Arcas de Babel: Ellen Maria Martins traduz Eduardo Milán

Arcas de Babel: Ellen Maria Martins traduz Eduardo Milán

 

A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.

A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.

Hoje a poeta, tradutora e editora Ellen Maria Martins de Vasconcellos nos traz poemas inéditos do uruguaio Eduardo Milán.

Ellen Maria Martins de Vasconcellos faz doutorado em literatura contemporânea na Universidade de São Paulo. É autora dos livros Chacharitas & gambuzinos (2015, edição bilíngue – português e espanhol) e Gravidade (2018), ambos publicados pela Editora Patuá. É tradutora literária do inglês e do espanhol. Traduziu ao português o primeiro livro de poemas do Ben Lerner (Ângulo de guinada, publicado pela e-galáxia, 2015), além de autores e autoras latino-americanas como Carina Sedevech, Natalia Litvinova, Romina Paula, Sara Gallardo, Ezequiel Zaidenwerg, Agustín Arosteguy, entre outros. É editora de livros didáticos e de literatura.

 

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Eduardo Milán nasceu em 1952 no Uruguai, na cidade de Rivera, na divisa com Brasil. Sua mãe, brasileira, faleceu quando ele tinha apenas 1 ano. Seu pai, uruguaio, foi preso e perseguido pela ditadura na década de 70, por ser afiliado ao movimento guerrilheiro Tupamaros. Desde 1979 reside na Cidade do México. Seus dois primeiros livros foram escritos no Uruguai: Estación, Estaciones, de 1975, e Esto es, de 1978. Depois, no México, publicou mais de 20 livros de poemas, entre eles: Nervadura (1985), Errar (1991), Circa 1994 (1996), Son de mi padre (1996), Algo bello que nosotros conservamos (1997), Manto (antología de seus poemas até 1997 – 1999), Ostras de coraje (2003), Querencia, gracias y otros poemas (2003), Habrase visto (2004), Acción que en un momento creí gracia (2005), Por momentos la palabra entera (2005). Em 1997, ganhou o Prêmio Nacional de poesia de Aguascalientes com seu livro Alegrial, e muitos de seus poemas e antologias publicados foram traduzidos ao português e inglês.

Também publicou muitos livros de ensaios, dentre os quais: Una cierta mirada (1989), Trata de no ser constructor de ruinas (2002), Resistir. Insistencias sobre el presente poético (2004), Justificación material. Ensayos sobre poesía latinoamericana (2004); Crítica de un extranjero en defensa de un sueño (2006), Un ensayo sobre poesía (2006).

Mallarmeano, Milán acredita que é preciso devolver o sentido às palavras, e revaloriza-las, devolvendo-lhes os sentidos que se perdem no cotidiano. Essa operação crítica, como ele chama, de voltar à estética, é muito presente em seus poemas. Em Resistir. Insistencias sobre el presente poético, por exemplo, encontramos esses experimentalismos: um ato de suficiência ética e estética, já que a poesia de Milán carrega a memória de seu próprio devir. Também encontramos esses exercícios nas antologias poéticas neobarrocos de que ele participa nos anos seguintes. É a poesia como atitude. Sua produção como tradutor também sempre foi intensa e é um dos principais tradutores de Haroldo de Campos. Escreveu prefácios a poetas como Horácio Costa e Regis Bonvicino, e esses nomes também indicam por onde se enreda Milán: a poesia como criação não neutra numa sociedade que busca a massificação e a alienação. Segundo Milán, é preciso pensar na arte real, com a carga histórica que isso representa no mundo atual, questionando seu lugar de espaço.

 

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“O impaciente ri de si porque não aparece
o real. Quando lhe aparecer, rirá?
A enlouquecida por falta de olhar,
não de amor: de olhar, porque ser amado
é ser olhado, hoje por hoje, há olhares,
diria até que é tudo o que há. Ou nos olham
ou morremos não olhados, sem ser vistos
na vastidão que não distingue olhares,
cidade ou não cidade, sem cuidados.
O olhar, imagem ger-
mina, feria nos olhos, heráldica de casa real,
erínia, erínia, caça maior.”

de: Circa, 1994

 

“Vidro: vidro de ver
servido à luz
da lâmpada
tudo é par
o ar esparce
parco e parca
parentada luminosa:
oceano
o céu

escrever alia cacos.”

de: Nervadura, 1985

 

“A vontade de verdade da linguagem, que
tudo seja como digo. Grátis, a garça, a graça.
O impossível habita onde está
a maravilha, nessa mesma ervilha, por não dizer
nessa mesma casa cálida em que o deus
da carne, Dios,
se chama corpo e chamá-lo espírito não faz mal:
prazer, praça do corpo para ser como uma fonte
no centro, água para dentro perdida
por onde imana, imã. A esfinge se oferece,
a enigma se esconde. Em ti é por onde. Por onde
a esfinge é, finge. Por onde o enigma enigma,
enigma.”

de: La vida mantis, 1993

 

“Se você não chegar a ser o que é
o que havia dentro para renascer não morre”

de: Dedicado a lo que queda, 1997

 

“Podemos ser sagrados mas preferimos ser perfeitos
ou seja trágicos. Uma vontade tremenda de morrer
e repentina, como serpentina no carnaval, valha
a rima, caia a carne. Tempo do mundo estalando,
tempo do ginete caindo, tempo presente, sem pranto.
Medo de perder ainda as lágrimas, amargas ou ágrias
e até alegres, quando o único que querem as lágrimas
é saírem daqui para onde der, ao graal
segundo minha lógica, aderidas ao sal dali.”

de: Alegrial, 1997

 

“O compromisso do poeta é escrever um copo
real, algo sublime que sirva para algo mais
que viver. Viver nunca satisfez.
Pedir essência, pedir medula, pedir osso:
pedir endurecimento da areia, se a areia
já é frágil, leve de pé, véu de pé,
é pedir pedra calcária, sedimento. Para a sede
de você desnuda como descer ao Pré-cambriano.
Algo terrível nos aconteceu e nós percebemos:
o osso que pedimos ao poema era o mesmo
osso que o osso da África
mesmo que quiséssemos pedra.
As areias da África estão cheias de poemas.”

de: Alegrial, 1997

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“El impaciente se ríe de sí mismo porque no aparece
lo real. Cuando se le aparezca, reirá?
La enloquecida por falta de mirada,
no de amor: de mirada, porque ser amado
es ser mirado, hoy por hoy, hay miradas,
se diría que es todo lo que hay. O nos miran
o morimos no mirados, sin ser vistos
en la vastedad que no distingue miradas,
ciudad o no ciudad, sin cuidados.
La mirada, imagen gen-
era, hería en los ojos, heráldica de casa real,
erinia, erinia, caza mayor.”

de: Circa, 1994

 

“Vidrio: vidrio de ver
servido a la luz
de la lámpara:
todo es par
el aire esparce
parco y parca
parentela luminosa:
océano
o cielo

escribir junta cristales.”

de: Nervadura, 1985

 

“La voluntad de verdad del lenguaje, que
todo sea como digo. Gratis, la garza, la gracia.
Lo imposible habita donde está
la maravilla, en esa misma villa, por no decir
en esa misma casa cálida en que el dios
de la carne, Deus,
se llama cuerpo y llamarlo espíritu da igual:
placer, plaza del cuerpo para ser con una fuente
en el centro, agua hacia dentro fugada
por donde manas, hermana. La esfinge se ofrece,
el enigma se esconde. En ti es por donde. Por donde
la esfinge es, finge. Por donde el enigma enigma,
enigma.”

de: La vida mantis, 1993

“Si no llegas a ser lo que eres
lo que en ti había para renacer no muere.”

de: Dedicado a lo que queda, 1997.

“Podemos ser sagrados pero preferimos ser perfectos
o sea trágicos. Unas tremendas ganas de morir
repentinas como serpentinas en el carnaval, valga
la rima, caiga la carne. Tiempo del mundo estallando,
tiempo del jinete gayendo, tiempo presente, sin llanto.
Miedo a perder aun las lágrimas, amargas o agrias
y hasta alegres, cuando lo único que quieren las lágrimas
es irse de aquí a donde sea que vayan a dar, al grial
según mi lógica, adheridas a la sal de ahí.”

de: Alegrial, 1997

“El compromiso del poeta es escribir un vaso
real, algo sublime que sirva para más
que vivir. Vivir no alcanzó nunca.
Pedir esencia, pedir médula, pedir hueso:
pedir endurecimiento de la arena, si la arena
ya es frágil, leve de pie, velo de pie,
es pedir roca caliza, sedimento. Para la sed
de ti desnuda como bajar al precámbrico.
Algo terrible nos pasó y nos dimos cuenta:
el hueso que pedimos al poema era el mismo
hueso que el hueso de África
aunque quisiéramos roca.
Las arenas de África están llenas de poemas.”

de: Alegrial, 1997


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