Queermuseu, Brasil, 2017

Queermuseu, Brasil, 2017
Interior da exposição Queermuseu, em exposição no Santander Cultural, em Porto Alegre

 

 

Quem não viu a exposição Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira, que esteve aberta à visitação até 10 de setembro no Santander Cultural, na cidade de Porto Alegre, onde também acontece a bienal do Mercosul, deve estar cada vez mais louco para ver as 270 obras com temática LGBT que há dias causaram estardalhaço no país do culto à ignorância em um arranjo bem antigo e conhecido com cheiro de repressão sexual.

Qualquer desejo se intensifica diante do impedimento de sua realização e as redes sociais mostram isso num verdadeiro mar de imagens e de obras de arte condenadas pela mentalidade que pediu o fechamento da Queermuseu. O algoritmo do Facebook, a rede social mais adorada pelos brasileiros, deve ter se modificado a essa altura do campeonato. Nem todo mundo é conservador, nem todo mundo é reacionário, há muita gente que gosta de arte e também sabe fazer barulho digital e, nesse momento, a disputa pelo imaginário cultural que iniciou-se em 2013, com as jornadas de junho dividindo o Brasil entre direita e esquerda, chega a um ponto curioso.

Conservadores e reacionários sempre buscaram administrar o desejo dos outros. Às vezes se metem com as artes porque, de algum modo, sabem que a esfera estética é estratégica para os jogos do poder e da dominação. Necessariamente fazem papelões incríveis já que nada sabem de arte, desconhecem sua lógica e sua ontologia. Do mesmo modo que nada sabem de política, nem de direito.

Está certamente em jogo a compreensão das condições sócio-políticas na qual surge essa exposição e sua crítica. Não sei se Gaudêncio Fidelis, curador respeitado, imaginava o que poderia acontecer no contexto quando reuniu essas obras todas e se ele suspeitou em algum momento que grandes nomes como Adriana Varejão, Cândido Portinari, Fernando Baril, Lygia Clark e Leonilson seriam capazes de tocar a galera fascistizada do Brasil, país em que se verificam os mais altos índices de assassinatos das minorias políticas e sexuais.

‘O buraco’, de Telmo Lanes, 2004. Obra que estava em exposição na mostra ‘Queermuseu’ (Divulgação)
‘O buraco’, de Telmo Lanes, 2004.; obra estava em exposição na mostra ‘Queermuseu’ (Divulgação)

Gozos

Os desacostumadas à reflexão permanecem empolgados com a atitude do banco espanhol que cancelou a mostra para evitar maiores problemas com a Tradição, a Família e a Propriedade representadas no momento pelos ativistas do Movimento Brasil Livre – cujo conceito de liberdade cai no chão em uma autocontradição performativa bem fácil de entender no momento em que, mais uma vez, falam contra aquilo que afirmam defender. Gozam da cara dos otários que caem nessa conversa. O jogo da mistificação tem perna curta, bem curta, mas nem todo mundo percebe e quem não percebe certamente também se aproveita moral e esteticamente da miséria espiritual em questão.

O MBL, um movimento associado ao preconceito e à violência nas redes sociais e fora delas enquanto, ao mesmo tempo, usa os significantes “livre” e apoia “mulheres e crianças” (fascistas em geral gostam desse discurso em abstrato), foi quem puxou a ladainha para o fechamento da exposição. A postura do Santander Cultural, que pediu desculpas aos ofendidos, não deixa de ser esquisita, para não dizer ridícula: “Ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição desrespeitam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana”.

O recado do Santander é ruim porque demonstra que um desentendimento radical de arte, de sociedade, de política, de ética e de democracia. Não dá para falar muito disso nesse pequeno espaço, mas seria de se perguntar sobre cada item dessa desculpa. Sobretudo o que significa “elevar a condição humana”, que o banco também ajudou, com a proibição, a rebaixar. Festival de contradições, a arte segue com seu papel de mostrar o que ninguém quer ver.

É o fim do pensamento e da expressão crítica que a gritaria reacionária pede ao silenciar a mostra Queermuseu e, assim, calar a boca até mesmo do poderoso banco Santander, que não tinha se dado conta de sua própria autocontradição ao inicialmente bancar a exposição. Entre ser instituição de vanguarda ou base cultural do provincianismo, optou pelo último e sustentou aquilo para o que veio, a velha e sempre repetida colonização econômica e cultural que, faço votos, não dure para sempre.

Fazem coro à ladainha do MBL, as instituições – inclusive universidades – e os cidadãos contentes com o clima medieval de caça às bruxas que se instaurou no Brasil desde o golpe de 2016. Um golpe misógino, legislativo, midiático e judiciário que derrotou a democracia e reinstaurou o capitalismo em versão neoliberal. O rebaixamento dos corpos e a submissão da inteligência fazem parte do pacote que visa sustentar esse estado de coisas.

A instituição, querendo ou não, apoia a mentalidade fascistóide que cresce no Brasil e encontra um momento ideal para se expressar em Porto Alegre, cidade que já teve fama de politizada na época de seus governos de esquerda e que agora está no mapa como uma dos lugares mais violentos do mundo.

‘Poluída at certo ponto’, Suzana Lobo, 1971. Obra que estava em exposição na mostra ‘Queermuseu’ (Divulgação)
‘Poluída at certo ponto’, Suzana Lobo, 1971; obra estava em exposição na mostra ‘Queermuseu’ (Divulgação)

Função social da arte?

O sexo é fundamental em qualquer processo de mistificação e, necessariamente, no que está sendo apoiado por essas instituições nesse momento. A combinação entre sexo não-regulamentado e arte é bombástica em períodos autoritários e os donos do poder sabem disso, daí que os trovadores reacionários usem o jogo de aparências moralista nesse momento como uma tática para conseguir adeptos. A publicidade toma o lugar do debate ético, político e estético.

Nesse momento, enquanto o Santander se pergunta como segurar seus clientes reacionários, muitos ainda conseguem se perguntar pela função social da arte. Mas essa não deixa de ser uma pergunta perigosa que obedece ao utilitarismo capitalista que tenta enquadrar a arte no cenário dos preconceitos morais e estéticos que servem à esfera política.

Por isso é que devemos inverter a direção da pergunta nesse momento. Em vez de perguntar qual a função social da arte, por que não perguntar qual a função social de movimentos tais como MBL, que combatem a arte? E, acentuando o questionamento, qual a função social do fascismo pregado nas redes contra a arte e contra o sexo? Ajuda levar em consideração que qualquer obra de arte nos faz pensar e é lógico que o fascismo não nos faz pensar porque ele é o fim do pensamento analítico e crítico em nome de ideias prontas para melhor administrar o desejo dos outros.

Arte degenerada

O Brasil anda muito parecido com a Alemanha nazista. A famosa exposição com curadoria fascista intitulada “Entartete Kunst” ou “Arte Degenerada” de 1937 tem sido lembrada por muitos críticos. Hitler que era uma artista frustrado sabia que a política do seu tempo não aconteceria longe da publicidade da qual ele usou e abusou. Era preciso domesticar certas obras de arte, torná-las coisas de loucos, de gente imoral e má enquanto se criava uma estética nazista. Hitler não está sozinho.

Além do Queermuseu, há poucos dias, deputados estaduais do Mato Grosso do Sul registraram um “boletim de ocorrência” contra a artista Alessandra da Cunha  que expõe obras no Museu de Arte Contemporânea (MARCO) da cidade de Campo Grande. O título da obra que gerou polêmica é “Pedofilia”. Para os deputados a obra contém conteúdo erótico e faz uma apologia à pedofilia. Quem conseguir ver na obra esse “conteúdo erótico” e essa “apologia”, por favor, envie material para esta pobre professora de filosofia que passou a vida lecionando estética e tentando entender as mentalidades, das quais as obras (de arte ou não) os atos e as performances (de arte ou não) são materializações concretas.

Alguém pode sustentar que o problema seja de interpretação. De qualquer modo, “erotismo e apologia à pedofilia” não são o tema da obra criada por Alessandra da Cunha. Nas redes, críticos mais maldosos falam do déficit estético e cognitivo dos ilustres deputados que confundem arte com propaganda para dizer o mínimo. A artista deve processar os deputados por calúnia.

Lembremos ainda que em 1999, Chris Offili causou comoção ao expor sua polêmica ”The Holy Virgin Mary” no Brooklyn Museum, em Nova York no contexto da mostra Sensation” organizada por Charles Saatchi. Nessa obra, a virgem negra está cercada de recortes pornográficos com a indefectível bosta de elefante constante em várias obras de Offili no lugar da mama. O prefeito de Nova York chamou a obra de “coisa doente” expressando o anseio geral dos cristãos ofendidos que pagam o preço de uma relação histórica mal elaborada com seu próprio cinismo e hipocrisia. Nessa linha, como disse Arthur Danto, a obra é a transfiguração do lugar comum. O objeto que torna visível aquilo que deveria ficar oculto sob o tapete das ideias conservadoras.

No Brasil atual, arte é forma elementar da resistência, questão urgente demais.

(3) Comentários

  1. Dona Tiburi não faz mais a mínima questão de disfarçar seu ódio contra quem pensa diferente dela. Agora não fala mais em diversidade de opiniões, diálogo, convivência. Agora os termos são ausência de pensamento, nazistas, etc. Sua vontade de exterminar todos que não sejam de esquerda transborda a cada novo escrito. Cuidado para não ter um ataque do coração com tanto ódio.

  2. O que a anta não se deu conta em sua verborragia sem fim é que:

    SOMOS A MAIORIA, E NÃO VAMOS ACEITAR SUAS PRÁTICAS lgbts SEM REAÇÃO. ESTE É UM PAÍS LIVRE E A MAIORIA É CONSERVADORA.

  3. Márcia Tibiri, seu artigo possui um nível intelectual muito acima da possibilidade de análise dos internautas deste site. Os conservadores não sabem o que significa pensamento crítico. Nota dez para sua iniciativa em escrever esse texto.

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