Quem pode se dizer homem?

Quem pode se dizer homem?
João W. Nery, autor de 'Erro de pessoa: João ou Joana?', de 1984 (Arquivo pessoal)

 

“Eu quero ser o homem/ que sou/ de vagina/ no pau, nas mãos,/ no corpo/ de Raquel Virgínia”: versos de um poema de Teodoro Albuquerque recentemente publicado na Antologia Trans (2017), organizada pelo Cursinho Popular Transformação, de São Paulo. Que dizem tais versos? Até pouco tempo atrás (ou, quem sabe, ainda hoje), provável que se acreditasse excerto de uma obra surrealista ou alusão à psicanálise; complexo de castração, inveja do falo. Na melhor das hipóteses, versos que imaginassem a confusão genital no clímax do sexo, o não ser mais capaz de dizer o que é de quem, de quem o quê.

“Pau de Raquel Virgínia” talvez insinuasse a possibilidade de ela ser travesti, mulher trans, mas ainda assim não se compreenderia ao certo o que uma travesti estaria fazendo na cama com alguém que tem vagina e, muito menos, o que significaria esse tal alguém de vagina querer, a partir de seu próprio genital (e sugerindo-se, ainda, que ele poderia ser penetrado), afirmar-se homem. Delírio, sonho? Perversão, doença?

Mulheres fálicas atravessam o imaginário social há tempos e não é surpresa que algumas figuras acabaram por tornar-se a própria encarnação desse imaginário: nós, travestis e mulheres trans, fascínio e temor das masculinidades hegemônicas (maravilhoso, inclusive, dar-se conta de que junto à expressão “mulher de pau” vem paulatinamente ganhando força o seu inverso, “pau de mulher”, como proposto por Linn da Quebrada).

Daí é como se, de um lado, fôssemos prova viva de que a palavra “homem” não é, ou não precisaria ser, mera decorrência de se nascer com pênis (senão, o que significaria a recorrente pergunta “você é homem ou mulher?” que clientes nos fazem nas esquinas, mostrando que o que somos nem sempre é óbvio e que genital não está estampado na testa; ou então suas fantasias de serem comidos por uma mulher de pau, de se sentirem mulher de uma mulher na cama, de vestirem nossas roupas entre quatro paredes), mas, de outro, fôssemos também o risco permanente de esse homem flagrar-se atraído por nós e, nisso, descobrir-se “não tão homem assim” ou homem não da forma “legítima”, já que a norma impõe que homens nascidos com pênis devem atrair-se apenas por mulheres nascidas com vagina.

É interessante perceber que, embora o adendo “nascidas com vagina” à palavra “mulher” aos poucos vá ganhando sentido (como esquecer o fenômeno Roberta Close, capa da Playboy em 1984, musa inspiradora de um dos hits mais tocados da época, “Dá um close nela”, de Erasmo Carlos, e de quem se dizia à época “a mulher mais bonita do Brasil é homem”, o que em português atual se traduz por “a mulher mais bonita do Brasil nasceu com pênis” – nesse sentido, “mulher” significa “existir mulher”, ao passo que “homem” significa nascer com pênis), o mesmo não se aplicaria à expressão “homens nascidos com pênis”, que ainda hoje pareceria um estranho pleonasmo, perigoso até, por sugerir que haveria outras formas de sê-lo.

E é precisamente sobre essa masculinidade não fundada no pênis, esse homem que se faz homem a princípio apesar, mas cada vez mais para além, do genital que me interessa refletir aqui, com ênfase especial à obra de três homens trans que ousaram pensar sua condição por meio da escrita, as palavras que forjaram para dar representação à própria existência.

A queda para o alto (1982), de Anderson “Bigode” Herzer, é pioneira nesses aspectos. Entender o livro apenas como denúncia das violações cometidas na Febem é perder de vista o quanto ele também demonstra que esse espaço, esse não lugar à sombra da sociedade, foi o único a permitir que Herzer reivindicasse e vivesse sua identidade masculina: o bigode, os pelos nas pernas e axilas, o cabelo curto, o tratamento diferenciado que passa a receber seja em termos de assédio por parte das meninas e respeito dos demais “machões” (palavra utilizada ali para nomear as transmasculinidades), seja em termos de violência pelos funcionários homens, que sentiam a necessidade de a todo momento agredi-lo fisicamente e dizer-lhe: “machão sem saco, machão sou eu que tenho duas bolas”.

João W. Nery e Darcy Ribeiro, 1995 (Arquivo pessoal)
João W. Nery e Darcy Ribeiro, 1995 (Arquivo pessoal)

Se fosse tão óbvio que “machão” precisa de duas bolas e pênis, sequer seria necessário dizê-lo. A necessidade de dizer é prova do quanto Herzer desestabiliza essa noção de macho e, por consequência, de homem. E o autor demonstra consciência dessa desestabilização em vários momentos da obra: “pobres homens, me criticaram e ainda criticam dizendo que eles sim eram homens, pelo órgão que tinham no meio de suas coxas […] esta ignorância tão grande que os transforma de homem para macho, minúsculos machos que pensam trazer seu caráter em forma de duas bolas no meio das pernas”.

Estudos e mais estudos revelam a complexificação das narrativas de gênero nas penitenciárias ditas femininas, com o surgimento inclusive de identidades estáveis que abarcariam desde o “sapatão”, pessoa tratada no masculino e sempre por seu nome de homem, passando pela “entendida”, pela “lésbica” até chegar à “mulheríssima”, pessoa marcada por uma reprodução exacerbada do que se compreende por feminino.

Herzer jamais se diz “homem” ao longo da obra, mas em vários momentos aborda o desejo de ter nascido menino, assim como o fato de, uma vez fora da Febem, existir como homem para quem quer que não tivesse ciência do seu genital. No entanto, a escrita de si a partir do masculino é reveladora da forma como quer se deixar conhecer.

Daí o espanto ao me dar conta de que o nome do autor, seja na capa, seja na folha onde constam as informações bibliográficas, esteja apenas “Herzer” e não “Anderson Herzer”, como assina o relato autobiográfico que termina a primeira metade do livro. Na contracapa, a sinopse expõe ainda o seu nome de registro, mesmo afirmando que ele “passou a se autodenominar” Anderson Herzer.

No prefácio, o mesmo é feito por Eduardo Suplicy, pessoa a quem se deve a própria publicação da obra, junto de Lia Junqueira (presidente do Movimento em Defesa do Menor), uma das maiores defensoras de Herzer: “No dia 9 de agosto, [nome de registro], como eu sempre a chamara, embora ela preferisse ser Anderson, conversou comigo sobre as suas preocupações”. No mesmo prefácio, Suplicy ainda traz o relato de um suposto envolvimento de Herzer com um rapaz de apelido Bigode, que teria morrido num acidente de moto e do qual não há qualquer menção no livro. Segundo Junqueira, Herzer teria ficado tão triste com a morte do “único homem que aprendeu a gostar”, que pensou em se tornar Bigode.

Do ponto de vista racional – e por “racional” entenda-se “em acordo com a razão vigente”, heterossexista e ciscêntrica –, é necessário haver uma explicação para o fato de uma pessoa criada para ser mulher recusar tal criação (junto com tudo o que isso traz consigo) e afirmar-se, em vez disso, Anderson Bigode. A “verdade” de Anderson, ainda de acordo com essa razão, impõe que ele seja mulher e deva ser tratado no feminino, ainda que seu texto inteiro deponha contra isso.

Sorte distinta teve João W. Nery, autor de Erro de pessoa: João ou Joana? (Record, 1984). Família carioca de classe média e minimamente apoiando, ou pelo menos não violentando o filho, pai perseguido pela ditadura, experiência de exílio no Uruguai, convívio precoce com intelectuais, Nery teve melhores condições do que Herzer para não só se entender homem, mas também pioneiramente inventar maneiras de obter esse reconhecimento.

Suas experiências como taxista, profissão marcadamente masculina, e em especial o assédio que vivia nas mãos de passageiros tanto homens quanto mulheres (assédio que só era possível por desconhecerem sua condição trans) abrem o livro e mostram os conflitos que Nery enfrentava ao tentar criar condições de existir para o outro da forma como desde sempre existiu para si, homem.

A intimidade com a língua escrita, o diploma de psicólogo, a descoberta de profissionais da medicina que começavam a se interessar pelo assunto, assim como o acesso pioneiro, como cobaia, às cirurgias de readequação sexual, foram decisivos para Nery nesse processo (no caso de Herzer, fica em aberto o quanto a transfobia, essa que nem sequer era possível nomear, essa que lhe negava inclusive o direito ao nome, direito que somente entre iguais, na Febem, estava assegurado, não teria sido o empurrão que lhe fez cair do alto do Viaduto 23 de Maio).

No entanto, os únicos modelos de homem vigentes estavam calcados no corpo não trans, o que deixou marcas na própria maneira com que Nery poderia pensar a si próprio. Marcas que vazam para o texto e aparecem, por exemplo, na frustração de perceber-se sem pênis. Daí a primeira “monstruação”: os peitos crescendo e a necessidade de corcovear para disfarçar esse “corpo sem consenso”. “Evidências no meu próprio corpo me obrigavam a ser visto como mulher”, escreveu.

Mas essa sensação de inconformidade não é responsabilidade do indivíduo apenas, como os saberes médicos sugerem, e sim produto da própria forma com que o nosso tempo pensa o gênero. A medicina nos propiciou o nome com que pudemos começar a reivindicar existência, mas hoje é preciso contestar o essencialismo que essa mesma medicina propõe ao acreditar que nos baseamos em modelos estáticos de homem e mulher para pensar o que somos.

Nery e Herzer precisaram fazer-se homens baseando-se apenas em modelos não trans, pioneiros cada um a seu modo, mas, ao colocarem em disputa os sentidos que orbitam ao redor da palavra “homem”, acabaram por dar ensejo também ao surgimento de novos modelos de masculinidade, modelos que levam em conta cada vez mais seus próprios corpos e não só os alheios, modelos capazes de problematizar a narrativa médica, capazes de fazer surgir versos como aqueles de Teodoro Albuquerque ou mesmo os outros desse autor, em que ele celebra seu corpo transmasculino, sua pele preta, o amor entre uma travesti e um homem trans, versos que rejeitam com veemência o ideal de “homem de verdade”, que denunciam o que “homens de verdade” fazem, versos que querem pensar-se a partir de “outra fornada”, já que ele nasceu e foi criado “na feminilidade”.


AMARA MOIRA é doutoranda em Literatura na Unicamp e autora do livro E se eu fosse puta (Hoo Editora)

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