Bases para um novo marco civilizatório
(Arte: Andreia Freire/Foto: Cortesia de Angela Davis)
Mulheres, raça e classe, de 1981, é fundamental para aprofundar o olhar sobre nossos tempos. No livro, lançado no Brasil 35 anos depois de sua publicação original nos Estados Unidos, Angela Davis realiza uma análise importante por um viés que contempla intersecções entre raça, classe e gênero. Iniciar a obra abordando o legado da escravidão é essencial como ponto de partida não somente para entendermos as consequências desse processo no modo pelo qual a população negra vem sendo violentada sistematicamente, mas também porque a filósofa explicita outras condições femininas para além da construção existente em relação à mulher branca. Explico: Davis afirma que mulheres e homens negros escravizados eram tratados da mesma forma, ambos desempenhando o mesmo tipo de trabalho forçado sem diferenciação, algo que quebra com a lógica da mulher frágil em relação à mulher negra. Ou seja, existe aí outra construção de feminilidade forjada na omissão de direitos e na opressão. Logo, Davis já rompe com a noção de universalidade em relação às mulheres, enfatizando que as negras partem de outros pontos, já que a combinação entre machismo e racismo as coloca em um lugar maior de vulnerabilidade e exploração. Essa formulação depois será estudada de forma mais ampla por feministas ao longo do tempo, mas é necessário marcar o pioneirismo das feministas negras em já localizar esse debate antecipadamente e recusarem a generalidade das opressões.
Entretanto, por mais que homens e mulheres negros fossem explorados da mesma forma, Davis enfatiza algo que os diferenciava de maneira radical: somente os corpos das mulheres negras eram violados pelo estupro. É importante notar aí a relação direta entre colonização e cultura do estupro. Davis critica a forma pela qual o feminismo não aborda a situação das mulheres negras, desde o racismo no movimento sufragista feminino até o descaso de feministas brancas em relação às trabalhadoras domésticas – grupo formado em sua maioria por mulheres negras, o que evidencia outra relação direta, dessa vez entre escravismo e trabalho doméstico. Essa negligência em relação às pautas das mulheres, conclui a filósofa, leva a crer que as mulheres brancas estavam organizadas com o propósito de garantir seus direitos ou igualá-los aos direitos dos homens brancos e não necessariamente comprometidas com uma transformação fundamental da sociedade. Em Mulheres, raça e classe, ela escreve: “Proporcionalmente, as mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do que suas irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupa na vida das mulheres negras da atualidade reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos da escravidão. Como escravas, o trabalho compulsório ofuscava todos os outros aspectos da existência dessas mulheres. Aparentemente, portanto, o ponto de partida de qualquer exploração da vida das mulheres negras na escravidão seria uma valorização de seu papel como trabalhadoras.
mulheres, não menos do que os homens, eram vistas como unidades de trabalho lucrativas, para os proprietários de escravos, elas poderiam ser desprovidas de gênero. Nas palavras de um intelectual, ‘a mulher escrava era, antes de tudo, uma trabalhadora em tempo integral para seu proprietário, e apenas ocasionalmente esposa, mãe e dona de casa’. A julgar pela crescente ideologia da feminilidade do século 19, que enfatizava o papel das mulheres como mães protetoras, parceiras e donas de casa amáveis com seus maridos, as mulheres negras eram, praticamente, anomalias.”
Esses parâmetros pelos quais as mulheres negras foram construídas ainda as confinam a um lugar de subalternidade ou exotização. Elas seriam anomalias por terem sido forjadas em uma dupla antítese de branquitude e masculinidade.
Ao iniciar Mulheres, raça e classe pelos efeitos da escravidão, Angela Davis propõe uma abordagem radical, pois vai à raiz profunda das desigualdades geradas e mantidas por sociedades escravocratas. Durante muito tempo, especialmente no Brasil, houve uma resistência em enxergar o racismo como elemento estruturante, entretanto, ele é ponto fundamental para se discutir luta de classes, assim como o machismo o é. Sobre isso, Davis diz que é necessário a esquerda romper com um olhar ortodoxo que privilegia o combate a uma opressão em detrimento de outras. Para a filósofa, não é possível haver primazia de uma opressão sobre outras porque raça informa classe, da mesma forma que gênero também, o que torna necessário trabalhar essas categorias como indissociáveis.
Essa postura de Davis é muito importante, pois faz a esquerda se repensar por novas bases. Mesmo sendo marxista, a autora aprofunda o debate e não se furta de ampliá-lo para além de um viés ortodoxo. Essa coragem epistemológica torna Mulheres, raça e classe uma obra-prima não somente pela qualidade teórica, mas fundamentalmente porque desafia uma dita epistemologia dominante, promovendo um contra discurso potencialmente revolucionário para a prática política.
Por mais que o conceito de interseccionalidade somente tenha sido cunhado em 1989 por Kimberlé Crenshaw em Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics, pode-se dizer que Davis o utiliza quando analisa as opressões de forma entrecruzada, algo que o próprio nome da obra já afirma. Analisar as raízes do racismo aliado ao capitalismo e sexismo evidencia a preocupação da filósofa em encontrar formas de pensar a libertação sem a hierarquização de vidas. Pensar essas categorias como estruturantes faz com que Davis não alimente o poder que se condena, porque se esses elementos estruturam a sociedade, caminhos verdadeiramente de transcendência não podem reforçar nenhum desses aspectos – modo de agir criticado pela autora em relação ao movimento feminista que, por mais que pensasse formas de emancipação das mulheres, negligenciava o racismo e o reafirmava em relação às mulheres negras. O que nos leva a uma profunda questão: até que ponto se alimenta o poder que se condena?
Um ponto fundamental da obra é a maneira com a qual Davis pauta como central o papel da mulher negra na construção de novos modelos de sociedade. Ela acredita que esse lugar de marginalidade, ao mesmo tempo em que fragiliza, tem um potencial revolucionário, pois faz a mulher negra enxergar a realidade por outros olhares. A autora ressignifica a emancipação nos moldes da mulher negra, que seria radical no sentido de pensar para além das opressões que atingem esses grupos. O que estaria em jogo é um novo modelo de sociedade, olhar que é revolucionário por formular saídas necessariamente anticapitalistas, antirracistas e feministas. A mulher negra é a que mais sofre o peso do capitalismo, porque o racismo cria uma hierarquia de gênero que a coloca em um lugar maior de desumanização e, por isso, não seria possível haver primazia de uma opressão sobre outras, por exemplo. Logo, qualquer pensamento e prática política com vistas à emancipação deve ser pautado necessariamente por esse viés, caso contrário se provoca somente reformas para determinados grupos e não mudanças profundas.
Davis critica a forma pela qual, muitas vezes, os movimentos sociais reivindicam seus direitos, tendo como base ocupar um lugar de privilégio. Para a filósofa, é necessário romper com essa lógica e buscar novas formas de sociabilidade.
O arcabouço teórico-crítico dessa obra promove a reflexão necessária de como desatrelar valores capitalistas de valores democráticos, assim como romper com lógicas excludentes; legitima a produção intelectual das mulheres negras e o papel essencial desse pensamento para a construção de um novo marco civilizatório
DJAMILA RIBEIRO é é mestre em Filosofia Política pela Unifesp e secretária adjunta da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) de São Paulo.
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