Brasil, ano zero
Demetrio Albuquerque, monumento Tortura nunca mais, Pernambuco, Brasil (Foto: Divulgação)
As palavras falham. Como definir uma experiência coletiva, que diz respeito a todo um país, mas que não encontramos palavras para produzir sentidos compartilhados? Bolsonaro é uma experiência. Alguns o chamam de “louco” ou “perverso”. Logo depois, lemos um texto que diz que não podemos utilizar categorias diagnósticas da psicanálise ou da psiquiatria para qualificá-lo porque seria uma forma de reproduzir o estigma que marca corpos e subjetividades historicamente estigmatizadas. Chamá-lo de louco é contaminar “os loucos” com a sua presença.
“Ele é um fascista!”. Pouco depois, outro artigo retrucará: não podemos fazer uma análise presentista de uma experiência histórica datada. O fascismo precisa de uma massa organizada, projeto nacionalista, identidade política sólida e outras características que faltam ao homem que defeca em dias intercalados para contribuir com o meio ambiente.
A busca por definições não param: “Ele é neofascista!”; “Ele é um sintoma de uma sociedade que ainda se organiza nos marcos da Casa Grande e Senzala”. As disputas interpretativas não param.
Será que estamos diante de um tipo de experiência política abjeta? O que define o abjeto? A falta de inteligibilidade, o que escapa, sobra ou falta. O que não tem linguagem. Temos nos referido ao “abjeto” (principalmente nos estudos das sexualidades e gênero dissidentes) para definir as experiências corpóreas excluídas da matriz de inteligibilidade do humano: o intersexo, as experiências trans, a bruxa e tantas outras corporalidades que tiveram (e têm) suas humanidades negadas.
Bolsonaro é a encarnação do Presidente Estrada Cabrera, personagem do livro Memória do Fogo, de Eduardo Galeano. Diante do desespero da população que escuta apavorada o estrondo do vulcão Santa Maria, ele assina um decreto em que afirma que não existe nenhum vulcão em erupção e que a festa prevista deve acontecer. Bolsonaro como Estrada legisla contra a realidade. Para que universidade pública, demarcação de terras indígenas, políticas de preservação do meio?
Bolsonaro é uma experiência de dor.
Nos poucos meses de governo, seu rastro de destruição está espalhado. A fumaça que cobriu o céu de São Paulo, também poderia ser nomeada de “Bolsanoro”. Colegas gestores de políticas que trabalham nos Ministérios em Brasília tentam, nos marcos da biopolítica (politicas de cuidado da população) fazer alguma resistência. Afirmam, em tom confidencial, que o clima é sufocante. A fumaça está em todos os lugares. A ignorância daqueles que ocupam posições de chefia, combinada com a escassez intencional de recursos para a implementação de políticas públicas fundamentais voltadas para populações pobres, têm levado alguns colegas à depressão e/ou a repensar suas vidas profissionais. Das universidades às políticas ambientais nada escapa a ferocidade do homem que se refere aos governadores nordestinos como “paraíbas”.
A catástrofe da Amazônia outra vez nos colocou diante da figura de presidente inominável. O que dizer diante do olhar de desespero dos animais que fugiam do fogo, das imagens do rio de cinzas em que se transformou milhares de quilômetros da floresta? O homem que ama o torturador Ustra culpa as ONGs e faz comentários machistas sobre a Brigitte Macron, esposa do presidente da França.
A devastação do incêndio me levou aos escombros da Alemanha pós Segundo Guerra Mundial. Roberto Rosselline, no seu clássico “Alemanha, ano zero”, nos apresenta a luta contra todos os tipos de miséria pelo olhar oco de uma criança que perambula por Berlim na caça pela sobrevivência.
Será que o Brasil está vivendo seu ano zero? Não sei. Tenho certeza, contudo, que teremos que construir e reconstruir o que o inominável está destruindo. Depois dele é possível que tenhamos novos termos para nomear o abjeto na política, que um novo léxico político esteja sendo construído. Talvez seu nome torne-se outro significante para dor. Talvez ao dizer Bolsonaro uma náusea tome conta de quem pronunciou e de quem ouviu este nome e um vômito coletivo seja a resposta imediata para o outro nome que a morte cruenta assumirá.
BERENICE BENTO é professora do departamento de Sociologia da UnB