Centro: o ponto de encontro de anseios extremos

Centro: o ponto de encontro de anseios extremos

 

 

Sobre o livro O diálogo possível: Por uma reconstrução do debate público brasileiro, de Francisco Bosco

 

I- Tarefa possível

 

Embora muitos estejam enfadados com a polarização política e comportamental, outros estão sempre dispostos a inflamá-la. Antipetistas não deixam de mobilizar seu repertório, sempre eficiente, de acusações aos “esquerdistas” de se insurgir contra a moral, a religião, a família e a propriedade.

 

Muitos liberais que supúnhamos autênticos se converteram ao antiglobalismo. A parte mais estrondosa da militância de esquerda, por sua vez, acusa qualquer tipo de alinhamento de direita de “neoliberal”, “machista”, “racista”, “fascista” sem saber diferenciar gradações e nuances.

 

Os extremos se tornaram mais fortes, pois seu magnetismo enfraqueceu posições moderadas e mais dispostas ao diálogo. A conversa em casa, no bar e em reuniões se tornou árdua ou impossível.

 

Comprovou-se nos mais diversos planos que, na história da humanidade, não há nada melhor do que saber coabitar com a diferença. Por isso, valeria a pena aproveitar o ensejo para, afinal, prestar mais atenção em quem se esforça por sair do estado beligerante de bolhas antagônicas, refundar a decência do convívio e reerguer a possibilidade de um debate político mutuamente instrutivo e produtivo no Brasil.

 

A questão não é como resolver problemas econômicos ou sociais. É uma questão apriorística, que deve anteceder essa, para torná-la possível: como transformar o ambiente político de modo a que ele possa realizar seus propósitos e, de quebra, recriar uma convivência suportável; talvez até, quem sabe, de novo agradável?

 

Eis a pergunta que sempre devemos fazer: quem está contribuindo para acirrar a cólera entre grupos inimigos e quem está, de fato, em busca de refazer um ambiente transitável, respeitoso, saudável e profícuo? Uma vez convencido da necessidade dessa refundação da pólis em tempos digitais, como operar nesse sentido? Alguém apresenta os primeiros passos de uma tarefa tão difícil de conceber como de realizar? E como facilitar a outros o caminho das pedras?

 

II- Razões e desrazões

 

O novo livro de Francisco Bosco, O diálogo possível: Por uma reconstrução do debate público brasileiro, da editora Todavia, se dispõe à incumbência de tamanha envergadura. Primeiro, seu intuito é delinear as diferentes correntes políticas de base (liberalismo, conservadorismo, comunismo, socialismo, social-democracia) de modo a identificar os atores contemporâneos (PSDB, PT, PMDB, centrão, bolsonaristas, olavistas, neocomunistas, evangélicos) dentro desse panorama.

 

Segundo, o autor separa com precisão em que sentido os atos e declarações de tais atores são legítimos – seja a favor de si mesmos, seja contra os outros – e onde eles extrapolam por motivos eleitoreiros, sectários, oportunistas ou de compreensão e visão de mundo. Ao contrário de boa parte de intérpretes interessados em dar a sua versão, Bosco se empenha por entender as razões de cada lado e apontar suas justificativas, limites e falhas; ao mesmo tempo, não evita explanar seu lugar de centro-esquerda.

 

Tal exposição combina tanto o desejo de instruir o leitor leigo no passo a passo de uma possível avaliação correta, no sentido ético e teórico, quanto de intervir na discussão dos acontecimentos políticos mais recentes. Logo, a escrita do livro é agradável, claríssima e suas 400 páginas deslizam facilmente nas mãos com vistas a fornecer uma mistura de pequena formação em pensamento político e análise do estado desfavorável da polarização. O gesto interventivo mobiliza o empenho formativo para servir ao ético.

 

O instrumental formativo não é meramente didático: busca apresentar uma verdadeira genealogia da polarização. Francisco Bosco retrocede aos primórdios do liberalismo em suas raízes não democráticas e escravagistas, motivo pelo qual Domenico Losurdo aponta  suas contradições. No entanto, o pensamento liberal foi se dirigindo cada vez mais à democracia e formulou, a partir da revolução americana e francesa, a estrutura de poderes e leis que garantem o direito do cidadão.

 

Enquanto a teoria política e econômica liberal salientava a igualdade de condições de todo cidadão e estabelecia uma teoria da governabilidade do Estado, o realismo de Karl Marx desnudou como o Estado burguês se torna “um ardil de classe para legitimar sua dominação econômica por novos meios”. À medida que a história da república burguesa avança, a democracia não se concretiza: mantém a desigualdade e a exploração. Por conseguinte, Marx rejeitou o Estado democrático e pensou somente na luta de classes, de modo que, uma vez que a classe trabalhadora chegue ao poder, a diferença de classes é abolida.

 

A falta de uma teoria do sujeito impossibilitou o marxismo tradicional de prever que, quando isso ocorre, a diferença de classes não é abolida. Sem os limites do Estado de direito burguês, o líder Stalin e o partido único se tornaram um Estado de poder ilimitado, que impôs o terror da fidelidade absoluta ao partido dentro de toda a estrutura burocrática. Destarte, nem o liberalismo foi democrático nem o socialismo foi igualitário: um aprimorou a exploração, outro o totalitarismo. Os extremos do passado não souberam resolver o impasse, ao contrário, radicalizaram-no.

 

Quem se propôs a trabalhar a partir da contradição foi a social-democracia do século XX, pois, a partir da experiência de depressão econômica, totalitarismo de extrema-direita e extrema-esquerda e grande desigualdade, cobrou imposto de renda progressivo, regulou o mercado e investiu em instituições e direitos sociais de modo a estabelecer o Estado de bem-estar, os trinta anos gloriosos do pós-guerra aos anos 70. A dificuldade foi a de reconciliar liberalismo e socialismo dentro do regime democrático de modo a torná-lo efetivo.

 

III- Promessas perdidas da cultura

 

O Brasil, contudo, nem sofreu um trauma social e econômico tão grande quanto numa grande guerra, nem produziu nenhum tipo de reforma substancial. A cada mudança necessária de regime que seguiu o progresso das metrópoles dominantes, sempre o fez com atraso e de modo fraudulento, isto é, produziu uma série de modernizações conservadoras para manter a diferença de classe pós-escravocrata e excludente, bem como um poder dominado por um centro fisiológico e clientelista.

 

Ao longo do século 20, a falta de alfabetização, somada à pobreza de uma população crescente, impediu o desenvolvimento de um espaço público inclusivo. Durante a ditadura militar de 1964 a 1985, não era permitido, sequer, discutir política abertamente. Talvez por todos esses fatores, o brasileiro se espelhou menos na política do que em manifestações da cultura popular que congregaram o melhor de diferentes classes, numa conjunção feliz das contradições: no futebol e na canção popular. A ausência de interesse dominante por política era compensada por uma identificação apaixonada por cultura, o que possibilitou um reconhecimento internacional nas duas esferas.

 

Além disso, houve todo um processo de afirmação da miscigenação, cujos primórdios de conscientização Bosco resgata no estadista da independência José Bonifácio de Andrada e Silva, a partir do livro de Miriam Dolhnikoff. A ambiguidade da afirmação da miscigenação consistia em constatar uma diferença real do Brasil na problemática da separação das etnias (em comparação com Europa e EUA) em que de fato houve uma mistura entre brancos, negros e indígenas nitidamente intensa e única e, por outro lado, a própria positivação da miscigenação serviu também para disfarçar, acobertar, ocultar um racismo igualmente presente. A cultura popular brasileira no futebol, na canção e na teorização de Gilberto Freyre festejava uma sorte de síntese miscigenada bem resolvida. Durante as primeiras décadas da redemocratização, esse modelo imperou e encontrou o seu canto do cisne.

 

Francisco Bosco é precisamente o pensador brasileiro que, no livro anterior, foi muito citado por formular a grande ruptura da predominância da cultura para a política: o chamado fim da canção, o advento revolucionário dos Racionais MCs e, finalmente, as jornadas de junho de 2013 convergiram para uma verdadeira desmistificação do modelo cultural conciliador e uma entrada no modelo político do conflito.

 

No final do livro recente, Bosco retoma essa formulação para examinar a história das defesas teóricas e práticas da miscigenação e a ruptura da crítica identitária, ao postular que “Sobrevivendo no Inferno [de Racionais MCs, de 1997] está para a MPB como O genocídio do negro brasileiro [de Abdias do Nascimento, de 1978] está para Casa-Grande & senzala [de Gilberto Freyre, de 1933]”. Tal ruptura evidencia que “a realidade da mestiçagem cultural nunca se desdobrou em justiça social”. Embora Bosco apresente todas as razões dessa crítica, ele não se satisfaz nesse patamar e propõe uma síntese dialética entre mestiçagem e crítica identitária.

 

A mestiçagem é o nosso mito. Ele contém o próprio desejo de justiça social inexistente que falseou como existente. Quando a crítica identitária rejeita a falsidade do mito, perde seu anseio utópico. Por outro lado, a miscigenação aconteceu: não se constituiu numa democracia racial, como prometeu, longe disso, mas contém um impulso utópico legítimo para tal, como em nenhum outro país. Portanto, a miscigenação é uma espécie de universalismo tropical, uma tese de igualdade negada pela crítica racialista. Bosco oferece a proposta de uma síntese universalista dialética entre os dois, que retome a utopia miscigenadora para que ela não mais sirva para o status quo fisiológico nacional, mas realize sua vocação eminentemente democrática.

 

Assim como o centro não deve ser fisiológico, mas satisfazer os anseios dos extremos de liberdade e igualdade, parece-me que para Bosco a política deve reencontrar as promessas perdidas da cultura, da cultura brasileira.

 

 

Eduardo Guerreiro Losso é professor associado do programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, bolsista produtividade do CNPQ e editor da Revista Terceira Margem.

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