Entraves na gestão da Vila Itororó ameaçam serviço gratuito de psicanálise em SP
Clínica Pública em atendimento na Vila Itororó (Reprodição/Clinica Publica de Psicanálise)
Criada em 2016 para realizar atendimentos individuais gratuitos, a Clínica Pública de Psicanálise, em São Paulo, corre o risco de ter suas atividades interrompidas até o fim desta semana. O que está em jogo é o espaço em que funciona o consultório da Clínica, o centro cultural Vila Itororó Canteiro Aberto, na Bela Vista. Atualmente gerido pela ONG Instituto Pedra, cujo contrato termina neste sábado (10), o centro ainda não tem uma nova gestão definida – e pode fechar suas portas ou mudar completamente seu funcionamento caso a Prefeitura de São Paulo e a Secretaria Municipal de Cultura não se posicionem.
“A Secretaria deveria ter lançado um novo edital para definir uma organização ou instituição que cuidasse da Vila daqui pra frente. Mas, até agora, não foi lançada nenhuma chamada pública e não se sabe se ela existirá”, resume Daniel Guimarães, co-criador e um dos psicanalistas da Clínica. “Estamos sem saber o que vai acontecer”.
O problema gira em torno da Vila Itororó, que funciona desde 2015 como centro cultural. Mas a construção que a abriga é, na verdade, um conjunto arquitetônico formado por diferentes prédios e casas construídos nos anos 1920 e tombados em 2005 e 2006. Na ocasião, o governo do Estado e a Prefeitura de São Paulo expulsaram os moradores locais para transformá-lo em um espaço cultural.
“A Clínica surgiu em 2016 justamente para servir como uma forma de compensação psíquica para os antigos moradores, que foram tirados de suas casas, muitas vezes de forma violenta”, conta Guimarães. “Foi na convivência com a Vila como um todo, em sua organização autogerida e colaborativa, que expandimos e passamos a atender outras pessoas”.
Em 2013, com incentivos da Lei Rouanet e em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura, parte da Vila começou a ser restaurada pelo Instituto Pedra, que na época venceu um edital para uma gestão de dois anos. Depois, a ONG Novo Olhar assumiu, mas acabou abandonando o trabalho, o que trouxe o Instituto Pedra de volta em um novo acordo com a Prefeitura de São Paulo – um contrato de seis meses que termina no próximo sábado.
Três dias antes do fim da gestão, ainda não se sabe se haverá outra chamada pública para contratar uma nova ONG, o que gera insegurança entre os psicanalistas da Clínica. À CULT, a Secretaria Municipal de Cultura enviou uma nota afirmando que o Instituto Pedra “encerrará suas atividades dentro do prazo contratual” e que “a Vila Itororó não ficará fechada para o público” – mas não apresentou nenhuma solução.
“Mesmo que os governos estejam planejando um edital para os próximos anos, isso não acontece do dia para a noite – ou seja, provavelmente, teremos um período sem ninguém cuidando da Vila. Isso nos deixa inseguros, porque a psicanálise precisa ser um tratamento continuado, que acompanhe o analisando, senão não faz sentido”, pondera Guimarães.
Outros tipos de arranjo
Atualmente, a Clínica Pública de Psicanálise é formada por nove psicanalistas, três supervisores e uma artista – com plantões aos sábados, sempre por ordem de chegada dos pacientes. A cada mês, são cerca de 430 atendimentos (individuais ou em grupo) durante os plantões, e outros 50 fixos realizados semanalmente. Os analisando não vêm apenas dos bairros próximos, mas também de Guarulhos, Itapecerica e até de Jundiaí.
O fato de a Clínica ser gratuita atrai boa parte dos interessados, mas há algo a mais: para o psicanalista, o tratamento psíquico funciona melhor quando acontece em um espaço cultural integrado à sociedade, marca da Vila Itororó. “Uma experiência de saúde mental em um centro cultural tem outra qualidade. Uma das minhas pacientes, por exemplo, gostaria de ser atendida na Vila Itororó porque, no CAPS [Centro de Atenção Psicossocial], lembrava o tempo inteiro que era ‘doente’. Já a Vila permite outros tipos de encontro, longe desse arranjo segregacionista e pouco saudável”, explica.
A Vila Itororó, que funciona de terça a sábado, chega a receber por volta de duas mil pessoas por mês, em atividades gratuitas que incluem aulas de dança, marcenaria, circo, esgrima e cozinha, além da própria Clínica. Todas as programações são “autogeradas” – ou seja, propostas e executadas pelos próprios visitantes, sem curadoria ou necessidade de formação profissional. “Ali tem morador de rua que ensina xadrez, tem gente que dá aulas de piano, tem criança brincando. É um espaço de integração, onde acontecem coisas inusitadas, simplesmente porque é aberto”, conta o psicanalista.
Em reação reação à falta de resposta dos órgãos governamentais, os psicanalistas na Clínica Pública de Psicanálise publicaram uma carta aberta direcionada à Secretaria de Cultura, posicionando-se contra a descontinuidade da Vila “em nome da saúde psíquica da população” e questionando sobre os planos para a Vila Itororó.
“Esperamos a resposta deles. O que podemos dizer é que gostaríamos de continuar naquele espaço, porque ali foi construída toda uma história, nossa, da Vila e com os analisandos. Para a Clínica, é muito importante esse ambiente, mais até do que um consultório fechado”, afirma Daniel.
Assim como os psicanalistas, frequentadores e funcionários da Vila estão se mobilizando e já enviaram outra carta à Secretaria. Também pediram apoio ao ex-senador e ex-secretário municipal de Direitos Humanos, Eduardo Suplicy, e estão organizando uma vigília na madrugada de sábado para domingo. Em nota, a Secretaria Municipal de Cultura disse que “está avaliando a melhor forma de utilizar o espaço da Vila Itororó levando em consideração sua importância histórica para a cidade e o interesse público”.
(1) Comentário
A Vila Itororó é um dos projetos culturais dos mais importantes do País. É um verdadeiro laboratório de criatividade participativa. Deixa-lo sem continuidade beira à irresponsabilidade.