Transgêneros e rebeldes protagonizam novo romance de Arundhati Roy
A escritora indiana Arundhati Roy, autora de 'Ministério da felicidade absoluta' (Elle Magazine /Divulgação)
Uma mulher transgênero muçulmana que vive entre os hindus e não fala a língua local. Uma criança abandonada que quer ser chamada de Saddam Hussein depois de assistir a um vídeo da execução do ditador iraquiano. Uma uma jovem arquiteta que, envolvida na luta pela libertação da Caxemira, se esconde para poder sobreviver.
Esses três personagens poderiam aparecer em livros distintos, tamanha a complexidade de suas histórias. Mas não é o caso: todos eles são protagonistas de O ministério da felicidade absoluta, da escritora indiana Arundhati Roy, que volta à ficcção exatamente vinte anos depois da publicação de seu primeiro livro, O Deus das pequenas coisas.
O novo romance, lançado pela Companhia das Letras no final de junho, esteve em produção por mais de uma década. O resultado é uma ode aos excluídos do país de origem da autora, que traça um retrato fiel das violações de direitos humanos perpetuadas pelo governo na região da Caxemira, disputada pela Índia e pelo Paquistão desde o fim da colonização britânica.
“Eu precisei viver com essas personagens por um longo tempo para saber que a minha relação com eles estava realmente cristalizada”, disse a autora ao The Slate, explicando a longa ausência da ficção. Ela conta que ao longo dos últimos dez anos viajou pelo país a fim de “entender o que estava acontecendo na Índia”. “E aí foi quase como se a ficção aparecesse para mim, pronta, sem uma decisão comercial da minha parte.”
Sustentada pela história de Anjum, O ministério da felicidade absoluta é diverso e cheio de contradições, exatamente como o país que registra. A história começa no início dos anos 60, quando a dona de casa Jahanara Begun, após ter três filhas, quer muito um herdeiro menino. Ela dá à luz o pequeno Aftab, mas logo descobre que ele é hermafrodita – e apesar dos esforços da família em criar o bebê como um menino, a criança se identifica cada vez mais com o universo feminino.
Mais velha, ela se auto-nomeia Anjum, é rejeitada pelo pai, e passa a viver com a casta das hijra – mulheres transexuais que, na Índia, são tradicionalmente conhecidas como o ‘terceiro sexo’ (e que só conquistaram o direito ao voto em 1994). A partir daí, a história de Anjum se cruza com um homem inglês, um mendigo cego e uma arquiteta perseguida por seu envolvimento com o movimento de resistência na Caxemira.
Por escrever de maneira crítica sobre um país que, apesar de projetar um discurso de desenvolvimento econômico pouco faz pelos direitos humanos, Roy tem sido um incômodo para o governo indiano desde a publicação, em 1997, de O Deus das pequenas coisas, que narra a história de um romance entre pessoas de castas diferentes. Foi com ele que a autora venceu o Man Booker Prize, um dos mais importantes prêmios literários, (e doou todo o dinheiro ao Narmada Bachao Andolan, grupo que realiza protestos contra a construção de represas na Índia).
A obra – que já vendeu mais de seis milhões de exemplares, sendo o maior best-seller indiano – não foi bem recebida pelo governo indiano: por escrever abertamente sobre sexualidade feminina, ela foi obrigada a responder a um processo por “obscenidade” aberto por E. K. Nayanar, então líder do estado de Kerala, a oeste do país.
Não tem sido diferente com O ministério da felicidade absoluta. Para o Irish Times, a escritora afirmou que já recebeu ameaças de morte por retratar o conflito na Caxemira de forma “não nacionalista”, e afirmou que “um dos membros do parlamento indiano sugeriu que eu fosse usada como escudo humano pelo exército indiano na região”.
Escrita política
Os vinte anos afastada da ficção não significaram o silêncio da escritora, pelo contrário. Entre um romance e outro, Roy publicou artigos acadêmicos e 16 livros de não-ficção sobre a situação da Índia e suas minorias – os mais famosos são The algebra of infinite justice (2001), sobre testes nucleares no país, e Walking with the comrades (2011), sobre os rebeldes maoístas (ambos sem tradução em português).
A faceta ativista de Roy nasceu pouco depois do lançamento de seu primeiro romance, quando o governo iniciou uma série de testes nucleares que, segundo a autora, não passavam de “demonstrações de poder”. “A atmosfera do país de repente mudou, e se tornou extremamente nacionalista. Então, a primeira coisa que fiz para resistir a isso foi escrever um artigo chamado ‘The end of imagination’ (1998) em que critico esses testes”, contou ao Irish Times.
A partir daí, ela escreveu sobre a péssima distribuição de renda no país, sobre o desigual sistema de castas, sobre as violências cometidas na Caxemira, sobre falhas na democracia indiana e se posicionou contra a eleição do Primeiro Ministro Narendra Modi, em 2014. “Minha não-ficção é uma arma. É um argumento. Tem um propósito imediato e urgente. Todos os meus artigos são intervenções e eu tomo quantos riscos forem necessários”, disse ao Irish times.
Em sua ampla militância, Roy foi além da escrita. Em 2001, protestou contra a guerra no Afeganistão, colocando-se diretamente contra os Estados Unidos, e em 2006 assinou, junto com Noam Chomsky, Howard Zinn e outros intelectuais, um manifesto contra o Estado de Israel.
Na Índia, Roy chegou a ser presa enquanto apoiava os maoístas tribais, e transformada em uma “pária nacional aos olhos da elite” quando deu força aos dalits (a casta conhecida como “os intocáveis”) e aos moradores das favelas – em uma das quais ela mesma morou, enquanto fazia faculdade, nos anos 80.
Nascida em 1961 em Shillong, Roy experimentou a pobreza ainda criança quando os pais se divorciaram e ela teve que pedir esmolas para sobreviver. Mais velha, estudou arquitetura na School of Planning and Architecture, em Nova Deli, e chegou a escrever roteiros de cinema, mas acabou trabalhando em outras áreas para se sustentar.
Toda essa vivência se transformou em matéria-prima não só para seu primeiro romance, mas também para Ministério da felicidade absoluta. Quando questionada pelo The Slate sobre a importância e a necessidade de escrever em tom político o tempo inteiro, ela apenas respondeu que acha impossível não escrever dessa forma: “Isso é um mito. Mesmo um pequeno conto de fadas é político de certa forma, porque quando você evita dizer algo, o silêncio é tão político quanto falar sobre”.