012), As mãos (7Letras, 2003/2012), Maria quer o mundo (Edições SM, 2015) e, no prelo, O método da exaustão (Garupa Edições).


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