Dossiê | Artivismo das dissidências sexuais e de gênero
(Arte Andreia Freire)
Nos últimos anos, temos assistido ao surgimento ou ressurgimento de uma série de artistas que produzem, por meio de variadas linguagens, diversos discursos que questionam os binarismos, as naturalizações e normatizações relativas a gênero e sexualidade no Brasil. No texto “O que temem os fundamentalistas”, publicado na CULT 217, escrevi sobre o tema e nomeei essas produções de “artivismo das dissidências sexuais e de gênero”. Tenho usado a expressão “dissidências” em contraposição à ideia de “diversidade sexual e de gênero”, já bastante normalizada, excessivamente descritiva e muito próxima do discurso da tolerância, ligada a uma perspectiva multicultural festiva e neoliberal que não explica como funcionam, como são produzidas e como se cristalizam as hierarquias existentes na tal “diversidade”.
Naquele texto, tratei brevemente do conceito de artivismo, que não é aceito pacificamente por muitas pessoas, e apontei que a emergência desses artistas e coletivos artivistas pode ser explicada por várias razões. Eis algumas delas: o espantoso crescimento dos estudos de gênero e sexualidade no Brasil, em especial os situados nas dissidências sexuais e de gênero ou ligados, de uma forma ou de outra, aos estudos queer; a ampliação do acesso às novas tecnologias e às redes sociais; a ampliação da temática LGBT na mídia em geral, em especial em telenovelas, filmes e programas de televisão; a maior visibilidade de diversas identidades trans e pessoas que se identificam como não binárias em nosso país, além da valorização da “fechação”, da não adequação às normas (corporais e comportamentais) de meninos afeminados, mulheres lésbicas masculinizadas e outras várias expressões identitárias flexíveis que provocaram a abertura do fluxo antes mais rigidamente identitário. Talvez a mais importante das razões esteja exatamente na própria necessidade, consciente ou não, de reagir diante do quadro terrível no qual estamos inseridos, marcado por um crescente conservadorismo, em sua expressão mais visível através de um fundamentalismo religioso, que elegeu os temas da sexualidade e de gênero como seus principais problemas.
A proposta deste Dossiê é analisar determinadas produções artísticas e tentar responder às seguintes questões: quem são esses e essas artistas, de onde surgiram e o que fazem? Como e quais linguagens artísticas usam para realizar seus trabalhos? Seria correto dizer que, ao mesmo tempo que problematizam as próprias linguagens artísticas “tradicionais”, problematizam também as normas sobre gênero e sexualidade? Como cada coletivo ou artista produz seus trabalhos? Quais são os antecedentes dessas produções, em especial no nosso país? Que processos de subjetivação são acionados por essas produções? Trata-se de produções que poderiam ser inseridas no clássico paradigma das identidades (gay, lésbica, trans) ou estamos assistindo à emergência de um conjunto de produções muito mais focadas na problematização e desconstrução das normas do que na clássica afirmação identitária?
A fim de enfrentar essas questões, convidamos um grupo de onze pessoas da academia e das artes para produzir este Dossiê, que abre com um texto que trata de alguns antecedentes dessas produções. Tiago Sant’Ana recupera os trabalhos do cineasta Jomard Muniz de Britto e do grupo Vivencial, ambos de Pernambuco – ao mesmo tempo que conta outra genealogia do queer no Brasil. Na mesma direção, Djalma Thürler, Paulo César Garcia e Marcelo de Troi analisam o Teatro Oficina, o Dzi Croquettes e suas influências na ATeliê voadOR, companhia sediada em Salvador.
As produções musicais de algumas artistas são foco de análise de Rafael Guimarães e Cleber Braga, que usam a ideia de “vidobra” para pensar essa potente cena. Marcelo de Trói entrevista Linn da Quebrada. Amara Moira analisa as escritas de três homens transexuais do Brasil e nos mostra que essas produções dissidentes estão se desenvolvendo também na literatura. Por fim, Rosa Maria Blanca aponta aspectos que unem várias produções. E no site da CULT Alexandre Nunes de Sousa analisa o grupo As Travestidas sob o prisma da Antígona relida por Judith Butler. Miro Spinelli e Stéfano Belo escrevem sobre suas próprias produções artísticas.
Importante destacar que o Dossiê não pretende tratar de todas as produções da atualidade. Da mesma forma, a proposta não é enquadrar todas em uma mesma categoria, seja de artivismos e/ou de queer. No entanto, será possível perceber como essas produções dialogam com uma nova política de gênero que já tem sido pensada, há anos, por várias pessoas, acadêmicas ou não, que se filiam aos estudos queer, bastante diversos entre si, diga-se de passagem.
Algumas das pessoas que integram este Dossiê estiveram reunidas em Salvador, em maio passado, para discutir exatamente os temas de seus textos, em um encontro, que marcou as festividades pelos dez anos do grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade (CUS), da Universidade Federal da Bahia.
Enfim, o Dossiê está um luxo! Um “bapho” que ocupa a CULT neste mês. Se jogue porque outras revoltas estão ocorrendo, eis aqui apenas algumas delas!